FERNANDO PESSOA – ALÉM DO OUTRO GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: ENSAIO PSICANALÍTICO
PEnsar Fernando Pessoa é pensar a “identidade”.
Pessoa é uma indagação, é questionamento profundo acerca do “eu”, do outro,
desde às origens.
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Não intencionamos um ensaio profundo, uma
in-vestigação criteriosa no que tange a este tema da “identidade”, mas um
esboço, re-flexão, que abra leques inovadores para a leitura de sua obra,
leitura que esclareça à luz da filosofia e psicanálise o “sujeito vazio”.
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Ora, quando o vazio está presente na própria
temática do texto, quando o texto tem ele próprio uma tendência predominante à
abstração, a tentação do vazio é dupla. Pois bem; registrar a preferência ao
vácuo, em Pessoa, é patentear o óbvio: a obra toda esta semeada de alusões ao
vazio. Apontar esse vazio com o dedo e calar-se, é confundi-lo com o nada. O
que é preciso ver é como esse vazio se supre, pois se ele subjaz na poesia de
Pessoa, ele não é, entretanto, a poesia de Pessoa. A poesia de Pessoa é
justamente o modo como (os modos como) o vácuo se compensa, não por
preenchimento ilusório (Pessoa é demasiadamente lúcido para tal), mas pelo
infinito revezamento de significantes que constituem a linguagem plena de um
desejo tenaz.
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Ao freqüentarmos Fernando Pessoa, somos
mal-assombrados por seu misterioso e enigmático sorriso – sorriso que é o do
paradoxo saboreado, da ironia amarga, do sarcasmo sofrido, da inteligência
soberana, da sensibilidade artística e poética. O sorriso de Pessoa é também o
sorriso de um ser afetuoso, terno. Em sua poesia, o vazio noturno re-vela-se
como um cortina, que, discretamente, se abre sobre uma luminosa infância, outro
palco, onde brilha “o azul da manhã”, onde se é feliz e ninguém está morto?
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Através de sua obra, que pode e deve ser lida como
uma vasta, ampla in-vestigação sobre o “ser e o nada” , inumeráveis marcas estão
dispersas como pedrinhas deixadas para a re-constituição de outro per-curso,
per-curso de um corpo. Pessoa não é só pensamento; é sobretudo um canto,
melodia e ritmo que são os rastros de um corpo desejante – poesia. Em sua
poesia está inscrita uma história pessoal, que se pode re-constituir e
partilhar em emoção, simpatia e compaixão, no sentido etimológico desses
termos. A história de seu corpo é uma história de afetos represados. O corpo de
Pessoa é o de um morto-vivo. “sepulto vive quem é a outrem dado/E quem ao outro
que há em si sepulto/Não poderei Senhor, alguma vez/Desalgemar de mim as minhas
mãos?”
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Sujeito e desejo são, desde a origem, faltas.
Segundo Lacan, o que o sujeito deseja não pode ser alcançado, porque todos os
objetos desejados são significantes de outros significantes, que re-cobrem uma
brecha (béance) fundamental, inscrita no corpo e no inconsciente como letra de
um objeto ausente (o “objeto a”). O ego, cuja força os teóricos definem pela
capacidade de sustentar uma frustração, é frustração em sua essência. Ele é
frustração não de um desejo do sujeito, mas de um objeto onde seu desejo se
aliena e, quanto mais este se elabora, mais se aprofunda para o sujeito a
alienação de seu gozo.
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O desejo, que é sempre a aspiração a preencher essa
brecha, está por isso mesmo condenado, fadado a lidar com significantes cujo
derradeiro horizonte é o vácuo. No princípio e no fim de sua trajetória, o
desejo é uma “falta-de-ser” (manque-d´être).
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A brecha é sentida como falta: “nem ser, nem não-ser;
trata-se do não realizado”. A distinção entre o vazio e o nada é fundamental
para a compreensão de Pessoa. O vazio é a falta, o nada, o não-ser. Pensando
isto em nível psicanalítico, o sentimento do vazio decorre da frustração do ser
e do desejo, e a aspiração do nada é obra do recalque dessa frustração, solução
de fuga diante do que não se pode suportar.
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A vacuidade do desejo é constantemente expressa na
poesia de Pessoa. Como em qualquer poesia, poder-se-ia objetar. É fato
indiscutível que o tema “nunca se alcança o que se quer” é um topos da
literatura universal, do “tudo é vaidade” de Salomão, à sede de infinito dos
românticos. O que caracteriza o tema em Pessoa é um ceticismo fundo e uma
lucidez sobre o mecanismo do desejo que só em nossa atualidade alcança forma
tão desencantada: “perco sem nunca ter tido”, “amamos sempre no que temos/O que
não temos quando amamos”.
