#MARACUTAIA: JOGOS DA MENTE# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA
Devasto os mares e rios de mim, o meu ser visita os
mais recônditos e longínquos sítios de verdades - quando serei uma presença?
Busco o solo profundo onde fixar raízes - quando serei verdadeiro? Ou melhor:
onde fixar raízes, o profundo solo busco - quando serei a minha verdade? A
absurda desgraça: a autoflagelação apresentar-se-me nítida e límpida, admiti-la
como um estilo de imergir nas profundezas tumultuosas...
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Peregrino em direção às ruínas dos templos: lá
encontro a beleza, que é o encontro com o sentido de mim. Acaso posso mesmo
dizer com convicção ser a beleza, pois ela passou pelas perquirições,
indagações, visão de forma, conteúdo, estilo - em suma, foi racionalizada e
intelectualizada? Acaso posso mesmo dizer ser o sentido de mim, pois crio
fantasias a fim de envelar as censuras? Cumpre conscientizar-me da própria
tristeza e fazer virtude de toda manifestação do espírito. Coloco ordens frente
a mim, com a intenção de vivê-las inteiramente, mas sei serem apenas uma obra
que vislumbro e estudo, a fim de perceber-lhe o fundo. Fossem estas ordens
vividas com sinceridade, permitindo-me cada vez mais ir ao fundo de mim. Jamais
sou sincero comigo. Todas as emoções vividas, pensadas, entendidas, aconteciam
e fluíam sempre nos labirintos da censura.
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O sentimento de ser feliz vem surgindo tímido,
discreto, resguardando-se a todo instante de uma simples ameaça à sua
inteireza. Deveria sentir-me angustiado, mas a angústia significa ora apenas
uma ideia destilada e desenxabida. O quotidiano das coisas mostra a alegria
pela felicidade, o contentamento pela solidão: cercado apenas pelas pessoas
íntimas, longe de quaisquer pistas, não sou efígie de templo. Anos a fio, num
processo de ir e vir, buscando entender a estrutura das emoções, terminaram por
dizer a mim mesmo ser uma fuga de elaborar a autenticidade, burilar o
bem-estar, delinear o amor e afeição.
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Censurei-me em todos os níveis - as dimensões puras
e nítidas nem são percebidas a olhos nus por estarem unicamente servindo de
justificativas e fugas aos medos e resistências. Não abandono e nem negligencio
as emoções: sinto-as a partir de um outro ângulo das atitudes e autenticidades.
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Um brilho todo especial sinto nos meus olhos. Um
vento surge ininterrupto, processando-se. A atitude de um outro em mim. Encontrei
o modo de observar e saber este outro: em mim dentro um espelho para refletir a
imagem do outro. A volúpia que da atitude do outro emana esgota-se e renova-se
a todo instante. Sei, no instante de agora, nem um pouco estou em condições de
ir ao fundo de meus sentimentos, pois a mim afigura-se uma estratégia e
subterfúgio sutil de não assumir quem sou, mas sei posso fazê-lo, mostrando-me.
Meu ato, sem dúvida, necessita estar harmonizado com os meus desejos. Há um
ditado dos brancos nos tempos dos índios americanos: "para se tirar água
de uma cisterna há-de se mergulhar a lata bem fundo." Crio novos sentidos
para os sentimentos, desejo abarcar o mais fundo em mim. As próprias delícias
fazem-me sentir poderia dormir ao contacto do sopro mais fresco.
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Demônios ociosos das sepulturas. Nestes longos e
quase intermináveis anos, pensando estar a enterrar as arbitrariedades,
construindo um homem, estive por todos os níveis buscando enterrar o homem,
aflorando as arbitrariedades inteiras e plenas. Nefasta escuridão do homem no
mundo. De uma indecência inacreditável, nossa, as trevas, enigmas, mistérios da
inconsciência. Os desejos nunca estiveram de acordo com os meus atos. Buscava,
por vezes, uma explicação plausível e sincera de desejar ser o mais autêntico e
ilegal possível, e a farsa era da autenticidade e legalidade. Não me é sabido
imprimir justificativa, nem registrar explicações.
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Contudo, criando margem a contradicções de toda
ordem, ambiguidades de toda natureza, sinto-me exigir de mim um comportamento,
uma atitude. Bem fácil desejar a inautenticidade com a intenção única de
justificar e explanar as gratuidades: não há o dever de ser autêntico.
