FLÂNEUR: A PROPOSITO DE “O HOMEM DA MULTIDÃO”, DE EDGAR ALLAN POE Manoel Ferreira Neto: ENSAIO
Na
Inglaterra, berço da Revolução Industrial, aconteceram profundas transformações
na vida econômica, social e política a partir da segunda metade do século
XVIII, que, ao lado de inegáveis benefícios (principalmente para a burguesia
ascendente), trouxeram problemas sociais gravíssimos, aos quais os escritores
desse período não ficarão indiferentes.
Numa época
em que a filosofia, letras e artes se guiavam pela Razão – sublinhe-se e
ressalte-se - alguns pensadores viam as mazelas dessa nova ordem como resultados
de uma visão de mundo cerebral da vida e do próprio ser humano. Isto é muito
visível em Blake quando condena a incipiente indústria do século XVIII como
“dark satanic mills”, tingindo as cidades inglesas com o cinza de sua fuligem.
A Londres
vista por Blake, com suas ruas comoditizadas pela presença do primeiro avanço
do capitalismo, onde perambulam, cobertos de cinzas e famintos, os limpadores
de chaminé, é um esboço daquela Londres metrópole, super-povoada e injusta,
descrita, com certa repugnância, por Friederich Engels, devido à condição de
seus habitantes.
“Uma cidade
como Londres, onde se pode caminhar horas a fio sem se chegar sequer ao início
de um fim” impunha aos seus 2,5 milhões de habitantes, segundo ele, para
erigir-se em principal capital comercial e industrial, o sacrifício da “melhor
parte de sua humanidade” (Engels 1985: 68).
Em The
condition of the working class in England(A Condição da Classe Trabalhadora na
Inglaterra), Engels ressalta a indiferença entre todos. A única convenção entre
as pessoas na cidade era o acordo tácito segundo o qual cada um mantinha a sua
direita na calçada, a fim de que as duas correntes de multidão que se cruzavam
não se empatassem mutuamente. Em Londres, dizia ele, ninguém atentava para o
outro. Transitando pelas ruas, os habitantes da capital mostravam uma
“indiferença brutal” para com o que se passava ao seu arredor, cultivando
apenas os interesses pessoais voltados para um desavergonhado “egoísmo
mesquinho”, lembrando a descrição da sociedade feita há muito tempo por Hobbes
– a de que a sociedade nada mais era do que o produto de uma guerra social, “a
guerra de todos contra todos” (Engels 1985: 36). E acrescentava que o que valia
para Londres, valia para todas as grandes cidades da Europa.
Em seus
ensaios sobre a obra do poeta francês Charles Baudelaire, Benjamin chama a
atenção para a figura do flâneur que, com um prazer quase voyeurístico,
comprazia-se em observar refletidamente os moradores da cidade em suas
atividades diárias. Dessa paixão do flâneur pela cidade e a multidão, decorre a
flâneurie como ato de apreensão e representação do panorama urbano.
A expansão
sem precedência da economia industrial e a conseqüente explosão demográfica das
cidades, em especial Londres e Paris, acarretaram no surgimento do ambiente
urbano moderno, possibilitando novas formas de experimentar e perceber. Isso,
por sua vez, requeria novo modo de olhar para o mundo e novas propostas
estéticas.
Benjamin
procura explicitar essas transformações, ao investigar como tais mudanças foram
registradas na literatura daquela época. Baudelaire torna-se a figura central
em suas in-vestigações. Para ele, os textos de Baudelaire constituem os
fragrantes mais precisos e intensos da vida social parisiense do século XIX,
revelando as mais finas e sutis articulações do indivíduo moderno com o cenário
urbano.
Benjamim
afirma que “a cidade é o autêntico chão sagrado da flânerie” (1994: 191), e que
o “fenômeno da banalização do espaço” constitui-se em experiência fundamental
para o flâneur (1994: 188). Baudelaire achava a cidade sedutora, principalmente
em seus “mauvais lieux”, por onde se deixava levar em suas andanças erráticas.
As ruas labirínticas da cidade constituem, para o “perfeito divagador”,
“observador apaixonado”, o fascínio da multiplicidade e do efêmero, o gosto
pelo movimento ondulante da multidão. Segundo o poeta francês, o flâneur é
inebriado, extasiado pelo prazer de se achar em uma multidão, o que, para
Benjamin, seria “uma expressão misteriosa do gozo pela multiplicação do número”
(1994: 54).
