GRAVES E SUNTUOSAS BANALIDADES GRAÇA FONTIS: PINTURA Quinzinho de Parafusos a Menos: SÁTIRA
Bons
dias!
Era uma
vez um vereador, demagogo, chamado Alfredo, o qual em cosmografia professava a
opinião, rangia os dentes, tirava as vestes e pisava em cima, armava o maior
barraco, rodava a baiana em contrário, de que este mundo é um imenso tonel de
marmelada, e em política pedia poder para a o povo. A sua plataforma de
candidato às eleições estava nesse bordão: “Eu sou vós; vós sois eu”. Com ele,
noutra eleição, tornou-se presidente da Câmara Municipal. Dois dias de
barraquinhas, arrasta-pés, comes e bebes à revelia.
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Eleito,
declarou que, para maior lustre de sua pessoa e do cargo que ocupava, passaria
a chamar-se, ao invés de Alfredo, Alfredão. Sob conversas em todas as esquinas
da cidade, elogios os mais empolados – o que não conseguira realizar em sua
gestão de simples vereador, tendo encontrado pela frente, de costas, de lado,
inúmeras oposições, inimigos correligionários, para um deles esteve quase
chamando a
Polícia
Militar e Civil na Câmara, de tanta pressão que estava sofrendo, só não o fez
porque é um órgão público, sobremodo comprometedor a polícia lá; colocou-o para
fora do gabinete, quase aos murros e pontapés; presidente mandava e não pedia,
ordenava e não solicitava; o povo chegaria ao poder -, sentiu-se o grande, o
máximo, o maior dos políticos em toda a história daquela comunidade.
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O poder
desmiola quaisquer mentes, tempo das grandes banalidades graves e suntuosas
para consagrarem e abençoarem as condutas, posturas. E quando não se tem
qualquer coisa a fazer, inventa-se, cria-se, institucionaliza-se asnices as
mais variadas. Desmiolar o que não tem miolo é impossível, soa aos ouvidos uma
cretinice das mais divinas. Miolo Alfredão não tinha, e para mostrar ao povo
que estava equivocado com este juízo a seu respeito começou a sua trajetória de
presidente criativo.
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Como era
careca desde tenra juventude, decretou Alfredão que todos os vereadores fossem
igualmente carecas, ou por natureza, como ele, ou por máquina a zero, e
proclamou este ato em razão de princípios políticos, isto é, que a unidade
moral do Estado exigia irreversivelmente a conformidade das cabeças.
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Ordem de
Alfredão, se não cumprida à risca, tinha graves conseqüências, o homem sabia
ser autoritário, ditador, além do descrédito do povão, os jornais
sensacionalistas publicando suas matérias acintosas, os podres todos nas linhas
bem traçadas; ele mesmo colaborava com os editores que, porventura, não
estivessem a par de alguns pormenores da pessoa na pauta das críticas ácidas,
elencava para eles sempre as coisas particulares e íntimas, sobretudo aqueles
que pulavam a cerca sem dó nem piedade, sem qualquer medo de as esposas
desconfiarem, o povo mandar a pua. Lá foram os vereadores, um a um, à barbearia
de Praxedes rasparem as cabeças, deixá-las brilhando, expostas ao sol
escaldante de todos os dias. Não se podia usar boné, isto era contra a unidade
moral do Estado. Outro ato em que revelou igual – não sei se diga “sapiência”,
não sei se diga “sabedoria”; indeciso, prefiro dizer “sabedoria da sapiência” –
foi o que ordenou que os vereadores cortassem os bicos dos sapatos do pé
direito, sem alteração na sola, deixassem os dedos à mostra, dando aos seus
súditos o ensejo de se parecerem com ele, enfim “eu sou vós; vós sois eu”, que
padecia de um calo seco sem solução. Agora, imagine o leitor, os vereadores
carecas, de terno e gravata, o pé de sapato direito sem bico, que cena
excêntrica, exótica.
