#O PROBLEMA DA VISÃO DE MACHADO DE ASSIS# Manoel Ferreira Neto: ENSAIO
O tempo não
corre em vão para os que desde o berço foram condenados ao duelo infausto entre
a aspiração e a realidade.
(Machado de
Assis)
Desejamos,
neste ensaio, como paradigma, o problema da visão de Machado, porque, tendo
embora atuado em outro tempo, viveu, para atender a todas as exigências – e não
eram poucas – do trabalho literário, acumulado com o de modelar burocrata, a
“vertigem ocular” dos tempos presentes.
O mestre,
gênio das letras pátrias, adquiriu a miopia no ofício tipográfico, em que se
iniciou nos albores da adolescência. Aos vinte e cinco anos de idade, a pena de
Henrique Fleiuss principiava a caricaturá-lo com o pince-nez oval que o
acompanharia depois, orientado sempre para a posição da escrita e da leitura.
Com as
solicitações financeiras decorrentes da formação do lar, o trabalho visual foi
intensificado; sofreu, ao ingressar na maturidade, grave crise de neurastenia
ocular. Aos quarenta anos, Machado, um quarto de século após a descida do
morro, reentrava, forçadamente, em contacto com a higiene mental e ocular.
Sob um
ângulo de visão – existem inúmeros em nossa modernidade, isto é, são muitos os
fatores que prejudicam a visão -, a leitura e a escrita constituem flagelo
relativamente moderno da fisiologia ocular. A civilização grega consagrou a
tradição oral. Jesus Cristo nada escreveu. Usou sempre a palavra, o Verbo do
Sermão da Montanha , no qual antecipando-se de dezenove séculos à medicina
clínica advertiu a impossibilidade de um corpo sadio portador de olhos doentes.
A sabedoria
bíblica alude ao “enfado da carne que é o muito estudar” , e o Gênesis denuncia
a primitiva intenção divina de amena utilização ocular na vida humana. Depois
foi decidido que com dor passássemos a comer os frutos da terra...
Apresentamos
o paradoxo de um país portador de elevadíssimo índice de cegos, de incalculável
número de doentes dos olhos e de reduzido corpo de oftalmologistas. O problema
da higiene ocular apresenta aspectos diversos, consideradas as populações do
interior e dos grandes centros. Nestes é mais violenta a agressão à fisiologia
ocular, e a crescente industrialização do país reclama a difusão de
ensinamentos preventivos. O problema da higiene visual é, assim, uma questão de
foro íntimo de quantos usam ostensivamente os próprios olhos ou têm os alheios
sob a sua responsabilidade.
Entre os
primeiros contam-se os que exercem as chamadas “profissões visuais”, os administradores,
públicos e particulares, advogados, escreventes, médicos, escritores,
bancários, professores e tantos outros.
A tragédia
ocular de Machado não se resume apenas nas conseqüências do uso imoderado dos
olhos. Este foi o principal fator. No domínio ocular, coincidindo com a eclosão
da genialidade, outra causa agravou o abuso a partir dos quarenta anos: o
desajustamento da correção que usava para a anomalia visual.
Ligado a
outras causas o sofrimento ocular determinou a genialidade no talentoso Machado
de Assis. É uma compensação desinteressante para todos nós, que seguimos a
nossa vida sem cogitar de ser gênios... Mas a fisiologia ocular daqueles a quem
Deus tocou com a genialidade não difere da nossa. Agora temos uma compensação
interessante de que se podem extrair ensinamentos de ordem prática.
Há indício
da presença de assimetria da córnea, também não corrigida nas lentes do singelo
pince-nez. O rudimentar instrumento ótico, utilizado segundo as gravuras e
fotografias conhecidas, para a visão dos objetos próximos, deveria ensejar,
para longe, baixa agudeza.
As
referências ao estado ocular do mestre são freqüentes em prosa e em verso, quer
na sua correspondência e outros documentos de natureza íntima, quer através dos
personagens autobiográficos. Há também alusão de outrem aos seus perfeitos
olhos da juventude.
Míope de
longa data, portador de complicadas anomalias não corrigidas, astigmata e
anisométrope, a neurastenia ocular culminaria fatalmente, ao dealbar da
maturidade, em conseqüência do intensivo e desajustado esforço visual de
Machado de Assis. Os astigmatas que tiveram a ventura de fazer corrigir a
incômoda ametropia encontram-se em condições de estimar esse aspecto parcial do
perene sofrimento ocular do grande romancista.