Para
Baudelaire, há a beleza duradoura nos fenômenos, que permanecem através de
diferentes épocas, e há a beleza do acidental, do instantâneo. Essa última
beleza, a da modernidade, para ser digna de se tornar antiguidade, deve ser
extraída pelo artista com todo o mistério “que a vida humana coloca nela
involuntariamente” (Baudelaire 2001: 110). Esse trabalho, o de dar forma
estética ao moderno, cabe aos artistas como Constantin Guys.
Um desses é,
sem dúvida, Edgar Allan Poe, que, antes de Baudelaire, seu primeiro tradutor
para o francês, já havia explorado, em seu conto “O Homem da Multidão”, o tema
da paisagem e da massa urbana. Nesse conto, Poe “revela alguns traços notáveis,
e basta apenas segui-los para encontrar instâncias sociais tão poderosas, tão
ocultas, que poderiam ser incluídas entre as únicas capazes de exercer, por
meios inúmeros, uma influência tão profunda quanto sutil sobre a criação
artística” (Baudelaire 2001: 119).
A cidade é o
templo do flâneur, o espaço sagrado de suas perambulações. Nela, ele se depara
com sua contradição: unidade na multiplicidade, tensão na indiferença,
sentir-se sozinho em meio a seus semelhantes. Ao errar entre as galerias e
bulevares, ao passear pelos mercados, o flâneur é o ser que vê o mundo de uma
maneira particular, sem a pretensão de explicar, mas com a intenção de mostrar,
levando a vida para cada lugar que vê. Sua paixão é a interioridade, na rua
encontra o seu refúgio, desvincula-se da esfera privada, buscando sua identificação
com a sociedade na qual convive. Ocorre, porém, que essa identificação resulta
em grande parte complicada pela natureza complexa da sociedade moderna. Nas
ruas das metrópoles, o flâneur constata que o homem moderno é vitimado pelas
agressões das mercadorias e anulado pela multidão, estando condenado a vagar
pela cidade como um embriagado em estado de abandono. É essa angústia que o
flâneur representou no século XIX.
O flâneur
aparece como a figura de um burguês que tem tempo à disposição e que pode dar-se
ao luxo de desperdiçá-lo, para horror da sociedade capitalista de sua época. É
um burguês que leva uma vida sem objetivos definidos a não ser buscar no
complexo urbano rusgas, vãos, becos por onde entrar à busca de algum espetáculo
para os seus olhos sobre pernas. Olhos e pernas são a essência do flâneur e da
flâneurie. Para isso, há que existir um ambiente propício ao seu flanar. Esse
ambiente é Paris, uma cidade feita para ser vista “pelo caminhante solitário,
pois somente a um passo ocioso pode-se apreender toda a riqueza de seus ricos
(mesmo velados) detalhes” (White 1992: 43). Louis Sebastien Mercier, após
escrever o Tableau de Paris, escreveu: “Eu andei tanto para escrever o Tableau
de Paris que posso dizer que o fiz com minhas pernas, aprendendo a ser ágil,
ávido e vivaz no palmilhar o chão da capital. Esse é o segredo para conseguir
ver tudo” (White 1992: 44)
Outra
característica do flâneur, que o distingue de um filósofo ou de um sociólogo, é
que ele procura por experiência e não por conhecimento. Para estes, grande
parte da experiência acaba sendo interpretada como – e transformada em –
conhecimento. Já para aquele, a experiência permanece em certa medida pura,
inútil, em estado bruto, fruto do olhar ingênuo, como o de uma criança, do tipo
que Baudelaire atribui a Constantin Guys. Assim, forma-se um retrato dessa
figura que, ao que parece, foi uma pessoa de carne e osso, como mostra esta
descrição de Paris, feita por volta de 1808, retirada e resumida de um artigo
de Elizabeth Wilson: o flâneur é um gentleman que passa a maior parte de seu
dia a vagar pelas ruas, observando o espetáculo urbano – as modas, as lojas, as
construções, as novidades e as atrações. Seus meios de vida são invisíveis,
ficando a sugestão de uma riqueza particular, porém sem a presença da
responsabilidade familiar ou gerencial dessa riqueza. Seus interesses são
primordialmente estéticos e frequentam cafés e restaurantes onde atores,
escritores e artistas se encontram. Entretanto, parte do espetáculo urbano lhe
é oferecido pelo comportamento das classes baixas (vendedores, soldados, gente
da rua). Ele é uma figura marginal e tende a ser descrito como alguém isolado
daqueles a quem observa (Wilson 1992: 94-95).
