#EM REVERSOS CARDÁPIOS DA PEDRA LASCADA# GRAÇA FONTIS: PINTURA Quinzinho de Parafusos a Menos: SÁTIRA
Bons
dias, querida Camila Verçosa
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A sua
missiva chegou, estando eu a almoçar – um de meus pratos preferidos, mamão
verde com costelinha de porco, COUVE, CHEIRO VERDE, sabe como aprecio estas
comidas típicas de nossa região – tanto você quanto os amigos íntimos chamam-me
a atenção devido ao colesterol, mas ignoro, não sacrifico os meus prazeres,
seja lá como Deus quiser; tem razão, não negligencio, contudo... - quanto às
misturas sou eu quem sugere à cozinheira; tomara um aperitivo, presente de um
fazendeiro lá da beirada do Rio das Velhas, Jataí, o estômago estava nas
costas, fome não me faltava, no desjejum foram apenas uma xícara de café e pão
com manteiga, mas queria comer um pouco mais, sentir as delícias particulares
do aperitivo, os prazeres peculiares do prato -, e foi bom tê-la lido depois,
porque, se a leio antes, não acabava de almoçar, o cachorro é que iria sentir
os prazeres da comida, merecedor é, mas os restos é que lhe cabem. Mesmo que eu
tivesse dinheiro sobrando, não trataria cachorro como gente, comprando-lhe
comidas especiais em lojas especializadas, cachorro é cachorro, gente é gente.
Antigamente o cachorro era o grande amigo do homem, na modernidade é paliativo
da solidão humana.
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Assim que
a recebi da filha de sua governanta, perguntando-me até a razão de me não haver
telefonado, muito mais prático e rápido, não lhe gastaria tempo para tomar da
pena e escrever, com as dificuldades de quem a este mister se entrega, mas
compreendendo que guarda em si tradições dos tempos de seus familiares,
coloquei-a sobre a mesa da sala de visitas, prometendo-me lê-la terminado o
almoço, tenho aquele hábito de re-fletir sobre as palavras escritas, o que
mesmo no íntimo da pessoa passa quando escreve, os seus sentimentos e emoções,
o que intenciona dizer em verdade, e isto me tira com extrema facilidade da
realidade das coisas e dos objetos, o tempo passaria, a comida esfriaria nas
panelas, e prato como este é delicioso se comido quente, fervendo, assim que
desligado o fogo já a colher está enfiando na panela, colocando-a no prato. Não
elucubrei qualquer assunto que merecesse missiva já que três dias antes nos
encontramos aqui mesmo em casa, e ficamos a conversar no alpendre, a noite
estava com um céu maravilhoso, coberto de estrelas, lua cheia, própria para
duas pessoas tão apaixonadas como somos nós.
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Marieta,
curiosa que é, perguntou-me a razão de não haver aberto o envelope assim que o
recebi; isto não é de meus costumes, é ter envelope em mão, abro, saio lendo.
De quem era a missiva? De alguma persona non grata? Curiosa Marieta é, mas é de
seus princípios não ler a subscrição, o emissor. Disse-lhe ser sua - quem mais
iria escrever-me missiva, morando na mesma cidade, embora longe, você no alto
do Hospital Santo Antônio, eu no bairro Esperança, no mínimo é um bilhete,
assim mesmo em ocasiões muito especiais, na modernidade há o telefone, o
celular, este não uso, detesto, tenho a minha intimidade, preservo-a,
respeito-a; mesmo em casa, não atendo ligações, quem o faz é a Marieta, e
atendo se me aprouver; no escritório, é a Terezinha, secretária, nas mesmas
circunstâncias - o que lhe causou espanto. Quanta vez estive minutos a fio
lendo uma missiva sua, às vezes até relendo outras passadas, recordando de
nossas situações. Expliquei-lhe a verdade. Iria gastar tempo com a leitura já
que tenho o costume de refletir sobre as palavras, costelinha com mamão verde
merecem ser comidos assim que saem do fogo. Tão-somente isso. Não sei se a
convenci, mas se deu por satisfeita.
