#DETERMINAÇÃO ESSENCIAL DO SER – ESBOÇO DE UMA LEITURA HERMENÊUTICA# Manoel Ferreira Neto: ENSAIO
O que é isto
– a Linguagem? Eis o questionamento que se deve fazer em se tratando de
respondê-lo à luz do pensamento heideggeriano, isto é, a partir de uma leitura
hermenêutica da experiência.
Se
con-templamos a linguagem à luz de sua genealogia, segundo Heidegger ela é um
modo de ser, uma estrutura da ek-sistência. Não é, contudo, um existencial
entre outros, ao lado da situação e da compreensão: é, antes, o existencial
fundamental no qual todos os outros ganham corpo.
A situação
é, em si mesma, muda, se a compreensão não permitir ao homem a distanciação
necessária em relação ao existente. Ora, este jogo da compreensão e da situação
torna-se possível pelo discurso (Rede): “O discurso é a articulação
significativa da compreensão do ser-no-mundo no seu sentimento de situação”.
Este termo, para Heidegger, não designa a palavra explícita, mas o discurso
silencioso do mundo inaugurado pela presença do homem. A ek-sistência é esta
capacidade fundamental que o homem tem de dialogar com o mundo e com os outros:
“O silêncio como modo do discurso articula tão originalmente a
compreensibilidade do ser-aí, que vem fundar o saber-ouvir autêntico e o
ser-em-comum lúcido”.
Em tudo que
se diz, quando se fala, se escreve ou se cala, sempre se diz a partir do
silêncio. É a segunda experiência. Trata-se de uma experiência tão rica e
originária que dela vivem e se criam os poetas, pensadores, os homens. É ao
silêncio que os homens, poetas, pensadores dão passagem em tudo que dizem
quando falam e/ou se calam em cada desempenho. Com isto nós nos descobrimos
onde já sempre estamos – no silêncio da fala.
O homem não
é um animal que possui a razão, mas um ser que é possuído pela linguagem. É no
discurso que se enraíza a presença do “Dasein” no mundo. Pela linguagem, este
desperta para o seu ser e vigia o ser das coisas.
Como se
efetua a passagem do discurso à palavra explícita? Heidegger distingue duas
etapas: a explicitação e a enunciação. A explicitação é uma estrutura de
antecipação da ek-sistência que se apóia no horizonte do discurso. Ela é a
visão antepredicativa da totalidade que condiciona a revelação de todo o sendo
particular. O discurso fornece o sentido à explicitação. A partir do sentido, a
explicitação deduz o “enquanto”, isto é, a significação do sendo concreto. Graças
a ela, o discurso torna-se indicativo.
A linguagem
opera o desvelamento das significações concretas do mundo. Não há dois planos:
o do percebido e do conhecido e o do falado e do expresso. A palavra não
introduz um sentido num conteúdo. É, pelo contrário, o conteúdo que se revela
significante na linguagem. Forçoso é, pois, destruir a perspectiva metafísica:
a linguagem não se torna significante a partir dos objetos compreendidos pelo
pensamento e significados, em seguida, pelas palavras: são, antes, os objetos
que adquirem a sua plena capacidade de significação a partir da linguagem
falada.
Falar a
partir da Linguagem da poesia não é indicar outra linguagem dentro ou fora da
estrutura da língua e discurso. Assim operando, já de-finimos a Linguagem como
objeto dentro ou fora de outro objeto, já de-finimos o dentro e o fora
juntamente com sua indicação, como uma função de um objeto para com outro
objeto. De-finir como objeto ou de-finir como função entre objetos, é a
objetivação própria da representação.
O sentido do
discurso nunca é construído, mas sempre descoberto. O mundo mostra-se investido
de significações utilitárias e poéticas. Daqui que a linguagem seja uma leitura
hermenêutica da experiência. O homem compreende sempre o mundo no interior de
um projeto interpretativo cuja linguagem é a única justificação. Sem dúvida, o
sendo bruto existe fora do gesto falado. Mas o mundo, este horizonte
inteligível que abre acesso ao sendo, só existe na interpretação efetuada pela
linguagem. Assim, somos obrigados a corrigir a célebre fórmula de Schopenhauer:
“O mundo é a minha representação”, e dizer “O mundo é a minha interpretação”.