O flâneur,
portanto, é o leitor da cidade, bem como de seus habitantes, através de cujas
faces tenta decifrar os sentidos da vida urbana. De fato, através de suas
andanças, ele transforma a cidade em um espaço para ser lido, um objeto de
investigação, uma floresta de signos a serem decodificados – em suma, um texto.
Ao semiotizar a cidade, o flâneur, esse “botânico do asfalto” (Benjamin 1994:
34), cria uma distinção entre o observador e o observado. Mas, ao contrário de
criar, desse modo, uma posição privilegiada, estabelece com o seu objeto uma
relação bastante problemática, uma vez que ele não apenas observa a multidão a
partir de um “standing point”, mas se imiscui nela. Assim, sua leitura da
cidade ocorre através de olhares fragmentários e momentâneos, não lhe sendo
permitido o olhar contemplativo e eqüidistante, capaz de lhe oferecer a
totalidade de seu objeto.
O flâneur,
protótipo do sujeito moderno, por estar no meio do que tenta descrever e não
ter neutralidade e distanciamento na sua observação (se é que isso alguma vez
foi possível), limita-se a apontar as transformações do cenário urbano e a
re-velar sua historicidade. Além disso, o olhar do flâneur se caracteriza por
uma peculiaridade: trata-se de um olhar distraído. Ao passar, o flâneur captura
a paisagem em um estado de distração, caracterizado por sucessivos e cambiantes
pontos de vista. Nessa distração, ou melhor, nessa “embriaguez anamnéstica” em
que vagueia, não importam apenas os fenômenos que, sensorialmente lhe atingem o
olhar. Nesse estado, ele também se apossa do “simples saber”, cuja transmissão
se dá, sobretudo, por notícias orais, que, para Benjamim, se compõe de dados
mortos, como de algo experimentado e vivido. (1994: 186).
O narrador
de Poe pode ser considerado uma versão londrina do flâneur parisiense de
Baudelaire. Londres e Paris eram duas grandes capitais, mas Londres, já por
volta de 1844, quando o conto é escrito, encontra-se mais marcada pela
industrialização e por todas as conseqüências da revolução taylorista nas
formas de produção do capital. Nesse ambiente, é de se esperar que o flâneur
não existisse ou já nascesse fadado a desaparecer. Como diz Benjamin, citando
Georges Friedmann, “A obsessão de Taylor, de seus colaboradores e sucessores, é
a guerra à flâneurie” (Friedmann 1936: 76)
Em
comparação, a Paris de Baudelaire ainda guardava traços dos velhos bons tempos.
Na Paris de Baudelaire, a situação era diferente, “ainda se apreciavam as
galerias, onde o flâneur se subtraía da vista dos veículos... Havia o
transeunte, que se enfia na multidão... Mas havia também o flâneur, que precisa
de espaço livre e não quer perder sua privacidade.”
Ao contrário
do homem da multidão, do conto de Poe, o flâneur é um “ocioso”, a caminhar como
uma “personalidade” que rejeita a divisão de trabalho e a industriosidade da
sociedade de então. Benjamim diz que “era de bom-tom levar tartarugas para
passear pelas galerias”, como uma forma de protestar contra o ritmo imposto
pelo capital (1994: 50-51).
Poe descreve
Londres como possuindo algo de bárbaro que a disciplina mal consegue sujeitar.
A industrialização e suas “benesses” isolam os seus beneficiários e os aproxima
da mecanização. Segundo Benjamin, “O texto de Poe torna inteligível a
verdadeira relação entre selvageria e disciplina. Seus transeuntes se comportam
como se, adaptados à automatização, só conseguissem se expressar de forma
automática. Seu comportamento é uma reação a choques” (1994: 126). É a visão desses
autômatos em suas marés humanas no anoitecer que enche o narrador de Poe com
“uma emoção demasiadamente nova” e o faz desinteressar-se pelo que passava no
salão do Café onde se encontra, para se absorver na “contemplação da cena lá de
fora” (1990: 164) Há no observador de Poe aquela mesma atenção que encontramos
na descrição de Constantin Guys feita por Baudelaire, aquela sensação de estar
“sempre, espiritualmente, no estado de convalescença” (2001: 196).