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Que
história é essa, Camila, e quem lhe meteu isto na cabeça? Não iria inventar um
disparate desse naipe, sua imaginação é fértil, ciúmes de mim não lhe faltam,
mas o caráter sincero e honesto supera isto. Sabe que estas criações e
invenções só prejudicam a relação de um casal, dão tudo a perder. Sempre há uma
primeira vez, mas a conheço para saber não seria capaz, tem pavor a sofrimentos
e dores inúteis. Não sei mesmo quem lhe dissera, não faço a mínima idéia, mas o
propósito fora de atiçar os seus orgulhos, provocar-lhe reações ad-versas,
acabar com suas crenças e confianças de que sou homem fiel e leal aos meus e
aos seus sentimentos, aos de qualquer pessoa de minhas relações. “Em verdade,
soube de alguém que havia sabido de alguém”. Querida, só por essas palavras
sabe-se tratar de fofoca barata, o que até me deixa estupidificado por você não
ser de ouvir disses-que-me-disse. Ainda bem que tomou da pena, escreveu-me a
missiva, pedindo-me explicações devidas, deixasse-a tranqüila, sincero e sério
sou, o que lhe digo acredita piamente. Desmentisse-lhe o sabido, era “um pedido
muito carinhoso, de quem o ama acima de todas as coisas desse mundo”.
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Eu,
namorado de Luzia? Eu, beijando-a no escuro do cinema? Isto é caçoada de mau
gosto, Camila? Luzia, não sei mesmo o que acontece com ela, bonita,
inteligente, simpática, mas tem o péssimo hábito de dar de cima só de homens
comprometidos, namorados, noivos, casados, com o propósito mesmo de destruir as
relações, e destruídas cai fora como se nada houvesse acontecido. De qualquer
modo que se pensar, sente inveja, ciúme, conseqüências de suas carências. Não
poderia ser de outro modo a sua carência. Agindo deste modo, nunca vai
encontrar alguém na vida. Alguém sincero, honesto, queira se relacionar com
dignidade, amar e ser amado, na primeira oportunidade dela arrumará para a sua
cabeça. É verdade que algumas vezes tomamos cerveja juntos em mesas de
restaurantes com seus amigos, tem lá conversa agradável, mas daí sair com ela
sozinho, não ousaria, sei que daria para cima de mim com o propósito de nos
prejudicar em nossas relações, Camila. Nem diria que somos amigos,
conhecemo-nos, conversamos, eis tudo entre nós.
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A última
vez que fui ao cinema faz quatro anos, a última película assistida por mim foi
Morangos Silvestres, de Bergman. Depois vieram as porcarias de filmes de ação.
Você sabe disso, disse-lhe algumas vezes um tanto melancólico e nostálgico por
amar o cinema, assistir aos grandes filmes, de Fassbinder, Antonioni, e de
repente sou obrigado a não mais ir ao cinema, por os tempos serem modernos, a
violência no cardápio de todas as realidades e níveis. Nem alugo filmes nas
locadoras, a arte desapareceu das prateleiras, quando vou à capital compro as
obras que são de meus prazeres e interesses contingentes e espirituais, você e
eu assistimos no escuro de minha sala de visitas, comendo pizza e tomando
refrigerante.
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Tudo bem
que ontem foi apresentado em nosso cinema uma das grandes obras da humanidade,
tendo-a eu assistido várias vezes. Assim caminha a humanidade, Gregory Peck,
James Dean, traz-me lembranças muito queridas de um grande amigo, quando
viajamos do Rio de Janeiro à nossa cidade, ele mais que tenso por medo de
chegar e o filme já estar sendo exibido na televisão, recordações que
enternecem meu coração. Não fui ao cinema. Estava muito ocupado, Camila. Você
conhece e bem minhas neuroses de perfeição, tinha de terminar a planta da casa
de Manfredo. Pensei ir, tomei banho, passei perfume, produzi-me, no último
momento desisti. Tinha ainda três dias para entregar, não me levaria dia e
meio, mas não fui. Ainda que houvesse ido, sabendo que você estaria no
instituto aplicando exame para os alunos, iria sozinho, não convidaria ninguém
para me acompanhar, nem mesmo Amélia, nossa amiga, uma das mulheres mais
sinceras e honestas que conheço e conheci na vida, em termos de amizade.
