#BALZAC – RICA FONTE DE CRITICA À SOCIEDADE BURGUESA# Manoel Ferreira Neto: ENSAIO
No que tange
a este grande romancista francês, desenrola-se volta e meia ruidosas
controvérsias que, conforme nossa visão, tem interesse superior ao simplesmente
acadêmico. Referem-se a que tais disputas? Referem-se a alguns dos mais
importantes aspectos da nossa ciência e da nossa literatura. Não obstante
existir crítica literária relativamente ampla, dedicada a Balzac, não estamos
autorizados a dizer que tenhamos aprendido muito sobre as suas obras. Deve-se
isso não só à extrema complexidade do autor e à falta de verdadeiro estudo da
matéria, mas também, até certo nível, aos métodos inferiores de in-vestigação
que estão em moda entre a maior parte dos historiadores literários que escrevem
sobre Balzac.
Para nós,
Balzac é significativo não só como patrimônio histórico, mas, sobretudo, como
vivo tesouro cultural, como fonte de rica experiência na arte e nas idéias.
Aprendemos dos historiadores literários que Balzac era o representante
ideológico de tal e tal classe, da burguesia industrial ou da aristocracia, ou
de uma determinada parte de uma classe, mas não explicam por que Balzac foi um
grande artista. Historiador literário, in-vestigador sociológico, dizer que
Balzac foi um escritor burguês, dando-se por satisfeito, presumindo ter dito a
última palavra. A última palavra! Que despautério! Quanto mais quando se diz
respeito a este ícone da literatura francesa e universal. Ao apreciar um autor,
o “sociólogo”, submergido inteiramente em investigações genéticas, foge ao
assunto por intermédio de generalizações as mais descabíveis, até mesmo
imbecis. Se con-templarmos de um ponto de vista sociológico comum, todos os
grandes escritores parecem iguais.
O estudo da
literatura con-verte-se num ofício cacete e improdutivo. Classificam-se os
autores de acordo com a classe a que pertencem da maneira mais automática. E a
voz monótona do sociólogo explica como um professor de etimologia: “Dostoievski
pertencia a... Ibsen pertencia a... Machado de Assis pertencia a... Goethe
pertencia a...”. Enquanto a conversação gira sobre um grande escritor, o
sociólogo, para evitar situação constrangedora, põe diante de nós o célebre
quadro da “burguesia ascendente” como “classe progressista”, etc. Método
realmente muito cômodo para “tirar o corpo fora” da necessidade de re-flexão e
de in-vestigação histórica concreta. Não é método original, visto que foi
empregado primeiro pelos historiadores liberais da literatura que,
naturalmente, como burgueses, avaliaram todas as grandes produções artísticas
da sua época somente em relação ao “progressismo” do dia. Para poder aplicar
teoria os “sociólogos”, passando por alto os fatos, empenham-se em vão a
descrever a Balzac, defensor da aristocracia, como um músico do capitalismo
industrial.
A
incompetência dessa classe de sociologia quando aprecia Balzac não é de modo
algum acidental, mas o resultado direto de um modo de ver, incorreto e
unilateral, a gênese de uma obra-de-arte.
Faz-se
mister estudar a obra do autor de modo que explicará a influência de sua época
sobre o desenvolvimento e o progresso, e quão profundamente refletiu em seus
escritos. Nossos sociólogos perdem de vista este aspecto e começam do lado
oposto. Aos seus olhos a análise classista de uma obra-de-arte depende
automaticamente da posição imediata do artista numa sociedade dividida em
classes. Fogem por completo do método do artista, do seu modo de reagir ante a
realidade. Não se ocupam do fato de que um estudo profundo e uma verídica
descrição da realidade por um autor emprestam tremenda significação ao sentido
social da sua obra. Os sociólogos perdem assim o conteúdo objetivo e o
significado histórico da arte criadora.