Depreendemos,
contudo, segundo o próprio narrador do conto, que esse estado não lhe ocorria
“sempre”; antes, entendemos tratar-se de um estado raro, incomum. Assim ele
descreve seu estado naquela tarde:
Há não muito
tempo, ao fim de uma tarde de outono, eu estava sentado ante a grande janela do
Café D. . . em Londres. Por vários meses andara enfermo, mas já me encontrava
em franca convalescença e, com a volta da saúde, sentiame num daqueles felizes
estados de espírito que são exatamente o oposto do ennui; estado de espírito da
mais aguda apetência, no qual os olhos da mente se desanuviam e o intelecto,
eletrificado, ultrapassa sua condição diária tanto quanto a vívida, posto que
cândida, razão de Leibniz ultrapassa a doida e débil retórica de Górgias. (Poe
1990: 164)
Conforme
essa passagem, há um deslocamento oscilante entre os anúncios do jornal, a sala
e a rua, que fica explicitado pelas conjunções “ora” e “ou”. Trata-se de um
flanar entre diferentes espaços, desde o mais privado e recolhido da leitura do
jornal até o espaço público da rua. Essa dialética espacial entre o privado e o
público, encontrada na base da flâneurie, revela um aspecto interessante em
relação à atitude do flâneur: o reconhecimento de que o coletivo, como diz
Benjamim, é um ser irrequieto e agitado que, nos espaços do labirinto urbano,
“reconhece e inventa tanto quanto o indivíduo trancafiado em seu quarto. E a
rua é a morada do coletivo. ” (1994: 194).
Nessa época,
com efeito, a população das grandes cidades estava se tornando alfabetizada e
os sinais urbanos começavam invadir as ruas, tanto os verbais como os
não-verbais. O narrador de Poe deixa-nos ver que, ao observar as ruas tanto
literalmente como figurativamente, a cidade estava-se tornando um texto e, para
expressá-la, a linguagem escrita deveria assumir as qualidades da imagem. Para
tanto o observador deveria ter uma sensibilidade excitada, apta a captar os
fragrantes de um mundo em rápida mutação. Como o pintor da vida moderna, o
narrador de Poe busca flagrar na vida trivial das ruas aquele “movimento rápido
que impõe ao artista uma igual velocidade de execução” (Baudelaire 2001: 105).
Se cada
século tem sua feição, sua graça pessoal, impressa pela passagem do tempo, o
mesmo se aplica a traços menores da história; aliás, podemos pensar que quanto
mais particular é o evento, mais a marca do tempo deixará nele o seu carimbo,
como a moda, campo sobre o qual refletiu Baudelaire. Ainda, segundo ele, essa
mesma observação se aplica às profissões, porque “cada uma extrai sua beleza
interior das leis morais a que está submetida. Em algumas essa beleza será
marcada pela energia; em outras carregará os sinais visíveis da ociosidade. É
como o emblema do caráter, é a estampilha da fatalidade” (Baudelaire 2001:
114).
É inegável
que, no conto de Poe, apesar das diferenças existentes entre esses dois pólos,
podemos dizer que tanto o narrador, como o misterioso personagem, compartilham
características do flâneur. O velho demônio encarna, num extremo, a
erraticidade, a voracidade voyeurística, a solidão urbana. Vemos, porém,
tratar-se de uma personalidade amortecida pela recepção de choque, um
embasbacado, uma marionete agitada pelo ritmo da produção capitalista e pelo
frenesi do consumo. Parodiando Baudelaire, assemelha-se a um “caleidoscópio
desprovido de consciência”. Já o narrador tem a fome da experiência, somada à
perplexidade e ao assombro. Sua perambulação acompanha os fluxos da cidade e os
passos do homem da multidão, buscando, entretanto, fixar, como fantasmagoria,
suas impressões. Essa intenção do registro é aguçada pela consciência do
mistério que envolve os fenômenos urbanos, mesmo os mais triviais. Esse senso
do mistério é aquele de estar o tempo todo no equívoco, nos aspectos duplos,
ambíguos, múltiplos, na suspeição do aspecto (imagens dentro de imagens),
formas do devir que “serão”, segundo o espírito do observador.
