CARTA À HUMANIDADE** GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA
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Pedra Branca, 18 de julho...
À humanidade,
Rua do Desterro, s/nº
Mundo Inteiro - CEP: 66.666.66
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Dirigir-vos a palavra: não é tão fácil quanto
alguém possa imaginar!... Se imaginar, só fazê-lo: verbalmente, sentir-se-á
falando com o vento, se escrito, haverá o instante em que as palavras não se
re-velarão.
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Quem não gostaria de vos dirigir as palavras,
confessando pecados e pecadilhos, tramóias e sandices, tripúdios e culpas,
chantagens e remorsos, ter vendido a alma a Mefistófeles, saído da Igreja
Católica, enchafurdado num templo crente, evangélico, orado com fervor, doado o
surrado salário, todos os bens, inclusive as cuecas ao corrupto dirigente -
hipocritamente chamado Pastor ou Condutor de Ovelhas - para ganhar um caldeirão
no inferno, os momentos felizes e tristes que tivera em vida, até o momento que
começou de desejar essa conversa? Muitas vezes para se sentir importante,
tentou dirigir-vos a palavra numa cartinha. Olhe que alguns, apesar dos
pesares, souberam dizer qualquer coisa, os prazeres e alegrias que sentiram com
amigos íntimos, pessoais, quem realmente amaram na vida, desejaram estar ao seu
lado. Não há quem não tenha imaginado, desejado, tentado, conseguido.
Servindo-se da fala – sozinho no seu canto, o medo do sentimento de vergonha de
ser tachado louco, doido, varrido. Servindo-se das letras, através de missiva,
sem dúvida escondida dos familiares, o maior amigo não sabendo; através de
romances, novelas, contos, poemas... Todos nós os homens desejamos nos dirigir
à humanidade.
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Os caminhos foram muito diferentes?!
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Posso garantir-vos que muitos tentaram dizer-vos
algo, as palavras faltaram ou começaram a dizer-vos, mas sentiram que era
inútil, não sentia ninguém ouvindo senão ele(ela). Acharam fácil, mais fácil
até que se aproximar de alguém, mas não conseguiram fazê-lo. Estava falando
consigo mesmo e era o que menos desejava, queria ver-se o mais distante de si,
não queria ouvir a própria palavra. Pensastes o que é isto alguém não querer
mais ouvir a própria palavra? Como aquele sujeito que diz falar para dentro,
está avesso! Quando os grilos cantam, sento-me aqui na rampa de entrada do
casebre, bebo café requentado, acendo um cigarro. Às vezes as idéias não vem,
ou vem numerosas - e a folha permanece meio escrita, como estava na véspera.
Releio algumas linhas, que me desagradam. Não vale a pena tentar corrigi-las.
Afasto o papel. As minhas palavras são apenas palavras, reprodução imperfeita
de sensações, sentimentos de medo, insegurança. Para senti-las melhor, apago as
luzes, deixo que as sombras nos envolva até ficarmos dois vultos na escuridão.
Criaram-me um mito de facilidade, agilidade e habilidade com as palavra - puro
mito, em verdade, indecente e insolente. Diante de todas as dificuldades,
obstáculos, não luto, contorno-lhes, porventura haja aprendido este segredo com
as águas.
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Meu Deus! O que é isto, a humanidade? Tinha de
deixar disso de vos dizer algo, se houver quem o saiba será objeto de chacota,
conversar com a humanidade, só mesmo na cabeça de insano isso é possível.
Rides. Mas não é verdade? Ou não? Não estou sabendo de muitas transformações e
mudanças. São considerados, os que vos dirigis a palavra, gênios, homens de
grandes virtudes, os monstros sagrados. Realmente está diferente hoje, na minha
época não era assim.