O “equilíbrio
perfeito” do Memorial foi obtido quando os olhos malferidos do escritor se
achavam embotados pela cegueira noturna e pela catarata; ao revés, o Brás Cubas
é produto esporádico de um instante de angústia visual, sendo de adotar o
conceito de que constituiu um momento da obra machadiana, não a sua filosofia
da vida. Esta, como observou Nabuco, deve ser aferida pelas últimas produções,
quando, amortecidos e semi-cegos, os olhos do beletrista, com a baixa
proporcional do desajustamento, havia serenado a inglória tarefa de “espinha
irritativa” do gênio das letras. Simultaneamente atenuaram-se as crises
epilépticas da maturidade, agora, com precisão científica, rotuladas de
ausências nos apontamentos machadianos.
A perda dos
olhos afigurava-se-lhe a ruína da própria personalidade, assim tolhida do seu
mais vigoroso meio de expressão: “Há um olhar digno, desses olhares que parecem
vir das estrelas, qualquer que seja a estatura da pessoa”, - destacou algures,
numa frase em que a fisiologia ocular jamais encontrará tão alta destinação
espiritual, mesmo na opulenta obra em que o grande estilista atribuiu sempre a
“nota dominante” ao sentido visual.
As precárias
condições oculares de Machado de Assis impediram-no de engalanar a obra imortal
com as festejadas belezas da sua terra, de outro modo celebradas pelo gênio do
estilo; privaram as letras brasileiras da obra-prima definitiva do mestre, o
“outro Eclesiastes, à moderna”, que ele no Memorial manifestou a intenção de
escrever “se não tivesse os olhos adoentados” (pág. 127); o próprio Memorial
experimentou também a reiterada ameaça de interrupção por motivo dos “olhos
cansados, acaso doentes” (pág. 126).
Com todas
estas limitações, surgidas na juventude e agravadas na maturidade e na velhice,
com reflexos sobre a feição literária indecisa, que assumiu o caráter pendular,
copiando as crises antagônicas da doença do escritor, a quem tudo se afigurava
“contraditório e vago”, como ao personagem de Goethe em cujo seio moravam “duas
almas”; tipo de errata pensante, continuamente a corrigir-se; a despeito dos
mais rudes obstáculos, dominou-os todos e superou-se a si próprio, pulverizando
em definitivo, com a modéstia da origem, as infundadas teorias racistas.
Este modesto
ensaio tem sentido e intenção. Dirige-se aos que lutam com os olhos para
assegurar o sustento do corpo e, também, aos discípulos do Mestre que vivem
pelos olhos cultivando as belezas do espírito.
O melhor
depoimento de Machado de Assis sobre a normalidade dos seus olhos infantis
encontramo-lo no inexcedível Conto de Escola.
O ensino
escravizou sempre o aluno a obrigações extra-naturais.
O pequeno
Joaquim Maria informa: “A escola era na Rua do Costa, um sobradinho de grade de
pau”
Naquele dia
– uma segunda feira, do mês de maio – deixei-me estar alguns instantes na Rua
da Princesa a ver onde iria brincar amanhã. Hesitava entre o morro de S. Diogo
e o Campo de Sant´Ana, que não era então esse parque atual, construção de
gentleman, mas um espaço rústico, mais ou menos infinito, alastrado de
lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou campo? Tal era o problema. De
repente disse comigo que o melhor era a escola. E guiei para a escola. Aqui vai
a razão.
Na semana
anterior tinha feito dous suetos, e, descoberto o caso, recebi o pagamento das
mãos de meu pai, que me deu uma sova de vara de marmeleiro. As sovas de meu pai
doíam por muito tempo. Era um velho empregado do Arsenal de Guerra, ríspido e
intolerante. Sonhava para mim uma grande posição comercial, e tinha ânsia de me
ver com os elementos mercantis, ler, escrever e contar, para me meter de
caixeiro. Citava-me nomes de capitlistas que tinham começado ao balcão. Ora,
foi a lembrança do último castigo que me levou naquela manhã para o colégio.
Não era um menino de virtudes .
E prossegue:
Custa-me
dizer que eu era dos mais adiantados da escola; mas era. Não digo também que
era dos mais inteligentes, por um escrúpulo fácil de entender e de excelente
efeito no estilo, mas não tenho outra convicção. Note-se que não pálido nem
mofino: tinha boas cores e músculos de ferro. Na lição da escrita, por exemplo,
acabava sempre antes de todos, mas deixava-me estar a recortar narizes no papel
ou na tábua, ocupação sem nobreza nem espiritualidade, mas em todo caso
ingênua. (...) Os outros foram acabando; não tive remédio senão acabar também,
entregar a escrita, e voltar para o meu lugar.