A linguagem
poética só revela o seu conteúdo no pronunciar nativo, e não na transmissão
segundo sinais abstratos. A palavra poética dá a essência profunda da coisa.
Uma coisa só e ela própria, se não se degradou, ao nível da objetividade
neutra, para um entendimento qualquer e universal, e se permaneceu assunto que
uma existência em comum debate.
A fala
poética é, em si mesma, no seu simples enunciar, um diálogo. Nela, o ser
dialoga consigo próprio. É por isso que “a filosofia deve encetar um diálogo
com a poesia” - eis o nosso pensamento, nossa idéia, nossa postura, e nossa
posição em relação à filosofia, à poesia, à literatura, o que buscamos sempre
fundamentar neste fazer suplementar de Razão In-versa -, se pretende vir aquém
da errância metafísica. Não um diálogo entre dois interlocutores já existentes,
mas um diálogo que faz surgir no interior duma palavra única o dualismo de dois
interlocutores: meditar, é de fato pensar consigo próprio e falar-se a si, é
constituir-se em campo de forças que corre o risco, em cada momento, de recair
e de se solidificar em dois pólos, em dois interlocutores que não mais
conseguem entender-se a si próprios.
É graças ao
diálogo que aqueles que falam devem poder transformar-se para entrarem em lugar
da permanência e transportarem-se para este lugar de onde provém cada uma das
suas palavras. Esta forma de entrar em... é a alma do diálogo. Ela conduz
aqueles que falam ao que está para além das palavras.
Quer-nos
parecer que a filosofia de Heidegger se orienta, então, resolutamente, no
sentido duma meditação sobre a linguagem; não sobre a faculdade da linguagem em
geral, como característica existencial da existência em geral, mas no sentido
da forma meditativa imediata da linguagem que é uma língua determinada. A
língua, como forma determinada da expressão dum povo, determina a modalidade de
abordagem da verdade do ser que é o sagrado.
O poeta é
divino: na sua palavra, uma língua nasce para a sua própria possibilidade de
dizer a verdade do ser; na sua palavra, o pensamento pensante manifesta-se como
investigação do impronunciado da verdade do ser. Este impronunciado guia o
pensador que ascende da significação vulgar e degradada das palavras até às
palavras privilegiadas pelas quais uma língua determina a sua experiência da
verdade do ser. A este respeito, o pensamento de Heidegger é único no gênero,
pelo menos na nossa época.
Rompendo com
as concepções que veem na linguagem uma composição sistemática de sinais
elementares que, em si mesmos, não encerram qualquer sentido e só adquirem
poder significante nas suas relações, Heidegger considera que as palavras
privilegiadas duma determinada língua irradiam, sob a forma de multiplicidade
de relações que lhes são imanentes, a fulguração da diferença ontológica.
A análise
existencial não é senão um estudo do homem no universo do discurso. O “Dasein”
determina o modo como o próprio homem se interpreta enquanto ser que fala. Esta
interpretação não é, de modo algum, arbitrária uma vez que ela descobre a
estrutura da ek-sistência e o próprio ser das coisas. A antropologia lê o
discurso do homem, isto é, se tomarmos este genitivo no seu duplo sentido,
objetivo e subjetivo, o discurso do homem sobre o homem.
A referência
ao universo nas línguas é originária porque conduzida pela verdade
manifestativa e sustentada pela liberdade não negativa da realidade em
silêncio. Só a língua dá a palavra e, com a palavra, a oportunidade de silêncio
às próprias coisas, ao real em si mesmo, em sua taumaturgia de ser e não ser.
