TRESANDADA DESOLADA - I PARTE# GRAÇA FONTIS: PINTURA Quinzinho de Parafusos a Menos: PROSA
Manoel Ferreira Neto
Triste, desolado, angustiado escreve uma missiva ao
seu amigo do peito, FESMONE, reclamando que eu, Quinzinho de Parafusos a Menos,
estou roubando-lhe a cena de sátiro, até pedindo ao amigo que lhe dê uma luz
para desmascarar-me; eu continuo com a pena em mão, vagabundeando pela Cidade
Maravilhosa.
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Rapunzel,
na sacada de seu quarto, penteia os cabelos,
imaginando um piquenique à beira da lagoa, olhando o pastor con-duzir as
ovelhas, pastoreio tão tranquilo, singelo, as ovelhas são mui dóceis, a vida própria
se o pastor necessita dela. Sua criada olha a imagem no espelho, de um lado o
rosto de pele lisa, brilho no olho, do outro, uma caveira.
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Na procissão de Santo Antônio,
caipiras, madames, divorciadas e solteironas, de
vela na mão, recitam orações, rogando ao santo esperança e fé na vida. Na
procissão do último dia da novena de São Geraldo, a cidade entupigaitada de
ônibus do país inteiro, fila gigantesca para rezar uma Ave-Maria e Pai e Nosso,
no buffet, comes e bebes à revelia, entupigaitado.
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O Boca do Inferno,
tomando cerveja no botequim, mãos amparando o
queixo, cigarro pela metade no canto da boca, observa o vira-lata fuçando o
saco de lixo; na mesa ao lado, jovem casal de namorados em silêncio olha o
movimento de carros na avenida. Mendigo sentado no meio-fio da calçada tagarela
consigo sobre a morte e a fome.
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Renan Pintor,
encostado ao parapeito da janela, esperando o
cafezinho da manhã ficar pronto, observa a esposa varrendo as flores do ipê
roxo na calçada, calada, saudosa da filha que morrera jovem, vítima de
leucemia. Menino de pasta escolar na mão, cabisbaixo, canta Requiém para
Matraga, vai aprender novas lições no grupo escolar, semblante circunspecto,
olhos faiscantes e inquietos, querem observar tudo, nem ele próprio sabe a
razão disto, há inúmeras, o templo revelará com os minímos detalhes. O pároco
da igrejinha cumpre o doloroso dever de a-nunciar o falecimento de dona Turka,
a vendedora ambulante de salgadinhos, o enterro será às duas horas da tarde.
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Glória Sofia
folheia partituras de música, sentada ao piano,
perdida em seus pensamentos, melancolia, nostálgica, a chuvinha fina caindo. A
empregada, na cozinha, lava as vasilhas do almoço, pensando no marido que não
mais a procura, talvez tenha se deslumbrado por outra mulher. Glória Sofia
passa os dedos no teclado do piano nervosamente, o som ressoa na casa inteira,
o gatinho se esconde debaixo do sofá.
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Neófo Dunga,
frente ao juiz, defendendo uma causa de litígio
matrimonial, silencia-se, fica olhando a cruz suspensa na parede, olhos
esbugalhados, respiração comedida, o juiz suspende o julgamento, o advogado é
acompanhado de dois policiais segurando-lhe os braços, todos saem sussurrando,
murmurando. Na radiopatrulha, o advogado é levado ao hospital, surto psicótico
a avaliação do médico de plantão.
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Estudante universitário, Dário Cunha
às voltas com um trabalho em Psicologia sobre a
des-personalização sente-se cansado, larga tudo sobre a escrivaninha, sai de
casa para encontrar os amigos na boate, mas fica andando pelas ruas sem rumo,
apagando e acendendo cigarros compulsivamente. Por que a inconsciência? Por que
Freud explica tudo e o tudo nada explica? O estudante se senta no banquinho da
praça pública, observa indiferente o coreto onde os mendigos dormem.
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O corcunda da praça do Santuário-Basílica,
sentado no chão, recostado no tronco de uma árvore,
toma cachaça no gargalo da garrafa. A mãe, introspectiva, circunspecta, empurra
o carrinho de seu bebê. Senhor, sentado no banco, olha o domus da igreja,
perdido nos seus sentimentos.
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Os atores,
no palco do teatro, sem qualquer animação para o
ensaio da peça, estão deitados, em silêncio, todos com cara de quem enterrou um
diretor muito querido.
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Brasílio Mendes,
escritor, sentado em sua escrivaninha, está muito
nervoso, ansioso, não lhe surge qualquer inspiração, ao menos uma palavra,
vazio, completamente vazio. Ele que não larga a pena, escreve sob iluminação, a
pena desliza rápido nas linhas da página. O seu cachorro de estimação dorme ao
lado da estante de livros, como diz à esposa: "Gosta de mostrar as coisas.
Só dorme de barriga para cima, as patas traseiras abertas, as dianteiras
descidas." Levanta de sua cadeira, abre a janela, re-costa-se ao
parapeito, olha, à distância, a neblina cobre a montanha.
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Chapeuzinho Vermelho,
sentada na cama, ao lado de sua vovó, tece crochet,
o lobo, mal deitado ao lado da cisterna. Manhã pacata na choupana. No Sítio do
Pica-Pau Amarelo, o Conde de Sabugoza, deitado na rede, cochila, a Divina
Comédia sobre o banquinho. A vovó sentada na cadeira ao lado do fogão de lenha
olha distante as panelas no fogo.
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Zeus,
no seu trono, ri a bandeiras soltas, olhando para a
terra, vendo a desolação dos habitantes de Tresandada.
@RIO DE JANEIRO, 13 DE MARÇO DE 2020#
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