#NAS CURVAS DE MONTANHAS OUTRAS A MÃO QUE VIBRA DE SENTIDO# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA
A rua que tomei desce, em declive. Tenho a sensação
de já ter andado pelas vizinhanças e de haver perto uma avenida principal. Não
é de periferia, na Praça Rutten, centro do municipio. De alguma parte chega-me
aos ouvidos um vozerio sem igual. A rua faz uma curva brusca e acaba nuns
degraus que conduzem a um beco em nível inferior.
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Detenho-me um instante no alto da escada. Do outro
lado do beco, há um barzinho miserável cujas janelas parecem embaciadas, mas na
verdade estão cobertas de pó. Frente, há outra rua, cartomante, curandeira
atende os clientes. Há uma neblina fina entre o olhar e a imagem, seriam coisas
da visão exausta? Algum som que desconheço, um sibilo, que, entre serras,
manuscreve o pórtico partido para o Impossível que não deixa em seu atrás senão
seus vestígios de harmonia e serenidade.
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Para quem todo o passado não é estrada de um
diminuir, denegrir, subestimar, mas, ao invés, um prado enorme que nenhum revés
do estrangeiro nunca toca, vale sem limites e fronteiras que nenhum estranho
jamais em toques desenha os gestos da caricia, bosque off-limits onde perscruto
o intrincado das galhas e folhas das árvores, possuo a arte e engenhosidade de
ouvir os sons que se apresentam ao espírito, aos ouvidos, ritmos e melodias se
pres-ent-ificam na inspiração... O automóvel segue em velocidade amena as vias.
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Reclino-me, então, na cadeira,
Desembainho um olhar afiado e comprido
Ao longo do quarto em que me encontro ora,
Dando continuidade ao trabalho,
Dando continuidade à vida que se me a-nuncia na
sublime trans-cendência do verbo e do tempo.
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O ser humano, em seu olhar para o ser,
Deixa-se prender por ele,
É removido para além de si,
Estende-se ao mesmo tempo
Entre o si e o ser,
Esse ser-erguido-para-além-de-si
E ser atraído pelo próprio ser,
Eis o Eros.
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Quando se traduz o pensamento em palavras, as
coisas todas, os homens todos parecem razoáveis, o prado enorme que nenhum
inverno toca parece inteligível, o vale sem limites e fronteiras que nenhum
outono jamais acaricia afigura-se mágico; mas quando se considera os seres
humanos que passam pela rua a idéia transforma-se em ato de fé.
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O grande papel é a vivência de extrema lucidez que
percorre além de todos os limites do tempo, que passa fora da cerca, e que nem
as flores senão flores, a terra de quando em vez estremece, rolam as ondas,
algumas vezes sua fúria de compreender suas próprias ilimitações não deixa
apenas vestígio, mas ruínas. Pensar como quem anda um caminho é pensar um
caminho, é pisa-lo e senti-lo por baixo, senti-lo interiorizando-se em cada
dimensão. É chupar um fruto e saber-lhe o sentido.
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Atrás da esperança não há senão a esperança. Vêm
lúcidos nas curvas de montanhas outras a mão que vibra de sentido, posta livre,
e os dedos, movimentam de um lado para outro comungando os gravetos de verbos
articulados em cada sonoridade da língua, um refúgio e uma libertação, como a
voz da Terra, que é tudo e ninguém é ninguém.
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O que na verdade desejo saber é se há mais
liberdade, se há mais esperança hoje do que nalgum tempo de outrora. O dia
inteiro a esperança exigindo um passado que redima o presente e o futuro. O dia
inteiro, sem uma palavra, a liberdade exigindo que a esperança tenha nascido de
seu ventre, será a luz que llumia a passagem, a travessia de um tempo a outro,
a decisão febunda o quotidiano das coisas e dos homens, a coragem de torná-la
verídica, real, senão apenas instantes de re-presentação, fecunda as utopias, a
erosão do tempo no silêncio, a irrealidade do real. Calada, vem a boca sorrir,
novo alvorecer, aurora para todos.
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Pela primeira vez, eu, quem sou um ser votado aos
sonhos, às utopias, pela primeira vez sinto-me atraído pela esperança: atração
pelo instante-limite da realização e da felicidade. Numa palavra, pela
possibilidade. E pela primeira vez tenho então amor pela liberdade, pela
esperança. É um amor pedindo realização, a concepção, a vida possível.
Limpo os óculos. Estão embaciados. Não posso
enxergar bem na tela do computador com os óculos embaciados. Tento, embora com
certa isenção, o golpe da inteligência de poder ver no assoalho deste barzinho
miserável o fruto de alguma esperança de outrora.
#riodejaneiro, 22 de dezembro de 2019#
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