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Se alguém
lhe dissera tal, teve intenção de magoá-la, de envergonhar-me diante das
pessoas, colocar em xeque minha dignidade, a minha fama de homem radical em
meus princípios. Há amigos íntimos que caçoam de mim, dizendo que fidelidade e
lealdade são do tempo da pedra lascada, e eu lhes respondo que prefiro sê-lo a
ver as pessoas ressentidas e magoadas, respeitar os sentimentos das pessoas não
é uma virtude, é uma obrigação dos homens. Se você conhecesse Luíza de perto,
não era necessário este seu protesto. Aliás, não a conhece, tem sérios
problemas emocionais. Já lhe disse as boas qualidades dela, mas os seus
defeitos são para mim superiores às qualidades, você bem sabe como sou, para
mim a menor nódoa destrói a maior alvura.
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Ah,
Camila, a mulher que Ferluci pode me destinar para ser infiel e desleal com
você ainda não veio, não virá nunca, sou de família de adúlteros, os irmãos
todos divorciados, devido ao adultério, filhos, problemas que não terminam, não
sou desta família em termos algum. Sei que ainda não veio porque ainda não
senti dentro em mim dúvidas de meus sentimentos, aquele estremecimento
simpático que indica a desarmonia de duas almas, a desestrutura de duas
psiques. Quando ela vier, fique certa de que será a primeira a quem confiarei tudo,
sabendo que tudo entre nós acabará, seus sentimentos de amor se tornarão de
mágoa, ressentimento, tristeza, ódio por haver entre a mim o que de mais
sensível e verdadeiro habita-lhe a alma e o espírito. Amor verdadeiro e sincero
não se encontra dependurado em todas as árvores, espalhado pelos campos e
colinas, é difícil encontrar; quando se o encontra, é mister valorizar e dar
graças a Deus por existir, render-lhe tributos e graças pela existência.
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Na
adolescência, trocava de namoradas como se troca de vestes, todos os dias,
deixei muitas ressentidas comigo, mas eu tinha medo de amar, ser o outro de
mim, até que alguém me dissera, me não lembra se Marlene, uma de minhas amigas
do colégio, se Pedrinho, também colega de colégio, mas confidente meu, que
pensasse nestas atitudes, um dia poderia amar alguém e ela me trocar por outro,
como iria me sentir? Em verdade, vangloriava-me dos olhos azuis, estatura um
pouco acima da média, rosto angelical, inteligência, cultura, atributos que
normalmente as mulheres adoram e gostam de desfilar por todas as ruas e
recantos da cidade, sentirem-se poderosas, causarem inveja nas amigas. Nunca
mais cometi esta arbitrariedade. Já sou um quarentão, ainda solteiro, sei de
minha sensibilidade, o quanto sou capaz de amar, e só encontrei você que também
conhece o seu amor, entrega-mo a mim com sinceridade. É um tesouro que recebi
das mãos divinas.
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Deus que
me fez assim, contrário a todas as canalhices e safadices de minha família, e
me deu esta percepção íntima para conhecer e amar a superioridade, mostrou-me o
caminho de você para re-velar a dignidade de mim, ser quem sou, o “verbo amar”
por que fui concebido por Ele só com você seria real, verdadeiro, absoluto, não
será com uma mulher como Luíza, linda, inteligente. Ferluci tem seus truques e
tramóias, mas insuficientes para me instigar a trocar as mãos pelos pés, não
será com mulher burra e feia também.