Se Deus
imprimiu “o destino de cada homem na sua fisionomia”, como disse Balzac
(Benjamin 1994: 212), basta, então, observá-lo cuidadosamente, para ler, em
seus sinais exteriores, a sua profissão, vícios e tudo o mais que marca cada
dobra de sua pele. Ou então, basta escutar uma palavra de alguém que passa
para, através do tom de sua voz, ligar o nome de um pecado a ele. A índole
detetivesca do narrador de Poe limita com o espírito curioso do flâneur, à medida
que ambos buscam estudar a aparência fisionômica das pessoas, para ler-lhes a
nacionalidade e a posição, caráter e destino, através de sinais aparentes, tais
como seu modo de andar, sua constituição corporal, sua mímica facial, como
podemos notar nos excertos abaixo:
A subdivisão
dos funcionários categorizados de firmas respeitáveis era inconfundível.
Fazia-se logo reconhecer pelas casacas e calças pretas ou castanhas,
confortáveis e práticas, pelas gravatas brancas, pelos coletes, pelos sapatos
sólidos, pelas meias grossas e pelas polainas. Tinham todos a cabeça
ligeiramente calva e a orelha direita afastada devido ao hábito de ali
prenderem a caneta. Observei que usavam sempre ambas as mãos para pôr ou tirar
o chapéu e que traziam relógios com curtas correntes de ouro maciço, de modelo
antigo. A deles era a afetação da respeitabilidade, se é que existe,
verdadeiramente, afetação tão respeitável. (Poe 1990: 168-169)
O
surpreendente e magnífico no conto de Poe é o jogo de adivinhação: o narrador,
ao se concentrar na figura enigmática do velho, com quem se depara a certa
altura no labirinto londrino, não chega a uma solução. Assim é descrito o
encontro com a estranha figura que captura sua imaginação:
Com a testa
encostada ao vidro, estava eu destarte ocupado em examinar a turba quando,
subitamente, deparei com um semblante (o de um velho decrépito, de uns sessenta
e cinco anos de idade), um semblante que de imediato se impôs fortemente à
minha atenção, dada a absoluta idiossincrasia de sua expressão. Nunca vira
coisa alguma que se lhe assemelhasse, nem de longe. Lembro-me bem de que meu
primeiro pensamento, ao vê-lo, foi o de que, tivesse-o conhecido Retzsch, e não
haveria de querer outro modelo para as suas encarnações pictóricas do
Demônio.... Senti-me singularmente exaltado, surpreso, fascinado. “Que
extraordinária história”, disse a mim mesmo, “não estará escrita naquele
peito!” Veio-me então o imperioso desejo de manter o homem sob minhas vistas...
de saber mais sobre ele. Vesti apressadamente o sobretudo e, agarrando o chapéu
e a bengala, saí para a rua e abri caminho por entre a turba em direção ao
local em que o havia visto desaparecer, pois, a essa altura, ele já sumira de
vista. Ao cabo de algumas pequenas dificuldades, consegui por fim divisá-lo,
aproximar-me dele e segui-lo de perto, embora com cautela, de modo a não lhe
atrair a atenção. (Poe 1990: 177-178)
Essa
perseguição ocupará quase o conto todo. A in-vestigação, com o fim de ler a
“extraordinária história” que o narrador imaginou estar “escrita naquele
peito”, encerrar- se-á ao cabo de um dia inteiro de andança errática. Nas
palavras do narrador-personagem, ao cabo de um dia completo, exausto diante da
infindável caminhada em ziguezague, sobreveio-lhe um aborrecimento mortal.
