#NACO DE GLÓRIA# GRAÇA FONTIS: PINTURA Quinzinho de Parafusos a Menos: PROSA SATÍRICA
“Scire tuum nihil est, nisi te scire hoc sciat
alter”
(Pérsio, Sátiras, I, 27)
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Um morto ilustre é um naco de glória que não se
perde – dizia-me eu no mais profundo de meu silêncio, silêncio indescritível,
inexpressável, jamais o havia vivenciado, para não suspeitarem de meus juízos
emocionais e psíquicos, estar ensandecido, no velório de um dos mais medíocres
e mesquinhos poetas de nossa comunidade; ilustrificou-se com os seus poemas
ridículos, quem não sabe escrever com sabedoria e elevação, escreva mediocridades,
nele a corrupção interior bramia em versos, tornou-se o poeta do medíocre, foi
louvado ainda em vida, vangloriado por todos, todos sabiam de cor e salteado
alguns de seus versos, recitavam pelas ruas da cidade, para os amigos, no banco
da praça para si mesmos, em voz alta, enquanto passavam os transeuntes,
reverenciações com chapéus de palha, de coco, e todos os demais aconteciam a
todo momento – em nossa comunidade uso de chapéu não é moda, é tradição
estilística -, quando andava pelas ruas. Na ausência de um poeta profundo e
sábio, louva-se o ridículo, mesquinho, medíocre, o que não pode haver é falta
de poeta, o que não pode haver é falta de cultura. Mediocridade e mesquinharia
não são faltas de cultura? Poemas medíocres e mesquinhos não são faltas de
gosto? Outrora eram, mas na modernidade pode-se até afirmar é haver chegado ao
cume da cultura, do bom gosto.
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Não podia dizer isto de um morto ilustre é naco de
glória que não se perde, pois que as pessoas presentes ao velório sabiam com primor
de suas mediocridades em versos e estrofes.
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Alguns se sentiam entristecidos e envergonhados,
aborrecidos e humilhados com a situação da cultura em nossa comunidade,
pensando e sentindo: “A que ponto chegamos, meu Deus! Em toda a história das
letras o belo, a beleza, a estética foram buscados pelos escritores e poetas;
em nossa comunidade, aceitamos e consentimos com a mediocridade! Quê vergonha!
Quê despautério! O que vão dizer de nós no futuro? Que fomos seres
bestializados em todos os níveis, especialmente nas letras e na cultura”;
outros, alegres, saltitantes com haver pelo menos um poeta medíocre, quem não
tem cão caça com jegue, tendo de agradecer a Deus e não reclamar, em verdade
está pegando o boi com chifre e tudo por um medíocre haver se ilustrificado na
arte da poesia medíocre, haver iniciado a comunidade nos versos, algum dia
surgirá o sábio, o percuciente, o elevado, Deus tarda, mas não falta. Quem sabe
até não surja mais nenhum imbecil, medíocre, mesquinho na arte do poema na
comunidade, nem mesmo o sábio, o percuciente! Fora o único. Vamos ter que
engolir isto por todo o sempre. As pessoas de outras cidades, distritos, de
nossa região, caem na gargalhada, tiram sarro por considerarmos este poeta o
nosso maior patrimônio: “isso é que é um povo fútil!” E nada podemos dizer,
contradizer, soltar os cães, descascar os pepinos, mandar catar coquinho no
asfalto, pois que é a verdade insofismável.
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Se eu dissesse isto, com efeito, seria jogado a
pontapés para fora do velório, pelos entristecidos; a maioria não estava
velando o poeta e suas mediocridades versificadas, velava o homem que era um
pobre coitado, espírito mesquinho, uma espécie de solidariedade e compaixão, os
outros velavam o fazedor de versos de corrupção interior, com ele aprenderam a
corromper a si mesmos, promover e divulgar a corrupção no interior de todas as
almas, espíritos e mentes, uma espécie de agradecimento por lhes haver
modificado e transformado suas vidas, são outros depois de seus mesquinhos e
medíocres poemas.