Na oportunidade, em que o discurso fala e, ao falar, se cala, acontece a
subordinação do homem à realidade, tanto nas realizações que ele mesmo tem, mas
não é. É este serviço silencioso da realidade que proporciona às línguas o
fundamento de possibilidade para uma liderança ontológica, embora limitada, no
conjunto da existência história dos homens.
Para se
compreender a referência especial ao universo que as línguas sustentam, e a
conduta explosiva dos homens que elas lideram, é indispensável uma experiência
do silêncio, que conduz e subtende a possibilidade de todo e qualquer discurso.
O discurso cumpre a liderança ontológica da linguagem. É onde acontece a
explosão da existência: um determinado modo de viver irrompe na totalidade do
real e, nesta irrupção e por ela, a realidade emerge no vigor de seu silêncio
em todas as realizações.
O
ser-no-mundo, desvelado pela linguagem, não é o em-si compacto e opaco de
Jean-Paul Sartre, mas um dom e um acontecimento. Falar equivale a fazer surgir
o Ser do real. A liberdade que condiciona o deixar-ser do mundo não seria a
fonte oculta da linguagem? Parece que é ela que leva o discurso do mundo à
linguagem do Ser. Graças à liberdade, o homem é confiado à indeterminação do
Ser e pode, à sua luz, dar-se, no mundo, as determinações que quer. Heidegger
vê na liberdade o lugar último de todo o porquê: “Porque é que há sendo em vez
de nada?”. Certamente, esta linguagem testemunha a liberdade que temos de negar
o mundo e de pôr o nada sob os nossos pés. Mas devemos ir mais longe e
perguntarmo-nos sobre o que nos torna possível esta contínua transformação do
mundo da existência num mundo de palavras. A negação que a palavra introduz na
linguagem é, segundo Heidegger, a experiência de Nadificar do Ser. Poder-se-ia
objetar que se trata de um puro jogo verbal, mas, então, seria necessário negar
que a linguagem revela o sendo e afirmar que ela se limita a aprojetar um
sentido arbitrário sobre a realidade percebida ou conhecida. A capacidade que a
linguagem tem de animar um outro mundo que não o mundo imediato não é o sinal
de que o não-ser é uma possibilidade interior ao Ser? É para o Ser que nos
remete a questão posta, mas para o Ser concebido, como o Nada que triunfa na
negação do sendo.
Pela
linguagem entramos imediatamente em relação com o ser que nos constitui como
lugar da sua manifestação, mas apenas se a palavra é ela própria pronunciada
segundo o seu lugar de origem, revelando deste modo, nele, a dialética circular
do ser e do ente. Afinal, parece ser possível uma certa ontologia, própria de
Heidegger: a linguagem é a manifestação instantânea da diferença ontológica, é
o meio-termo a partir do qual a decaída se explica. A linguagem não é um
conjunto de sinais abstratos e convencionais (ou indiferentes) que designaria o
ente já colocado na sua essência objetiva perante o pensamento dos existentes;
é o que “torna a coisa presente perante nós na sua presença, a faz aparecer e
permanecer desdobrada”.
A linguagem
é o lugar onde habita o pensamento. Este não é nem logicamente nem
cronologicamente, anterior à linguagem. É o acontecimento da palavra que
suscita o do pensamento, isto é, a filosofia. Pensar significa corresponder à
palavra do Ser. Heidegger recusa a identificação hegeliana entre a linguagem e
o espírito humano. Com efeito, o discurso histórico que, segundo Hegel, é a
expressão do absoluto da consciência, só é concebível em referência ao discurso
histórico (historial) do Ser. A idéia de uma linguagem transparente ao espírito
é uma ilusão da representação. A palavra verdadeira é a articulação conjugada
do discurso interior ao Ser com a linguagem humana que traduz este, traindo-o.
Ela é um instrumento de divisão, porque jamais o discurso histórico recobrirá o
discurso “historial”.
#RIODEJANEIRO#,
14 DE ABRIL DE 2019#
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