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Desde que
senti a oportunidade em mim de ser quem sou nos interstícios de mim, nas
pré-fundas da alma e espírito, percebi que se houvesse qualquer deslize de
minha parte, outra não mais teria, minha vida acabaria, viveria pelas sarjetas
do mundo, tive oportunidade e joguei fora, como é comum à maioria dos homens,
prometi a Deus que não o desapontaria, o meu ofício seria amar e desejar, viver
e realizar meus sonhos mais profundos.
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Dir-me-á,
Camila, que, se assim sou tão fatalista, dizendo ser você quem saberia de
minhas canalhices e safadices em primeira instância, sabendo irei perder tudo o
que poderia ser maravilhoso, esplêndido e belo, devo admitir a possibilidade de
uma mulher sem todas as condições que exijo, para haverem equilíbrio, harmonia,
as duas faces da moeda. A minha moeda, meu querido e inestimável amor, tem duas
faces: a da contingência, sujeita a todas as situações e circunstâncias
humanas, a cara, a da transcendência, a coroa, a que eu desejo através de meus
sentimentos, em tensão e harmonia, atingir e realizar com engenhosidade e
arrebiques.
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Equívoco.
Ledo engano, minha querida.
Contingência
e transcendência são as minhas verdades, vividas e vivenciadas de verdade em
todos os instantes de minha estada neste mundo.
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Agora que
me expliquei em todos os níveis de que tenho consciência, deixe-me ralhar-lhe
poucochito. Por que motivo deu tão facilmente ouvidos a uma calúnia deste naipe
contra mim? Você que já me conhece há seis anos, tem tanto orgulho de dizer que
é feliz ao meu lado, sente-se a mulher mais privilegiada do mundo por ser tão
amada e querida, deveria ser a primeira a pôr de quarentena esses ditos sem
senso comum. Por que o não fez, desde que soube? Em verdade, fê-lo com
dignidade e honra, escrevendo-me a missiva, pedindo as devidas explicações, o
que agradeço e muito, mostrando isto que só eu posso responder por minhas
atitudes e ações, quem melhor que eu para me conhecer, quem melhor que eu para
saber o que faço e deixei de fazer, mas não era preciso qualquer missiva, nem
mesmo qualquer comentário verbal – repito, sinto-me orgulhoso por me escrever,
agradeço-lhe cordialmente a atitude, e compreendo se sentiu insegura, era
mister recuperar a segurança que sempre sentiu ao meu lado. Gastou você duas
páginas para expressar as mariquinhas das pessoas. Não a acuso; deploro-a de
cabo a rabo. Pode ser que algum dia venha a saber de modo real e verdadeiro de
uma trapaça da namorada ou namorado, marido ou mulher, noivo ou noiva, sabendo
o que é isto de calúnias e hipocrisias, sentirá na pele os resultados.
Digo-lhe, e jamais vai confirmar, mas isto é mais próprio de homens do que
propriamente de mulheres, os homens adoram fofocas de casais.
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Sou um
homem solteiro, cheio de caraminholas, sonhos, ambições e poesia; você é uma
mulher sensível, vaidosa, inteligente, culta, namorada tranqüila e feliz, em
breve estará casada, será mãe de família.
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A cidade
está hoje muito alegre; na praça principal houve pela manhã uma apresentação de
Seresta pelos músicos, aniversário de nascimento do fundador do Grupo de
Seresta. Naturalmente, sairemos hoje, à noite, não leciona; não tem saudades do
centro da cidade?
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Até mais
tarde, querida. Apanho-lhe em casa às oito horas para mais uma apresentação da
banda de Seresta, e depois podemos jantar na Casa Grande, sei que adora
churrasco de picanha bem gordurosa.
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Lembranças
aos seus, aos demais, não agregados a si, calorosos afetos.
Herbert
Tavares de Buffon
#RIO DE
JANEIRO, 27 DE MARÇO DE 2020,a.m#
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