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Desistiram do desejo, perguntando para que isso de
conversar com a humanidade, dirigir-vos a palavra, o que poderá ganhar com isso
é nada. Não se vive de nada. O maior sofrimento se anuncia: será que tenho algo
a dizer? Será que serei ouvido, aclamado, reconhecido por isso? Nada. Isso é o
que não queria se tornar.
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Deus meu!... É muito difícil dizer-vos qualquer
palavra, aproximar-me de vós, diria até ser complexo e complicado olhar-vos de
esguelha – rides; olhar-vos de esguelha, o que vem nessas letras, não é mesmo?
-, e eu, extasiado com a anunciação de uma luz no subterrâneo das almas, dirijo-vos
essas palavras, registradas na folha branca de papel, o que diria senão um dedo
de prosa nascido de nossas conversas, nossos diálogos ao longo de tantos anos.
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Alguns acreditaram que lhes fosse possível
dirigir-vos algumas palavras, não iniciando com aqueles patrimônios da
humanidade, “Como vai? Tudo bem?”, e entrando no assunto que é o mais
importante, sem devaneios. “A minha vida está uma coisa de louco. Queria
conversar com todos os homens, ver o que pensam de tudo. Peço que todos se unam
e rezem por mim, quem sabe Deus possa ouvir”. Escreve muito bem até. O que de
imediato disse na “lata”, revelou, anunciou, manifestou? Está angustiado,
desesperado, fracassado, triste, abandonado, exilado, ressentido, magoado... –
meu Deus, a relação não teria fim; está nas últimas de sua vida, quer que
alguém o salve, que a humanidade lhe dê a mão para se levantar. E só. Não
continuam, e se continuam são os primeiros a reconhecer que foram asnices que
escreveram na folha branca de papel. Imaginais vós que os papéis estão em
reunião a porta e janelas fechadas, estão decidindo se ausentarem do mundo,
estão exaustos de tantas asnadas neles escritas... - em que mundo estão
vivendo?
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Não terei tanta pré-ocupação de saber se, em
verdade, estais entendendo as trilhas por onde ando, passo a passo, em busca da
vida. Aliás, isso é importante, pois que posso des-envolver o que intenciono
fazer com mais espontaneidade – sabeis daquelas situações em que alguém gasta
mais o tempo em explicar do que consegue dizer realmente? Compreendestes com
perfeição, cabe-me ir além de vossa perfeição, preenchendo os desejos e
vontades de expressão, revelar-me, por que decido, noutras dimensões do
espírito, escrever-vos essa missiva?
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Admito, então, que seja fácil escrever-vos, dirigir-vos
a palavra. O alguém seja eu próprio, que resolvera fazê-lo, embora a
experiência de conversarmos desde a infância. No fundo, reconheço os limites, e
quero transcendê-los, quero sentir-me-sendo as palavras. Desde a tenra
infância, ouvi de todos que o homem para ser homem tinha de plantar uma árvore,
ter um filho, escrever um livro, de preferência poesia. Se me perguntasse o que
é preciso para se tornar homem, diria com empáfia: transcender tudo isso. Não
estais errada nesse aspecto, e desde já vos parabenizo pela intuição e
percepção de meus desejos mais escondidos.
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Imaginemos alguém, num sábado, à hora do
crepúsculo, após o banho, no seu quarto, sentindo-se sozinho, angustiado,
triste, aborrecido, deprimido, resolve escrever para alguém de suas relações,
não residente em sua cidade – se residisse na mesma, mais fácil seria ir à casa
dele ou dela, abrindo-se, confessando-se; ouviria alguns conselhos a serem
colocados em prática, caber-lhe-ia apenas selecionar os que dariam maiores e
melhores resultados no restabelecimento da angústia e depressão -, falando de
sua vida, seus temores e sonhos...
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Pigarreia. Olha em volta de si, examina seu quarto
onde não há livros nem quadros. Levanta-se com um gemido, caminha até a cama,
deita-se sob as cobertas, que, apesar de muito velhas, estão limpinhas e
cheiram bem. Uma paz sem medidas. Laços frágeis que pareciam correntes eternas
soltaram-se.