Escritores,
como Balzac, conservam sua significação muito além dos limites do seu tempo e
da sua classe, devido não tanto às suas opiniões como às suas aspirações. É
exatamente esta a diferença que os “sociólogos” deixam de ter em conta. Não
estão nada interessados no “porquê” e no “como” da chegada de Balzac a certas
conclusões políticas. Estão meramente interessados nestas conclusões. Com esse
método de in-vestigar Balzac, ou qualquer outro autor, não se pode conseguir
grande coisa, aliás nada se consegue que tenha realmente valor inestimável.
A que época
da história da sociedade burguesa a literatura de Balzac reflete? À época em
que esta última trocava a luta revolucionária contra o feudalismo pela tarefa
prática de realizar os preceitos de 1793. A utopia de liberdade e igualdade
converteu-se em realidade no exercício do regime capitalista. O progresso
burguês que os revolucionários do século XVIII divisaram como um transição
harmoniosa da humanidade para a idade de ouro, revelou todas as suas profundas
e insolúveis contradições. Este fator decisivo determinou o caráter das
tendências principais da vida espiritual dos três primeiros decênios do século
XIX.
Os
escritores que sustentavam que a sociedade burguesa era o ideal, uniram-se sob
o estandarte do liberalismo. Exteriormente pareciam seguir as pegadas dos
discípulos do século das luzes; na prática, porém, estes mesmos liberais se
diferençam deles no essencial, não só no que tange às idéias, mas também no
juízo prático de suas perspectivas. Para os discípulos da idade da razão a
glorificação da civilização burguesa foi uma ilusão, quimera sincera, em muitos
aspectos até compreensível, se for con-templada à luz das relações burguesas do
século XVIII, ainda prematuras. Mas a época pós-revolucionária destruiu
rapidamente o fundo objetivo dessa ilusão. A descrição da sociedade burguesa
como uma “harmonia natural de interesses” entrou em conflito objetivo com os
fatos. Em consequência esta glorificação feita pelos liberais toma um caráter
hipócrita e egoísta.
Os
românticos são os primeiros no século XIX a descobrir a natureza antagônica da
sociedade burguesa. Enquanto os liberais a pintam como um progresso contínuo,
os românticos, pelo contrário, negam toda significação possível ao
desenvolvimento burguês, encarando-o mais como um regressão histórica e
volvendo suas vistas saudosas aos “bons dias passados” de uma sociedade
patriarcal. Ao lado do liberalismo e do romantismo desenvolve-se uma nova, uma
terceira corrente, profundamente distinta, que supera em muito as outras em
significação e representa papel de imensa importância na preparação histórica
do marxismo. A esta escola, que se pode chamar “estóica”, tomando o termo de
Karl Marx, que o usou uma vez para caracterizar a economia política clássica
inglesa, pertencem homens como Hegel, Goethe, Saint-Simon e Fourier. Estes
homens formam uma unidade, não porque tenham um programa geral comum, nem por suas
conclusões políticas, nas quais amiúde se diferençam, mas em razão de um ponto
de partida comum em relação à civilização burguesa. Diferindo dos românticos,
os intelectuais da escola “estóica” de pensamento admitem a necessidade
histórica desta civilização e consideram-na um passo gigantesco no progresso
social. Em contraste, contudo, com a escola liberal, negam-se admitir a teoria
de que a ordem reinante seja o estado social ideal, o “melhor de todos os
mundos possíveis”. Mostram que os êxitos da civilização capitalista estão
inevitavelmente acompanhados de uma decadência em muitos aspectos importantes
da vida e da cultura social e pintam verídica e profundamente os traços
bárbaros desse “progresso”.
Observando a
sociedade burguesa, concluem que no processo histórico o bem e o mal estão
inseparavelmente comungados e de que a contradição é a lei básica da história,
desenvolvendo assim sua natureza dialética. Tal conclusão teórica levou muitos
destes discípulos da escola racionalista à convicção prática de que é essencial
resolver essas contradições, isto é, destruir o estado burguês. Se para a
grande parte deles, como, por exemplo, Hegel, esta resolução não passa de
matéria de especulação abstrata, recomendando reconciliação com o status quo,
outros, como Saint-Simon por exemplo, já procuram, ainda que de modo utópico,
caminho para eliminar os antagonismos da sociedade mediante mudança prática
fundamental.