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A morte não pode haver aparecido a esse mesquinho
espírito com aqueles dentes alvos e conservados sem boca e aqueles furos sem
olhos, mas com as feições da vida, coroada de graças, flores simples e graves,
ela quem esperou por toda a eternidade receber em seus braços abertos um poeta
de tamanha estirpe, de tão grandes méritos, ela quem esteve junto dele a todo
momento, que lhe sussurrou algumas estrofes, a mesquinharia é o supremo valor
humano, a mediocridade, a divina virtude; a morte tanto esperou, tantos séculos
e milênios de ansiedade, enfim o grande poeta houve, terão muito o que
confabularem no além gastarem a língua com as declamações, ela também tem seus
deleites versificados. Outrora aparecia aos grandes poetas, mas angustiada,
para todos era um estorvo, para todos non grata, além de que primavam em suas
letras pela beleza, belo, estética, quando ela é exatamente o contrário.
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Para Norberto Pífia, a vida nem tinha o defeito da
morte, a vida era imperfeita, asquerosa, indecente, eminentemente fútil e
nauseabunda, a morte divina, linda, graciosa desde que no mundo o homem vivesse
com sinceridade e honra suas canalhices, fosse corrupto e salafrário. Sabe-se
que era desejo seu, se houvesse de tornar à terra, ter a mesma existência
anterior, escrever mais profundamente até sobre a corrupção interior, mazelas,
defeitos de caráter e personalidade, sem alteração de trâmites nem de dias.
Corrompeu a grande maioria dos homens de nossa comunidade; não se sentiriam os
homens mais pecadores, não precisavam mais pedir perdão a Deus , as culpas
deixaram de existir, não receberam críticas apimentadas, tornaram-se felizes e
alegres, livres e supremos. Mas a minoria não conseguiu convencer, não
aceitaram se corromper, ainda eram tementes a Deus, ainda temiam as chamas do
inferno.
Tornando à terra, seria sua luta principal
convencer e persuadir os nobres que “a corrupção é divina e divino é o homem
que se corrompe; /a canalhice é absoluta e absoluto é o homem que se torna
canalha em nome da supremacia do não-ser”.
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Não se pode confessar mais vivamente a
bem-aventurança terrestre: “bem-aventurados os corruptos porque jamais serão
esquecidos no mundo / seus feitos serão louvados e glorificados / seu busto na
praça pública será templo de reverenciações”.
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Um poeta, para igual hipótese, preferiria vir
tornando urubu, a ser duas vezes homem, ser homem duas vezes para ele seria
acinte à vida, suas letras na vida foram maravilhosas, esplendidas, louvadas e
glorificadas por todos, sua vida mesma o maior despautério da natureza. Eu
(falemos um pouco de mim), se não fossem as armadilhas, tramóias e sandices
próprias do homem e o uso de matar o tempo com as hipocrisias, farsas e
falsidades, quero, sonho, desejo tornar à terra um juramentado jegue, orelhas
mais que pontiagudas.
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Não faço aqui análises e interpretações, como
alguns professores fazem em minha sapataria sobre a vida e obra de Norberto
Pífia, nem componho a sua biografia de corrupto, canalha, súcia. As escolas de
segundo grau, faculdade de letras, professores, personalidades, o jornalismo
mostrou já o que vale este autor de tantos e tão admiráveis versos, falaram de
seu estilo incomparável, puro e sólido, filosofia das pré-fundas maléficas,
feitos de autenticidade e verdade. Norberto Pífia era mesmo um pífio de mente e
espírito. Nada disso me cabe, de nada entendo senão de minha vida, luto por ser
homem de valores dignos, apesar de minha natureza espúria. A rigor, devo
confessar com o verbo na ponta da língua imaginária, nem me cabe cuidar da
morte.
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Pífia morreu. Seus poemas tornaram-se imortais e
eternos, será ele lembrado, endeusado, glorificado por todo o sempre, será
inspiração para outras almas que habitarão o mundo, será desejo e vontade de
negar tudo o que a humanidade aspirou realizar para justificar sua natureza
instintiva, será sarcasmo, ironia, cinismo a todos os valores tradicionais e
alienáveis.
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Não morri. Continuo a minha missão de consertar os
sapatos dos homens, ouvindo-lhes discutir suas opiniões e pontos de vista sobre
a modernidade, sobre as idéias e sonhos surrealistas do outro mundo e vida. Não
sei quando morrerei, ainda estou na idade da flor, trinta e três anos, há muito
que viver ainda, mas sei de antemão às revezes que Norberto Pífia de mim não
merece a mínima consideração.