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Compreendi, enfim, as dores manifestas, as
angústias mais contundentes serem as censuras mais ferozes e agressivas. E hoje
sinto em mim um desejo enorme de desvencilhar-me delas, viver lúcido e
consciente a afetividade e amor mais puros. Contudo, nem sei ser verdade este
desejo, pois possuo o engenho e a arte de transferir a dor íntima para a dor da
superfície, e neste instante necessito de anestesias.
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Faz um longo tempo evito dizer: "Possuo um
super-ego mais que aguçado: é feroz." Digo a mim ir dificultar aos
leitores essa linguagem analítica. Dizia a mim o meu superego haver sido
formado aos seis meses de útero materno, aquando comecei a sentir os primeiros
indícios da rejeição, isto fora fruto de uma regressão psicanalítica. A questão
em verdade é ser o "ego" imperativo. É verdade. Sinto. Não queria em
absoluto acreditar e assumir, pois que no mundo busquei viver todas as
inautenticidades para não mostrar rejeitava a mim mesmo. E mais: a fim de não
assumir frente a mim haver sido rejeitado. Dói imenso. Faço um enorme esforço e
digo. São tantas as maracutaias dos jogos da mente.
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Não basta ser sensível para permitir a
autenticidade. Como teria amado seguir-me os passos e saber para onde estava
indo!... Como teria gostado de abordar-me, mas me não permitia fazê-lo, a fim
de me não ferir o orgulho, a vaidade!...
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Causar-me-ia maior desamparo com as necessidades de
superação, entendimento, compreensão. Ultrapasso a linearidade com a simples
intenção de, a cada instante, o coração sem vínculo algum, indistintamente,
através de todas as coisas, ser o viver do bem-estar, da paz. Providas de
significação e significado, estas palavras tecem a mim com luxo e requinte. A
superfície da beleza envela o sentido, o vivido, e mesmo que hajam o engenho e
arte de encontrar nela o que há de mais real e verdadeiro, permanece inda opaco
e destilado. Não digo haja a beleza real e verdadeira, mas ela nasce sempre de
atitudes coerentes e sinceras.
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Expressei estas palavras, mas não nasceram de
atitudes e sim de gestos. Não são belas, nem constituem beleza.
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Vou terminar à beira do limiar do infinito, onde também
terminam os horizontes. Nossa, inacreditável! Lembrou-me haver dito isso a uma
escritora num encontro na Casa de Mário Andrade, São Paulo, olhando a moldura
do quadro do escritor: "Também vou terminar à beira do limiar do infinito
contemplando o horizonte...Acho que somos mutantes..." Simone era
vislumbrada com as mutâncias, acho que faz parte da cultura paulistana isto de
ser mutante. Admiro quando o paulistano fica estupidificado com uma coisa, o
"Nossa..." surge na língua de imediato. Se algo que encanta,
acrescenta "Lindo." Todo o seu estado sensível se mostra presente.
Mas não lhe pregue peça para ver-lhe os sentimentos e emoções suaves, serenos,
a consequência é drástica: são as costas viradas para sempre. Havia silêncio
entre nós, olhávamos para as coisas alheios a tudo. Soltei esta para quebrar o
gelo como se tem costume dizer. Simone estupidificou-se, abriu a bocarra,
esbugalhara os olhos, a respiração tornou-se forte, não iria enfartar-se devido
a uma frase quebra-gelo. Convidou-me gentilmente para passar o domingo em sua
residência no Jardim Paulista, iria receber outros amigos. Na piscina,
explicou-me a razão de haver ficado estupidificada com a frase quebra-gelo:
"... a mente do poeta eloquente e criador enquanto pensador filosófico...
é impressionante." As impressionâncias imperaram nos banhos, no whisky, no
banquete de almoço. Cada um dos convidados querendo mostrar as suas
impressionâncias. Não havia um escritor ou poeta na sua casa, só pessoas de
outros níveis. Amei o encontro, mas nunca fiquei tanto em silêncio como lá
acontecera.
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Até ao último limite... A construção de todas as
censuras, a partir dos medos, resistências, fugas, trouxeram-me ao envelamento
do mundo inteiro, abrindo-me as portas para todos os infernos - e as vaidades
das palavras deliciam-me com a descrição escultural e artesanal delas. Nada
nelas é como parece: tem sempre coelho atrás do mato.
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Quê reviravolta! Nossa, inacreditável!...
#riodejaneiro#, 05 de agosto de 2019#
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