Balzac não
pode ser classificado entre os autores românticos nem entre os liberais. Sua
reação agudamente negativa contra a restauração da ordem patriarcal e sua
aceitação da necessidade histórica da sociedade burguesa distinguem-no
definitivamente do primeiro grupo. Difere da escola de romancistas liberais e
apologéticos pela veracidade e coragem no descrever os aspectos decantes do
progresso burguês e, também, por sua profunda compreensão das suas contradições
internas.
O mecanismo
nivelador da civilização burguesa, segundo Balzac, priva um homem de sua
individualidade, converte-o num autômato, encadeia-o à rotina monótona de um
ofício, sufoca todas as suas capacidades e energias.
Quando uma
pessoa de talento não pode chegar a converter-se num criminoso, torna-se um
ser, até certo ponto, anormal. Quanto mais fortemente o ambiente capitalista
oprime os talentos e temperamentos individuais, mais ruinosas e exageradas se
manifestam estas energias restringidas, uma vez que a pressão se alivia e o
indivíduo recebe um pouco de liberdade para seguir suas inclinações:
frugalidade, amor, sensualidade, ciência, etc. Nesta paixão libertada concentra
o indivíduo todas as suas energias, sua vontade e seu fervor; está
completamente absorvido por ela.
A sociedade
burguesa é o “reino espiritual dos animais”, dos medíocres, da vulgaridade e da
uniformização de tudo, desde os costumes correntes até a moral e a psicologia.
O mundo do “grande igualador”, o dinheiro , sufoca todo o ímpeto
extraordinário, viola todo o talento e toda a habilidade individual.
Nos tempos
que correm, dinheiro significa prazer, consideração, amigos, sucesso, aptidões
e até inteligência: esse doce metal pode ser objeto constante de amor e
respeito dos mortais, qualquer que seja a idade ou condição, de reis a
costureirinhas, de grandes proprietários a emigrantes. No entanto, esse mesmo
dinheiro, fonte de todos os prazeres, origem de todas as glórias, é também
objeto de todas as disputas .
Qual a
contribuição de Balzac para o desenvolvimento artístico da humanidade? Consiste
exatamente em ter conseguido no campo da prosa artística precisamente o que
Hegel conseguiu no campo da filosofia: apresentou um quadro universal e
verídico, ainda que, às vezes, de forma torcida e idealista, da natureza
contraditória da sociedade burguesa em todas as suas manifestações.
Apresentando este quadro, mostrou excelente compreensão da dialética social do
ponto de vista de um pensador e especialmente de um artista. Apesar de seu
valor ao criticar as faltas, mazelas, da sociedade, o realismo do século dezoito
(Fielding e, às vezes, Diderot) havia agudamente diferençado o bem e o mal, a
luz e as trevas. Todo o negativo na vida é consequência da barbárie da
sociedade feudal. Em compensação, os defensores da nova ordem social glorificam
a razão e a justiça, tudo o que é bom na natureza humana. Balzac está acima
desse método artístico abstrato e unilateral; reconhece como lei social básica
a união orgânica entre os lados positivos e negativos da vida e a ausência nela
de fases absolutas. Sua convicção fundamental é que “não há nada de absoluto na
humanidade” (Modesta Mignon); que a vida está dominada pela “lei das
contradições e dos contrastes” (Uma filha de Eva). Em Ilusões perdidas fala do
papel predominante da lei das contradições na vida humana.
O título Ilusões
perdidas, segundo Wisnick, é uma fórmula de amplo espectro. Em princípio,
refere-se simplesmente às desilusões individuais internas ao romance. Lukács,
para quem o confronto com o rebaixamento dos valores “autênticos” origina o
gênero, viu neste romance balzaquiano o próprio paradigma da destruição, pelo
capitalismo, do humanismo revolucionário das primeiras concepções burguesas da
sociedade e da cultura, assim como em D. Quixote o mundo dos ideais feudais
cavaleirescos fora destruído pela sociedade burguesa em via de formação.