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Passava a
tarde inteira em sua cadeira giratória na presidência da Câmara Municipal
espremendo os miolos para outras criações, invenções. Paletós com as mangas
cortadas, esfiapadas, só a manga comprida da camisa, impensável, o povo iria
dizer que suas intenções eram de fazer do órgão público um picadeiro de circo,
pane et circense. Havia colocado os óculos sobre a mesa para coçar os olhos,
pois não tinha dormido minuto sequer à noite, estavam vermelhos, ardendo com a
falta de sono, passara a noite elucubrando invenções para os seus quatro anos
de presidente. O uso dos óculos redondos não se explica de outro modo senão por
uma oftalmia que afligiu a Alfredão, logo nos primeiros seis meses de sua
gestão de vereador. A doença levou-lhe um olho, e foi por esta razão que se
revelou a vocação poética de Alfredão, porque, tendo-lhe dito uma das
secretárias, chamada Õmega, que a perda de um olho o fazia igual a Aníbal, -
comparação que muito o lisonjeou, sentiu-se o único político-poeta da
comunidade, faltava-lhe fazer versos. O vice-presidente, Beta, que amava
ridicularizar Alfredão com suas vaidades de grande político, de homem orgulhoso
de sua estirpe de personalidade máxima aproveitava todas as oportunidades que
se lhe revelavam para este objetivo, deu um passo à frente, e achou-o superior
a Homero, que perdera ambos os olhos. Não dera outra coisa: ordenou que todos
os vereadores usassem óculos redondos, a lente esquerda escura, através dela
não se enxerga nada.
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Houve
algumas contestações dos vereadores, que besteirada era aquela, não sofriam das
vistas, não haviam perdido um olho devido a oftalmia. Eles não eram ele e ele
não era eles. Contestação vã em razão de suas chantagens, ameaças. Carecas,
bicos de sapato do pé direito cortados, mostrando os dedos, óculos redondos, a
lente esquerda escura...
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A sua
namorada, Heloísa Brandão, fazia os seus versos, nas horas de folga, na Clínica
Oftalmológica Santa Luzia. Era ela prendada, educada, graduada em História pela
faculdade, cultivava a música e a poesia, amava os cantores da Bossa Nova,
amava os poetas do Modernismo, especialmente Carlos Drummond de Andrade; era
requestada por alguns políticos para um poema sobre eles, seus sonhos e
utopias, suas esperanças, suas sensibilidades e sentimentos nobres, isto era
muito importante para eles, o povo veria que vida pessoal e vida política eram
duas coisas ao extremo opostas, podiam cometer as maiores gafes na carreira,
podiam praticar atos verdadeiramente absurdos e arbitrários, mas como homens a
coisa era bem diferente, eram homens dignos de reconhecimento e consideração
por suas idoneidades sentimentais e sensíveis. Heloísa tinha sua coluna no
Diário da Comunidade, um tablóide semanal, onde publicava a sua obra poética,
era bem aclamada pelos seus leitores, eram matérias de estudo nas escolas, os
alunos babavam com o romantismo dela, seguiam à risca na vida o seu romantismo,
era uma espécie de “clube dos românticos” com os poemas de Heloísa Brandão.
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Em
parceria com todas as instituições de ensino, promoveu um concurso literário. O
aluno ou aluna que escrevesse o melhor poema sobre política, elogiando os seus
feitos e obras sociais, seria agraciado com uma bolsa de estudo até a
faculdade, não importava que não fosse eleito noutras eleições, a bolsa de
estudo seria tirada de seu bolso, dinheiro não lhe faltava.