Com
franqueza, estava arrependido de ter vindo. Agora que ficava preso, ardia por
andar lá fora, e recapitulava o campo e o morro, pensava nos outros meninos
vadios, o Chico Telha, o Américo, o Carlos das Escadinhas, a fina flor do
bairro e do gênero humano. Para cúmulo de desespero, vi através das vidraças da
escola, no claro azul do céu, por cima do Morro do Livramento, um papagaio de
papel, alto e largo, preso de uma corda imensa, que bojava no ar, uma cousa
soberba. E eu na escola, sentado, pernas unidas, com o livro de leitura e a
gramática nos joelhos .
O mestre,
absorto na leitura dos jornais, ás vezes fitava-o e ao filho. “Mas nós também
éramos finos; metemos o nariz no livro, e continuamos a ler”.
Dois
detalhes ressaltam do depoimento: 1º) a visão perfeita do brinquedo ao longe,
através das vidraças; 2º) a aproximação excessiva dos olhos no estudo, metendo
o nariz no livro. Este fato, prejudicial à conservação do primeiro, marcaria o
início do abuso ocular, começo da miopia adquirida no trabalho visual contínuo,
de perto.
Evidentemente
não engrossava Joaquim Maria a ociosa legião dos moleques, os “meninos vadios”,
infensos à escola, “o Chico Telha, o Américo, o Carlos das Escadinhas, a fina
flor do bairro e gênero humano”.
Também não
era nenhum tímido, condição que a vida lhe imporia depois. Já ficou visto, pelo
depoimento autobiográfico, que não seria um menino de virtudes. Esse período da
existência, por um fenômeno psicológico conhecido, constitui aliás o que mais
fortemente se fixa na memória: “eu não esqueci coisas que só vi em menino”
(Brás Cubas). Perpetrava as suas façanhas, algumas de surpreendente ousadia.
“Devo crer que eram expressões de um espírito robusto, porque meu pai tinha-me
em grande admiração; e se ás vezes me repreendia, à vista de gente, fazia-o por
simples formalidade: em particular dava-me beijos” (Memorial de Aires)
O pince-nez
que não podia mais dispensar, como nos belos tempos das “Crisálidas”, ó tempos!
ó saudades – e que a intervalos frequentes o levava ao ótico da vizinhança,
para aumentar-lhe o grau, advertia-o expressivamente quanto á progressão do
estado ocular.
Aquele
pince-nez oscilante estaria correto? Que espécie de lentes lhe arranjara o
ótico? Seria igual a miopia em ambos os olhos? Não haveria outro defeito
visual, além deste? É improvável que tais indagações lhe houvesse perpassado a
mente em brasa. Se chegaram a esboçar-se, incendiaram-se de certo no vulcão
interior. Prestes vomitaria cinza e fogo, na convulsão dos nervos estasados.
O cérebro
estalava. Fantasmas angustiantes o perseguiam. O literato que no qüinqüênio
anterior desdenhava das criações próprias, semeando o terreno, agora
entregava-se à colheita com a “sublime ansiedade dos moços". Seria um
moço?
A medicina
prognosticou o que a intuição fizera prever: doença crônica. Aos trinta e dois
anos o espírito supernormal encalhara no corpo enfermiço que o chibatava.
Acessos frequentes de neurastenia ocular sacudiam o frágil organismo, num
estremecimento forte. Sobrevinham as crises. E o cérebro excitado, “alma
curiosa de perfeição”, qual bolha de orvalho, saltitava do incêndio dos olhos
para o incêndio dos nervos.
Depois da
doença, o gênio das letras, o escritor de talento capacitou-se gradativamente
da genialidade. O embotamento da visão para longe e a estranha sensação
interior de aumento da agudeza mental, faziam-no dobrar-se, maciamente, sobre
si próprio...
Os olhos
míopes criaram o bicho de concha. Adoeceram-no. Da gestação mórbida, viriam
pérolas. Ainda estas, para serem grandes e belas, reclamariam excitação
violenta seguida do indispensável repouso.
Luiz Garcia,
personagem autobiográfico dessa fase, andava “tomado de temores intermitentes e
inexplicáveis. Por fora havia só a máscara imóvel, o gesto lento e as atitudes
tranqüilas. Um observador atento podia adivinhar por trás daquela
impossibilidade aparente ou contraída, as ruínas de um coração desenganado”.
O gênio
míope obedeceu ao próprio conceito de que “cada um trate do que lhe dá mais
gosto”. Copiando as uvas da fábula, facilmente consola-se, como o desenhista
tanto mais afeiçoado à sua arte quanto menos a anomalia ocular que permita as
distrações sedutoras do ambiente: “O exterior muda; o essencial é a alma do
homem”, é o pensamento que ilustrou com a observação do crítico: “uma das
partes mais difíceis do romance e, ao mesmo tempo, das mais superiores, é a
análise das paixões e dos caracteres”.
#RIODEJANEIRO#,
13 DE ABRIL DE 2019#
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