#AFORISMO 302/ENTRE O QUE SE FOI E O QUE HAVERÁ-DE SER# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: AFORISMO
Vacilo
entre querer e não querer, entre ficar e arrumar as trouxas para escafeder-me
sem deixar vestígios, sem deixar os passos nas pedras das ruas, o adeus
insofismável na algibeira, “hasta la muerte” no alforje, no dia do apocalipse
estaria presente para soltar os fogos de artifício, comemorando a alegria de
assistir ao sepultamento de todos, o espaço vazio no mapa, jamais em todas as
dimensões da alma, quem dera pudesse, não veria re-fletido no espelho a
tristeza e a desolação na minha imagem, a boca fechada, em silêncio irrestrito
e irreversível, há as suas vantagens, observo com mais percuciência as mazelas
e hipocrisias individuais e da história, entre o que se foi e o que haverá de
ser – na verdade, na verdade, não sei se foi mesmo, parece confundido com o que
está sendo, o que haveria de ser é o que se foi, o que está sendo é uma ilusão
do sonho que se anunciou instantes atrás, tudo parece entrelaçado com certas
inconsciências, concebidas e nascidas dos instintos voltados para as
justificativas e explicações fundadas e fundamentadas nos interesses espúrios,
súcias ideologias, pergunto-me como o que há-de ser será possível, se o
presente está amasiado ao passado, não tendo qualquer resposta, inda que
inviável; pergunto-me ainda se haveria possibilidade de silenciar onze anos de
minha vida, três me foram bem fáceis, mas era garoto de oito anos, apesar de
quando em vez alguma perspectiva se me a-nuncia, cuido logo de devolvê-la ao
catre; jamais poderão figurar em qualquer espaço, levo-lhes comigo para os sete
palmos de terra, não havendo quem possa tecê-los de modo a representá-los, quem
conhece esses três anos de minha vida não irá dar com a língua nos dentes,
respeita-me o último pedido de não fazê-lo, tudo o que disserem serão criações,
invenções, frutos da imaginação fértil; é na carne mesmo que trago esses anos
-, o que penso e os sentimentos que me vão no íntimo, entre a verdade e a
in-verdade – insegurança e medo, suponho, - que me diz: “O indivíduo, sob
qualquer perspectiva e ângulo que se considerar e analisar, está sujeito a
todas as mudanças, é uma lei a mais, uma necessidade a mais para tudo o que
está por vir”. Pensando e sentindo isto profundamente, é que segui a minha
jornada no mundo, realizo o que desejo, sinto-me feliz e alegre, saltitante. Se
não me engano no momento, fora Fagundes Varela quem escrevera num poema: “Vim,
vi e venci”, a aliteração mais famosa de nossas letras brasileiras.
Dizer-me:
“Muda a minha vida” seria desejar a transformação de tudo, até mesmo uma
transformação de banda, de esguelha, em última instância, para trás... Não nego
facilmente, honra-me afirmar, apesar de sujeito a todos os enganos e erros,
sujeito a todas as rejeições, perseguições e discriminações. Meus olhos se
abrem sempre mais para os horizontes que necessitam e que sabem servir-se de
tudo o que a santa sem-razão, a razão doentia rejeita, a alegria e o
contentamento nesse caso são mais presentes e fortes, a felicidade mais
verdadeira e real, o coração conhece bem percuciente o que é isto – o sangue
que por ele passa e repassa a todo momento, sente-lhe o calor efervescente,
vivo e pujante, o sangue quente, que sobe por nada até, é da minha origem e
estirpe, não há como negar ou subestimar, aliás sinto-me orgulhoso dele, não
levo desaforo para casa, se tiver de levar algum, com efeito, passo a viver nas
ruas da cidade, carne e ossos lhe agradecem sensivelmente a vida e os fervores,
que abrem os horizontes para todos os futuros do espírito e do ser.
Paro
um instante, deixo-me balançando na cadeira à mercê da música que ouço, a perna
direita se movimentando ao seu ritmo, o salto do sapato batendo no chão, The
House of the Rising Sun, desde que a conheci, há longos anos, apaixonei-me,
quando ainda não a entendia, amor após entendê-la, olhando, através da janela,
a chuva que cai, os pingos que deslizam no vidro lentamente, o tempo nublado –
mas tem chovido, hein, sô!, uma mineirice para brilhar sempre, quanto mais por
surgir de supetão, sentidos inusitados e excêntricos, inéditos, afloram,
transcendem o meramente contingencial -, esperando que no íntimo se re-vele um
vento de renovação, se não possível, pelo menos olhar diferente as coisas e o
próprio mundo, visão-{de}-mundo outra, a que me habita, em termos bem vulgares,
está enchendo o raio do saco, está caindo aos pedaços de tão velha, não tenho
vocação para velharias, épater le bourjois, para usar uma expressão francesa,
inédita em quaisquer outras páginas, com significado e sentido que trans-cendem
a razão, intelectualidade, até mesmo todas as dimensões do espírito, quisera
conhecê-los com percuciência, isso não é de minha alçada, deixo a quem quiser
fazê-lo, se lhe aprouver dizer-me, fico-lhe sobremodo agradecido. Não é
verdade, contudo, que sou em absoluto inconsciente do sentido que atribuo a
essa expressão, é histórica, nasceu em um período dificílimo da história
francesa.
Há
dias os sinos tocavam e repicavam os ares de um firmamento azul do dia como se
fizesse pazes com o mundo, saíam pombos da pequena igreja, esvoaçando baixos,
preenchendo os espaços da pracinha, pessoas paradas, observando, no peito
ad-miração e felicidade por cena tão mágica e maravilhosa. São momentos de
lembranças, são instantes em que a sensibilidade se apresenta sedenta e ávida
de vôos profundos, aproveito o ensejo para tecer em palavras o que presenciei
naquele dia em que o povo do lugarejo invadiu o templo como se fossem canibais
de um mito; os pássaros cantavam suas músicas que no tempo e este integrava na
perfeição de um espaço distante, a brisa da manhã era como o espelho dos reflexos
humanos. Sonhei e naquele sonho supus as mais lindas histórias de um conto de
fadas e como numa fábula resplandecia a paz que mais uma vez julgava
intermediária dos próprios homens.
As
criaturas... pequenas grandes criaturas que formam mito salva uma frase inerte
e insensível aos ouvidos, memorizam uma expressão latina que suscita incólume
verdade... à loucura... São elas o fulgor de uma estrela de um ponto que
esconde e trans-parece lá bem distante, são o brilho atrás da lua que reflete
para trás a sua luz branca e resplandecente, incidindo nos campos silvestres,
nos chapadões solitários e íngremes, nas corcovas de serras e montanhas, onde
as estrelas sinuam por outros trajetos e itinerários, não é negócio velarem os
seus osssuários. As criaturas da noite são apaixonadas. Fazem anarquia. Uma
farra que descobre sentimentos, que envela dores e sofrimentos, que omitem
mágoas e ressentimentos. Que amam a madrugada, o latido dos cães. Que cantam
com fervor cânticos os mais di-versos na esperança de a aurora nascer
performando novos passos de dança, à luz do corpo, constituído de carne e
ossos. Que somem sem deixar quaisquer vestígios.
(**RIO
DE JANEIRO**, 21 DE OUTUBRO DE 2017)
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