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Registra-se na poesia pessoana, a brecha imemorial
sobre o qual se assenta o ser. Em Álvaro de Campos, particularmente, efetua-se
um jogo sutil em torno do verbo “partir” e todos os derivados de parte. A
partida, viagem, é desejada e adiada, porque na verdade a grande partida já
está na origem: “Ah, quem sabe, quem sabe/Se não parti outrora, antes de
mim,/Dum cais”. Separação originária (“antes de mim”) que emblematiza o parto;
daí as aspirações viageiras serem sempre pontilhadas de voltas ao ponto de
partida, a infância remota.
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Partido desde a origem e desejando participar de
toda a vida do universo, o sujeito se reparte em mil pedaços entre os quais não
consegue tomar partido, e por isso se imobiliza e “fica”.
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Como pode o vazio multiplicar-se? Essa é a questão
fundamental colocada pela heteronímia pessoana.
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Na verdade, só o vazio pode acolher o múltiplo. O
pleno é a afirmação da identidade, o nada é a negação tanto da identidade
quanto da multiplicidade; o vazio libera a negatividade ou negação heterogênea,
produtora de simulacros.
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Multiplicar-se em vários eu não é, em Pessoa, a
conseqüência de uma “riqueza subjetiva”, mas de uma falta subjetiva. O que
chamamos de “riqueza subjetiva” é atributo de um ego pleno e forte, sustentado
no imaginário. O ego é a ilusão do Um, que só se divide para negar o outro e reforçar
sua própria unidade. Ora, é quando vacila o ego que a verdadeira alteridade,
como negatividade sem retorno, ocorre.
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Pessoa se viu obrigado, não lhe restava
alternativa, a multiplicar-se por falta de um ego que carregasse o excesso do
desejo. Nele, as pulsões estavam sem suporte subjetivo; como forças que são, as
pulsões exigiram vazão e, ao abrirem-se as comportas, criaram não um, mas
vários suportes. Por serem vários e “reais” (filhos de múltiplos desejos), os
suportes escaparam ao ego, assumiram claramente sua condição de héteros, de
comutadores alternantes. O sujeito não desapareceu, mas pôs-se a circular como
significância, entre um heterônimo e outro, o próprio ortônimo reconhecendo sua
condição ortopédica de suporte alternativo (que não se distingue, portanto, da
condição de heterônimos). A ficção heteronímica preenche o vazio, não pelo uno
e pleno da “personalidade” imaginária, mas pelo múltiplo heterogêneo em
processo circular de significância.
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Em Fernando pessoa “ele mesmo”, o sujeito oferece
três soluções, que não se encaminham para uma solução, mas vão e vêm,
recorrentes:
1 – solução religiosa: sou o sonho de um Outro
(Deus), para cujo olhar existo;
2 – solução por desistência: prefiro não ser de
todo, para nada sentir (quero o sono, o esquecimento, o sossego, a morte, a
posição exata da múmia; quero ser levado pelas ondas, pela noite, pela música,
etc.);
3 – solução por troca; fui trocado por outro mais
verdadeiro; ou então: quero ser outro (a ceifeira, o vizinho, o gato que brinca
na rua, [o vira-lata que faz a sesta depois de virar o lixo suculento de uma
família burguesa], as árvores que refletem a luz, etc).
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Ricardo Reis não se pergunta “quem sou”, mas “quem
somos”, o que introduz uma grande diferença. Sabendo que jamais, em tempo
algum, terá resposta à primeira pergunta (“Sim, sei bem/Que nunca serei alguém
(...)/Que nunca saberei de mim”), encontra certo consolo, conformidade, na
generalização filosófica: “Quem nos conhece, amigo, tais quais somos?/Nem nós
os conhecemos”. Ricardo Reis tenta reduzir o vazio subjetivo ao “nada da
condição humana em geral, numa racionalização que dói menos, as dores são mais
suportáveis do que o sentir individual. Distando, altivo, Reis é a ficção da
renúncia: “Nada nos falta, porque nada somos/Não esperamos nada/E temos frio do
sol”. A renúncia de Reis não é a desistência de Pessoa “ele mesmo”; ao
contrário da desistência, a renúncia é uma farsa de vitória, pelo
distanciamento voluntário da razão filosófica.
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Em nenhum dos heterônimos é tão constante, como em
Reis, a referência ao tempo que passa; mas a conseqüência dessa reflexão não o
“carpe diem” horaciano (os prazeres de Reis são congelados); é a aceitação
tristíssima e orgulhosa (por saber, e por saber que sabe), de que somos nada
porque tudo caminha para o nada. Em Reis, o desejo é mantido no grau zero:
“Nada quero”, que é um “não quero querer”, lido pela psicanálise como apenas
uma forma do desejo. Todos os excessos pretendem ser aí dominados,
principalmente o excesso de ser muitos “Vivem em nós inúmeros (...)/Há mais eus
do que eu mesmo./Existo todavia/ Indiferente a todos./Faço-os calar: eu
falo./Os impulsos cruzados (....) /Disputam em quem sou./Ignoro-os. Nada
ditam/A quem me sei: eu ´screvo”. Reis é a instância do Superego em Pessoa.