A
dedicatória de Ilusões perdidas, a Victor Hugo, é indicadora de como o romance
está situado num embate histórico onde se joga implicitamente o futuro da
literatura. Mais do que uma dedicatória, Balzac faz ao outro escritor um pedido
de aliança contra a potência nova, a imprensa, que passa pela primeira vez a
ser assunto de literatura, como os marqueses, financistas, médicos e
procuradores o foram em Molière. A inclusão é litigiosa, porque a imprensa vem
a ser assunto da literatura depois que a literatura já é assunto da imprensa.
O conflito
entre paixão e equivalência geral é a hora da verdade em O Pai Goriot; encarna,
monumentalizada, a contradição de todas as personagens, que lhe dão atenção
pois nele se reconhecem. Essa verdade, entretanto, “é como um fruto saboroso,
imediatamente devorado”, não é mais que uma sensação. Balzac está formulando a
teoria da arte maldita. O citadino, desgastado e apatifado pelo dia-a-dia,
experimenta com prazer insólito a violência da verdade que lhe diz respeito.
A
fórmula-título do livro, além de conter um retrospecto histórico latente,
parece ter também o poder de se realimentar da própria história de maneira
multifacetada e paradoxal.
A história
moderna pode ser lida, a partir de seu núcleo originário, como uma espiral de
desilusões: do mundo feudal e aristocrático evocado nostalgicamente pelos
primeiros românticos, do humanismo universalista burguês entregue aos
especuladores (é o quadro de 1830) e rompido pela fratura da luta de classes
exposta em 1848, desilusões agravadas no século XX pelo panorama das guerras
mundiais, do nazismo, da desilusão do socialismo pelo stalinismo e pela ruína
do império soviético.
Há uma
linhagem da arte que segue o caminho oposto do qual Balzac desponta como um
naïf, um “gênio ingênuo”, não só da economia política como da literatura, com
sua grandiloqüência apaixonada e muitas vezes descalibrada de observador agudo
e visionário romântico, arrastando tudo com a energia do seu vitalismo
universal. Na linhagem radical da poesia e da prosa modernas, a arte empreende
uma crítica das ilusões da própria linguagem, da representação ficcional (o que
lhe custa um preço em negatividade); mas na arte a ilusão não pode deixar de
ter assim mesmo um valor afirmativo, e essa afirmação é um diferencial
inequívoco, ao mesmo tempo que gerador de uma seqüência infinita de
mal-entendidos com a crítica jornalística.
A arte
aceita a ilusão como seu bem de raiz, e isso lhe permite desfazê-la, além de
suportar a desilusão. O paradigma jornalístico, tal como é percebido por
Balzac, denuncia a ilusão que recusa no seu nascimento, e se vê condenado a
produzi-la e reproduzi-la ao infinito.
A sociedade
burguesa, que exige, pela sua existência, um macroromance das dimensões da Comédia
Humana, onde se encerra o seu grande teatro, parece inviabilizar, ao mesmo
tempo, ou a médio prazo, a sua mise-em-scène totalizante: a imprensa é o grande
sintoma viral desse fato, no romance de Balzac, pululando versões que
pulverizam a aspiração à verdade em verossímeis sem lastro. A expansão da
indústria editorial cria o campo litigioso em que se confrontam, no mesmo
veículo, através da representação literária e da representação jornalística,
duas formas de ficção que disputam a mimese da vida moderna. Balzac chamou para
si, no corpo da própria obra, tomando-o de certo modo como uma afronta pessoal
em grande estilo, ou em grandes proporções, o destino desse drama
histórico-literário que ele percebeu talvez melhor do que ninguém.