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Sentado ao lado de um de seus maiores, senão o
maior, amigo, quem inclusive fundou a Academia de Letras Norberto Pífia, em sua
homenagem, e quem sempre patrocinou a publicação de suas obras em editora de
renome nacional – o que é ininteligível, mas como as editoras visam somente os
lucros, e são as mediocridades que dão lucros exorbitantes, o povo gosta mesmo
é de futilidade -, chorava feito criancinha de colo com fome por a mamãe não
ter leite e nem dinheiro para comprar um saquinho de um real e oitenta
centavos, seu lenço estava encharcado de lágrimas, oferecendo-lhe eu o meu,
perguntava-me o que fazia ali, sabendo de antemão que estar num velório de
homem ilustre é ser ilustre também, minha presença no velório será citada
nalgum livro que for escrito no futuro, o livro de assinatura será testemunha,
cachaprei o meu nele, pela ilustricidade do poeta, amanhã mesmo os presentes
estarão na imprensa, o livro será lido por algum locutor da Rádio Comunitária
Tadeu Ferlucci Gomes. O diretor do tablóide Notícias da Semana foi contratado
para tirar a foto do esquife para figurar na Coluna Social – realmente nunca
presenciei ninguém tirando foto de cadáver, quando mais para coluna social de
tablóide. Este jornaleco já publicou na manchete foto do cadáver de um
estuprador; chegou a vez de publicar a foto do cadáver de um poeta na coluna
social, da manchete à coluna social o caminho é longo, faz-se mister ler todo o
tablóide, alimentar de sensacionalismos e vulgaridades.
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Não escrevo poemas, sou analfa de letras e juízos,
e preciso mesmo que aparente ser eu de renome, não morrerei como um Mané
juramentado, o melhor é estar presente a um velório de ilustríssimo homem de
letras medíocres. Não li qualquer poema de sua autoria, não estudei, aprendi
apenas a assinar o nome, e fazer algumas continhas para não levar prejuízo na
minha sapataria, mas como os fregueses declamavam os poemas na sapataria
conheço a sua mediocridade. Não estou aqui no velório para me despedir do poeta
do medíocre, mas por haver sido meu freguês por anos a fio. Nunca foi à minha
sapataria. Sempre mandou a sua empregada levar os sapatos para conserto.
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Além disso, de um morto ilustre ser naco de glória
que não se perde, é uma ocasião, e, às vezes, única, de superar os
contemporâneos. Preciso explicar isto, coisa que não o fiz, durante a hora e
meia que estive presente ao velório, os vinte minutos de caminhada da funerária
ao cemitério, os coveiros jogando terra sobre o caixão, algumas autoridades
municipais e amigos íntimos fazendo seus discursos empolados, com inclusão de
alguns versos para ornamentar a prosa empolada.
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Três discursos: do prefeito, presidente da câmara,
da amante, e não foi esquecido a palavra “maior”, Norberto Pífia, o maior poeta
de nossa comunidade, enfatizado pela mediocridade e mesquinharia: “Agradecemos
todos a mediocridade e mesquinharia de nosso maior poeta da corrupção interior.
Ensinou-nos com primor que isto é o nosso maior valor humano”. Sem outro, como
é possível o maior? São precisos pelo menos dois para se estabelecer a
supremacia de um sobre o outro.
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Desculpem-me o deslize, mas penso no futuro, quando
houver um segundo, por mais sábio e percuciente, terá que lutar para ser
reconhecido. Superar os contemporâneos, se assim digo, é pensando no nosso
tempo, em nossa atualidade. Se eu não fosse analfa de letras e juízos,
escreveria poemas ou mesmo tentaria a prosa, mas isso me é de todo impossível,
o que posso fazer mesmo é estar aqui na minha rede no alpendre de minha
residência, pensando nas mediocridades deste poeta, bestificado de todo com
isto de um povo haver chegado a um ponto de falta de cultura, de sonhos e utopias,
consentindo e aceitando que um poeta desses seja considerado e laureado como o
maior de todos os tempos, nossa comunidade está em luto, o que será de nós no
futuro, seremos puros papagaios, pelo resto da eternidade estamos condenados a
repetir os mesmos versos e estrofes, pois que não haverá outro. Isto é um
despautério sem limites.
#RIO DE JANEIRO, 21 DE MARÇO DE 2020, 6:35 a.m.#
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