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Concorreram
ao concurso vinte estudantes de todos os níveis de ensino, desde o médio ao
superior. Um dos poemas foi julgado por Heloísa Brandão superior aos outros
todos. Alfredão não aceitou o poema, pois que o aluno comparou a política dele
com o seu calo seco sem solução, aliás com o título Calo seco. Anulou por um
decreto o concurso, e mandou abrir outro. Não queria de modo algum poemas de
temas políticos, melhor seria se os alunos escrevessem poemas românticos. Por
uma inspiração de insigne maquiavelismo, ordenou que se empregassem só palavras
eruditas, destas que não se usam mais, constam apenas de dicionários, foram
esquecidas de todo ao longo do tempo. Não havia nenhum concorrente, mesmo da
faculdade, que houvesse estudado os clássicos, quase ninguém ouvira ao menos
falar o nome deles. O poeta que escrevera o poema indicado por Heloísa Brandão
como superior aos demais, lera às pressas alguns poetas clássicos, os que pôde,
tinha só um mês. O seu poema outra vez foi o melhor. Alfredão de novo anulou
esse segundo concurso, sua justificativa foi que o poeta achincalhou a sua
sensibilidade com o bordão “eu sou vós e vós sois eu”, que usou como
estribilho; vendo que no poema vencedor as máximas latinas davam singular graça
aos versos, contrastavam com o estribilho, revelando intenções jocosas,
decretou que no novo concurso ninguém mais usasse erudição nos poemas, só se
poderia usar palavras modernas e particularmente as da moda. Terceiro concurso,
e terceira vitória do poeta.
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Alfredão,
soltando os cães de tão furioso, abriu-se com o vice-presidente, pedindo-lhe
sugestões inteligentes para o concurso, precisava dar a bolsa de estudo, com
isto conquistaria a confiança das escolas, “os políticos vão e a cultura fica”,
ela é que abre o desenvolvimento e progresso em todos os níveis, um povo
poético, culturalizado, faz singular diferença nos destinos históricos e
políticos. Se não desse a bolsa ao poeta, o seu bordão cairia do galho,
perderia a confiança de todos, estaria aniquilado.
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-
Alfredão, a minha idéia é que você mande recolher das escolas todas as obras de
poetas clássicos, todos os dicionários, e se encarregue de compor um novo
vocabulário. Você não gostou das máximas latinas. Você não gostou dos termos
modernos, da moda mesmo. Os alunos carecem de novo dicionário.
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Alfredão
com sua namorada Heloísa Brandão por três meses, dia a dia, de seis horas da
tarde às três da manhã, prepararam o novo dicionário que seria usado pelos
alunos para escreverem o poema da vitória, e mais, como adendo no dicionário,
poemas de Heloísa Brandão com as novas palavras, que serviriam de inspiração
aos alunos. Decretou o novo vocabulário, o uso dele em todas as escolas, seria
a língua oficial daquela comunidade, e declarou que ia fazer-se o concurso
definitivo para obter a confiança das instituições de ensino, dar a bolsa de
estudo. A confusão passou do dicionário aos espíritos; toda a gente andava
atônita, ninguém entendia ninguém, não estava havendo qualquer tipo de
comunicação.
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Dera
Alfredão noventa dias para o novo concurso e foi recolhido trinta poemas. O
melhor deles, apesar da língua absurda, foi do mesmo poeta, juntamente com o
vocabulário novo usou os ditos populares referentes à política, uma verdadeira
crítica às banalidades graves de Alfredão. Alfredão, alucinado, mandou expulsar
o poeta da escola, aluno desta índole era uma pedra no sapato do sistema.
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Desgostoso
de conquistar a confiança das instituições de ensino, de premiar o vencedor do
concurso, encerrou-se por quinze dias no gabinete da Câmara Municipal, lendo a
política de Aristóteles, passeando ou meditando sobre os seus próximos passos
na política, o que mesmo iria fazer para executar com eficiência os quatro anos
de gestão como presidente da Câmara Municipal.
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Parece
que a última coisa que leu foi um poema do poeta Jaime França, e especialmente
estes versos, que parecem feitos de encomenda:
Por onde
andar, mil acusadores
Haverão
de espreitá-lo,
Vituperando-lhe
os passos,
Insídias
e cavilações,
Aos quais
ele, simplesmente,
Adoraria
aniquilar,
Num
esforço sorrateiro e contínuo,
Para
atingir tal intento.
#RIO DE
JANEIRO, 27 DE MARÇO DE 2020#
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