O cenário
cosmopolita, com a trama dos movimentos da ribalta e dos bastidores da vida
parisiense, vem para o primeiro plano do romance na segunda parte (“Um grande
homem da província em Paris”), depois das primeiras iniciativas intelectuais de
Lucien Em Angoulême, onde frequenta os saraus provincianos de uma certa senhora
De Bargeton, mulher casada com quem acaba por fugir para Paris (adotando o
sobrenome nobre decaído da mãe, Rubempré, contra o plebeu do pai, Chardon). Ao
lado dos arroubos líricos, aventureiros e oportunistas de Lucien em busca do
reconhecimento parisiense, temos os esforços pacientes e generosos de sua irmã
Ève e de seu cunhado David Séchard para ajudá-lo entre dificuldades de toda
ordem. David Séchard tenta, paralelamente, de maneira desinteressada e empresarialmente
ingênua, inventar um processo novo de fabricação de papel que torne o produto
mais barato para atender às necessidades crescentes da indústria editorial e da
imprensa florescente na década de 1820 (quando se passa a narrativa), e na
década de 1830, ao final da qual foi escrita.
As
vicissitudes do inventor, às voltas com as dificuldades técnicas e com as
ciladas dos fabricantes que queriam se apropriar de sua possível descoberta,
são o assunto central da terceira parte (quando Lucien, malogrado depois dos
sucessos momentâneos em Paris, se vê obrigado a voltar a Angoulême, na
penúria). A história de Lucien de Rubempré prosseguirá, no contexto maior da
Comédia Humana, em Esplendores e misérias das cortesãs, com complicações novas.
A relação entre
Lucien e David Séchad não deixa de remeter à infra e à superestrutura da
indústria editorial, cujo nervosismo atravessa o romance, indo, pois, da
observação da produção artesanal e industrial do papel à análise das condições
de produção do discurso literário e jornalístico, com todas as etapas
intermediárias de quebra. Na segunda parte de Ilusões perdidas está o nó das
relações entre literatura e jornalismo, anunciado e envolvido pelo contraponto
que o livro estabelece entre esses dois diferentes tipos de “poetas”: o jovem
narcisista que, pelo triunfo e o fracasso mundanos, perde os seus ideais
literários e morais, e o anônimo e implacável trabalhador-inventor que,
moralmente avesso ao turbilhão da capital, e do capital, luta pelo melhoramento
técnico dos meios impressos. (A província tende a ser, para o lado idealizante
do antimodernismo de Balzac, o celeiro dos “bons”: David Séchard não é movido
pelo desejo do lucro nem da glória, embora diretamente envolvido, pela natureza
do seu trabalho, com os movimentos da industrialização e do capital).
A história
moderna pode ser lida, a partir de seu núcleo originário, como uma espiral de
desilusões do mundo feudal e aristocrático evocado nostalgicamente pelos
primeiros românticos, do humanismo universalista burguês entregue aos
especuladores (é o quadro de 1830) e rompido pela fratura da luta de classes
exposta em 1848, desilusões agravadas no século XX pelo panorama das guerras
mundiais, do nazismo, da desilusão do socialismo pelo stalinismo e pela ruína do
império soviético (apontando somente alguns marcos da história política sem
mencionar minimamente os naufrágios da história cultural).
Assim, o
mesmo Lukács, por exemplo, lido hoje, é atingido por um novo efeito de “ilusões
perdidas” quando diz que Balzac, no crepúsculo de uma “época de transição”, faz
a ponte entre “o sol do humanismo revolucionário da burguesia” que “já se havia
posto” e “o alvor do nascente novo humanismo democrático e proletário” que
“ainda não era visível”. No pôr-do-sol atual de todo um ciclo da tentativa
socialista, o processo das ilusões perdidas entra em verdadeiro curto-circuito.
Pode-se dizer que, se as ilusões burguesas são destruídas pela idéia
socialista, as ilusões do socialismo são destruídas ainda pelas ilusões
burguesas (que parecem extrair a sua resistência, em grande parte, da própria
capacidade de se alimentar da corrosão). Todo esse panorama aceleradamente
controvertido e especular nos devolve, de alguma forma, ao romance de Balzac.
Balzac ataca
também, do ponto de vista estético, os apologistas do “progresso”, “curvados
servilmente ante os rudes inventos da tecnologia industrial moderna” (Os
camponeses).
