**MEQUETREFEANDO AS TRAQUINAGENS** GRAÇA FONTIS: PINTURA Quinzinho de Parafusos a Menos: SÁTIRA
Mequetrefeando as traquinagens da vida eterna, as
tramóias da verdade absoluta, por vezes bengala, por vezes muleta das dúvidas e
inseguranças, medos e incertezas, vou seguindo, passo a passo, os terrenos
baldios da con-ting-ência, iludido de que nada é eterno, tudo é efêmero, o sol
nasce para todos, até para os enjaulados, embora quadrado, sabendo, de antemão
às revezes, o abismo me fora reservado desde a eternidade, quando nem mesmo a
vida tinha qualquer noção de que eu seria vida, de terreno baldio em terreno
baldio chego ao abismo, e lá vou eu flutuando profundeza abaixo, tornando-me
cinzas no ar, o vento me soprando para as arribas do céu.
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Mas é mequetrefeando que continuo vivo, seja a vida
como for, mas é vida, e, quando digo ser mequetrefe é o segredo da longevidade,
há quem ria de sapatear e chorar, como pode haver alguém tão despirocado assim,
mequetrefidade ser segredo de longevidade, só se for na rima e rima não passa a
lábia na morte, perguntando-lhe eu se nalguma circunstância não fora
mequetrefe, ajudando-lhe a vencer as dificuldades, sou esculhambado de fio a
pavio, quase levando soco direto nas fuças.
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Fico pensando com os meus botões, sentado numa tora
de madeira à porta de meu barracão, o porquê de as pessoas se irritarem tanto,
quando lhes pergunto se a mequetrefidade não lhes ajudará na vida, tomam a
coisa como ofensa das bravas, pior que a mamãe lhe haver parido e não dado a
luz. Para mim, chamar-me "mequetrefe", dizer que
"mequetrefo" com tudo na vida, é um grande orgulho, sinto-me feliz e
alegre, prazer sem limites. Por exemplo, não há um grão de arroz e feijão na
minha casa, um pedaço de músculo de boi para fritar, haja dente para triturar,
desde que seja possível engolir, não engasgando, penso numa pessoa que há muito
não vejo, vou fazer-lhe uma visita na hora do almoço, todo carinhoso, solícito
abraço-lhe, conto-lhe algumas novidades do dia a dia, convida-me para almoçar,
inclusive com direito a um suco de maracujá, como bem, sinto-me satisfeito.
Posso até passar dois dias sem nada comer. Não mequetrefeasse o almoço do
amigo, de tanta fome não conseguiria nem dormir, passaria a noite insultando os
deuses que me jogaram no mundo. Minha mãezinha batia-me na cabeça, dizendo:
"Seja mequetrefe, mas não roube. Ser mequetre é uma virtude, filho. O céu
está cheio de mequetrefes..." E minha mãe era funcionária concursada da
Prefeitura, advogada de extrema confiança dos prefeitos. Não iria ensinar-me
uma coisa errada, algo censurável até pelos cretinos e imbecis. Morreu, nada
deixou para mim, era filho de outro homem, o padrasto ficou com tudo. Na rua da
amargura eu, ser mequetrefe era a única coisa que me ajudaria na vida. Como
"bicheiro", saí pela vida, mequetrefeando com as dificuldades, o que
ganhava dava para o aluguel, pequenas compras na mercearia, água e luz.
Mequetrefeava para sobreviver um pouco melhor, só um pouquinho, fazendo jogo de
bicho para as pessoas.
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Nasci mequetrefe, com certeza vou morrer
mequetrefe. O mais difícil é mequetrefear as dúvidas do além. O papa já disse
que no inferno não existe fogo. Já é alguma coisa. Mas não disse que o inferno
não existe. Será que não existem as belezas inestimáveis do paraíso, vive-se pela
eternidade feliz, alegre, cheio de prazeres e tudo mais? E se isso não for
verdade - o papa não falou a este respeito -, para que então fui mequetrefe na
vida, isto me garantiria a eternidade no paraíso? Vou vagar no espaço até a
consumação do mundo, da terra, de todas as coisas? Mequetrefe no espaço - quê
humilhação! Mas enquanto houver vida, vou mequetrefeando!
@RIODEJANEIRO, 07 DE MARÇO DE 2020@
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