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A precariedade do Eu, significante e vazio e
suporte da ausência, apontada pela psicanálise e pela lingüística, é algo bem conhecido
pelos verdadeiros mestres da linguagem, aqueles que não falam sobre a
linguagem, mas na linguagem: os poetas.
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Na literatura de todos os tempos, há registros de
instantes em que o Eu se instabiliza e parece perder sua identidade. Camões,
por exemplo, escrevia: “Eu sou já do que fui tão diferente/Que quando por meu
nome alguém me chama,/Pasmo, quando conheço/Que inda comigo mesmo me pareço”
(Écloga II).
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Montaigne, tão atento a si mesmo que por vezes
disso se desculpa, notava que seu objeto de estudo tendia freqüentemente a
escapar-lhe: “À chaque minute Il me semble que jê m´eschappe”. No século XVII,
Martial de Brives escrevia: “Je vis, mais c´est hors de moy-même/Je vis, mais
c´est sans vivre en moy”.
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O que caracteriza o poeta moderno é,
diferentemente, a consciência de uma despersonalização substancial, inerente a
seu ofício, da perda fatal do Eu na linguagem. “Eu é um outro”, escrevia
Rimbaud, anunciando a modernidade.
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Em “Le sujet em procés”, Kristeva parte da
colocação filosófica da questão do sujeito, em Hegel e no marxismo, para
estudar certas “práticas significantes que parecem dar testemunho de uma outra
economia”; em particular, a prática poética das vanguardas em nosso século.
Segundo ela, essa prática prossegue um trabalho de negatividade que Hegel,
tendo detectado, depois “recalcou” em sua dialética, e que o marxismo afastou
de vez, em proveito do sujeito uno, racional e social. A negatividade é um
“impulso lógico que pode apresentar-se sob as stases da negação e da negação da
negação, mas não se identifica com elas por ser a representação lógica do
movimento que as produz”.
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Tomando em consideração esse conceito hegeliano à
luz da psicanálise, Kristeva identifica o processo da negatividade com as
pulsões inconscientes, que pulverizam a unidade do sujeito logocêntrico. Numa
prática como a da poesia de vanguarda, a negatividade instaura um “pensamento
impessoal”, em que o sujeito não se perde, mas se multiplica em significância.
Ocorre assim, na poesia, um processo de “dissolução produtiva”.
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Enquanto a negação “articula logicamente uma
oposição, isto é, uma dicotomia”, “a negatividade coloca um heteronímia”.
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Em outro trabalho (“La fonction prédicative et Le
sujet parlant”), Kristeva demonstra que essa heteronímia (estado e consciência
de uma alteridade) se enraíza na própria estrutura da linguagem. Baseando-se em
Benveniste, ela mostra que a função predicativa, base de toda linguagem,
implica uma divisão obrigatória do sujeito, seu apagamento ou sua redução a um
ponto cego.
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É a força heteronômica do poeta que perturba sempre
as colocações racionais de Pessoa (seus minuciosos projetos com explicações e
propostas tripartidas). É essa força que provoca suas contradições, fazendo com
que o mesmo que pretende “organizar” Portugal se insurja contra “o preconceito
da ordem”; que a aspiração por um salvador da pátria derive para o mito
sebastianista, até o sonho paranóico de ser ele mesmo o Encoberto retornado.
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René Char, outro grande poeta de nosso século,
renuncia à individualidade, com seus pares, para afirmar de modo incisivo a
ação da poesia: “O desígnio da poesia sendo o de tornar-nos soberanos ao
despersonalizar-nos, tocamos, graças ao poema, à plenitude do que só estava
esboçado ou deformado pelas jactâncias do indivíduo. Os poemas são pedaços de
existência incorruptíveis que jogamos na cara repugnante da morte, mas
suficientemente alto para que, ricocheteando nela, eles caiam no mundo
nominador da unidade” (Le rempart de brindilles, 1953). A experiência de
esfacelamento do ser e do universo é vivida por Char (como o fora antes pelo
Rimbaud de Illuminations) de um modo vital: “Na explosão do universo que experimentamos,
prodígio! os pedaços que desabam estão vivos” (idem).
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Pessoa viveu essa experiência de modo mais cético.
Sua poesia, para ele mesmo, é um “pelo menos isto”: “Mas ao menos fica da
amargura do que nunca serei/A caligrafia rápida destes versos,/Pórtico partido
para o Impossível”. O grande papel de Pessoa, na história da poesia moderna, é
o exercício da extrema lucidez sobre as falações do sujeito: “É por ser mais
poeta/Que gente que sou louco?/Ou é por ter completa/a noção de ser pouco?”. É
por ter renunciado a ser gente, para ser poeta (quase louco), que Pessoa é
muito. É por ter chegado, em sua poesia, ao fundo oco do abismo, ao niilismo
extremo – cujas virtudes críticas e transformadoras do real Nietzsche apontou –
que Pessoa assume uma função positiva, numa História vivida por ele mesmo como
negativa.
#RIO DE JANEIRO, 20 DE MARÇO DE 2020, 6:01 a.m#
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