Nesse momento pára em frente do velho, olha-o fixamente no rosto, como se a
mirada frontal lhe pudesse revelar o que de maneira obliqua não conseguira. O
velho simplesmente o ignora, como se fosse um autômato, e prossegue em sua
promenade folle et sans fin, como um “lobisomem irrequieto a vagar na selva
social” (Benjamin 1994: 187):
Quando se
aproximaram as trevas da segunda noite, aborreci-me mortalmente e, detendo-me
bem em frente do velho, olhei-lhe fixamente o rosto. Ele não deu conta de mim,
mas continuou a andar, enquanto eu, desistindo da perseguição, fiquei absorvido
vendo-o afastar-se. “Este velho”, disse comigo, por fim, “é o tipo e o gênio do
crime profundo. Recusa-se a estar só. É o homem da multidão. Será escusado
segui-lo: nada mais saberei a seu respeito ou a respeito dos seus atos. O mais
cruel coração do mundo é livro mais grosso que o Hortulus animae, e talvez seja
uma das mercês de Deus que ‘ es lässt sich nich lesn’ “.( Poe, 1990, p.189-190)
Assim, o
conto se fecha, com a frase em alemão que, no primeiro parágrafo do conto, é
utilizada para introduzir a tese de que há coisas que não se deixam ler. Em
outras palavras, há segredos que não podem ser ditos porque não se deixam ler.
Assim, o conto se fecha dentro de uma estrutura circular, conferindo-lhe certo
hermetismo que lhe acentua a atmosfera de mistério. O hermetismo identifica o
mistério. A estrutura circular nos diz ser necessário a releitura para
encontrá-lo, mas ele nunca se revela. Não obstante essa atmosfera de mistério
que deixa no ar ao final, o conto se relaciona claramente com a crítica de
Benjamin à tese convencional, mas insensata, que racionaliza a conduta do
flâneur e que é a base inconteste de muita literatura a seu respeito. Muito
mais do que ler na fisionomia dos transeuntes o seu caráter ou a sua profissão,
o flâneur busca perder-se (ou encontrar-se?) na anonimia da vida na grande
cidade. A City é “a realização do antigo sonho do labirinto” e, segundo
Benjamin, o flâneur, sem o saber, persegue essa realidade. Busca inútil, essa
do narrador de Poe? O saber que o flâneur procura seria “vizinho à ciência
oculta da conjuntura”? (Benjamin 1994: 199).
Talvez...
afinal, essa irresolução pode ser entendida como o resultado do desenvolvimento
de um processo que nasce da euforia e de uma grande apetência no início da
narrativa (daquele estado de convalescença) e termina no aborrecimento mortal
da dúvida. Assim, da mesma maneira que “a espera parece ser o estado próprio do
observador impassível” (Benjamin 1994: 197), a dúvida seria a condição final do
processo investigativo do flâneur.
O que
podemos observar é que o conto de Poe antecipa uma questão básica que está na
essência da Modernité. Seu narrador representa o protótipo do escritor moderno,
ocupado em capturar a beleza do efêmero e do transitório, e, para consegui-lo,
ele deve emergir na experiência de sua condição enquanto elemento integrante
dessa nova sociedade. Na “flâneurie”, isto é, “no deambular desprovido de
propósitos”, o flâneur nos oferece a imagem movente, resultado da apreensão de
uma fugidia profusão de imagens instantâneas, cuja essência reside nas
fantasmagorias de um cotidiano vivido nos subsolos do consciente. Na psicologia
do flâneur opera a memória ressurreicionista, que faz com que “as cenas
impagáveis que todos nós podemos rever fechando os olhos”, não sejam aquelas
que “contemplamos com um guia nas mãos”, ou seja, aquelas para as quais
dirigimos nossa atenção segundo propósitos ou interesses despertos; antes, são
“aquelas a que não prestamos atenção, que atravessamos pensando noutra coisa,
num pecado, num namorico ou num dissabor pueril” (Benjamin 1994: 213-214).
Essa é a
psicologia do flâneur, que encontra seu correspondente, hoje, em uma forma de
percepção representada pela experiência pós-moderna do indivíduo que, seja no
shopping, seja encapsulado em seu carro, ou defronte a uma tela de TV ou
computador, depara-se com a velocidade e a fragmentação dos fenômenos num nível
de semi-ficção, semelhante à “experiência da multidão”, que o flâneur urbano
vivenciava nas ruas, avenidas, nas passagens, nos palácios de cristal de fins
do séc. XIX e início do séc. XX.
#RIODEJANEIRO#,
15 DE ABRIL DE 2019#
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