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Há vinte anos ele havia escrito no alto daquela
folha: O QUARTO e nunca mais conseguira escrever uma só palavra. Ele olha pela
janela, da cama mesmo, deitado. Há neblina no céu, há neblina nos seus olhos.
Duas escamas caem de seus olhos, a neblina do céu se esgarça e ele vê a
estrela. Ah, esperou por ela tanto tempo!... Desejou-a com toda a força do
espírito, determinação almática. Ela aproxima-se cada vez mais. É linda, linda,
com os seus olhos de fogo. Deita-se ao seu lado, nua, quentinha, sorriso que só
especialista pode ver. Agora ele está nela e ela está nele e nenhum dos dois
nunca mais vai morrer, imortais de última instância.
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Pura poesia. Estar deitado na cama, janela aberta,
a lua se projetando no peito, a claridade, a noite. E usei dessa/desta poesia –
a poiésis me habita, digo-vos desde já para que vos inteireis de mim por
inteiro, e, ademais, se não sabeis o que é isso “poiésis”, é tempo de vos
inteirar, pesquisando a arte grega, os filósofos gregos. Então, aquilo de se
conselho fosse bom não seria dado, e sim vendido, é real: aconselhar-vos a ler
e pesquisar a arte grega não é bom, só mesmo o pior inimigo pode fazer isso. Os
tempos mudaram e a noite custa a passar.
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Sim... Mostrais com engenhosidade que estais atenta
a todas as dimensões da vida, estejam presentes e fortes na alma e no espírito,
e desejais mesmo saber o que nesses longos anos de nossas relações consegui
acolher e recolher no íntimo, abrindo-me à plenitude, à amplitude, se é que vós
podeis traduzir essas/estas palavras, pois que eu fui tomado por um alvoroço no
íntimo que precisava afastar-lhe para continuar a vos dirigir as palavras,
devido a isso o disse com tanta ansiedade, num fluxo de inconsciência e
consciência exacerbado, e no meio do pensamento senti que havia perdido o chão
sob os pés, mergulhando, saindo, ofegante, as palavras na ponta da língua,
conseguindo segurar-lhes pelas tangentes, eram-lhes os pontos frágeis. O que
isso importa?!
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Escrevendo-vos essa missiva sentir-me-ia estar em
vós e vós estais em mim, e nenhum de nós dois nunca mais vai ser esquecido na
história, falar de vós suscita a minha lembrança, falar de mim exige a vossa
presença que é quem pode com categoria apresentar-me como mereço. A sede e fome
de eternidade poderiam ser realizadas a partir do instante em que tomasse da
pena e vos escrevêsseis uma missiva; sirvo-me de vós para realizar os sonhos
que acreditei não ser possível caso assim não fosse? Por que não assumir isso?
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Contudo, creio ser-vos imprescindível considerar
que não pensara em nada disso que estais a questionar-me; escrever-vos, desde
que iniciei, não é outra coisa senão registrar o que aprendi, des-aprendi, o
que segui ou não com os ensinamentos que recebi, e sobretudo ter o testemunho
em termos de experiência e vivência de haver mantido colóquios convosco desde a
infância. O que estais apresentando como questionamento e indagações,
percucientes, não tenho dúvidas, mas são considerações que pretendia ir
trabalhando nessa missiva, mas vós já o adiantais, deixando eu como um intróito
à margem.
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Quem sabe um artista quem sente o que é isto
intróito à margem possa revelar que nessa missiva que vos dirijo, neste início
palavras que prometem, o importante é o que transcendem a esse momento e
instante, dão asas à emoção. O artista seria se realmente reconhecesse os seus
dons, talentos, privilégios a si doados gratuitamente, e que ele tornou isso
uma busca de entender e compreender os caminhos do homem, do eu, da
humanidade...
#riodejaneiro#, 08 agosto de 2019#
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