A crítica
estética do capitalismo, expondo o antagonismo que existe entre o modo burguês
de viver e a arte e a poesia, desempenha importante papel na Comédia humana. A
classe média da sociedade burguesa constitui uma massa inerte e
insuportavelmente descolorida, de seres indiferentes e insensíveis a todos os
valores espirituais.
A arte
também perece na sociedade burguesa porque não pode encontrar material que seja
digno dela. Um burguês não tem necessidades artísticas.
Balzac
pintará realmente na Comédie Humaine a dinâmica das finanças e do capitalismo
empresarial, apesar dos seus próprios preconceitos e preferências políticas
“reacionárias”? Certamente, a sociedade do seu tempo é retratada na sua obra,
mas a forma estética “absorveu” e transformou a dinâmica social e fez dela a
história de determinados indivíduos – Lucien de Rubempré, Nucingen, Vautrin.
Estes agem e sofrem na sociedade de seu tempo, são, na verdade, representantes
dessa sociedade.
Assim
diz-nos Herbert Marcuse acerca da qualidade estética da Comédie Humaine:
No entanto,
a qualidade estética da Comédie Humaine e a sua verdade reside na
individualização do social. Nesta transfiguração, o universal no destino dos
indivíduos brilha através da sua condição social específica .
Considerado
do ponto de vista da feitura, O primo Pons representa, de modo completo, os processos
de arte de Balzac. Neste livro, como em todos os outros, ele estabeleceu o
interesse do drama sobre vários temas, e cada um desses temas levanta uma
questão de elevado alcance moral, social ou psicológico.
Um dia,
finalmente, a empoeirada vidraça se limpa, o interior se restaura, o auvernhês
abandona os trajes típicos de veludo, enverga uma sobrecasaca! e aparece-nos
como um dragão guardando seu tesouro; cerca-se de obras-primas, torna-se
conhecedor perspicaz, decuplica o capital e não se deixa mais apanhar em nenhum
logro, conhece todos os segredos do ofício. O monstro está lá, como uma velha
no meio de vinte moças que se oferece ao público. A beleza, os milagres da arte
são indiferentes a este homem ao mesmo tempo delicado e grosseiro, que calcula
bem seus lucros e trata rudemente os ignorantes .
Nenhum
romancista já foi mais penetrado do que ele dessa doutrina da importância do
assunto, sobre a qual Goethe volta constantemente nas suas conversações com
Eckermann. Há em o Primo Pons uma primeira tragédia que exprime o título geral:
Os parentes pobres. Em que se transformam as relações de família, nos dados
modernos da sociedade, entre as pessoas das famílias que estão na penúria e das
que se encontram na opulência? Eis um dos problemas localizados pelo livro. Em
que se transforma a amizade entre dois velhos igualmente brutalizados pela vida
e que encontram uma fraternidade de eleição todas as doçuras de afeição de que
os privou a sorte? Eis um segundo problema. De que maneira os seres instintivos,
tal como existem em abundância, entre o povo, podem tornar-se, sob a influência
de uma paixão inesperada, tão criminosos de fato como eram honestos em
aparência, eis um terceiro desses problemas).
A diferença
fundamental entre Balzac e os escritores burgueses da escola liberal consiste
não tanto na sua crítica da sociedade como no caráter integral dessa crítica.
Balzac tira
todas as fases negativas da sociedade burguesa de seus princípios fundamentais,
mostrando que está longe de ser perfeita, que a ordem burguesa por sua
estrutura interior está condenada ao caos e a conflitos desastrosos. Para os
liberais, a superioridade absoluta da sociedade burguesa sobre a ordem antiga,
o fundamento do seu direito de ser chamada “modelo” e “exemplar” era visto
sobretudo à luz da liberdade pessoal e da independência de cada cidadão de
qualquer coação externa.
Para Balzac,
contudo, este principio fundamental da sociedade burguesa é um princípio
anti-social, fonte de inumeráveis desastres. Estabelecer o interesse próprio
como pedra de toque da sociedade é, segundo Balzac, um mandamento dos piores
instintos da natureza humana: o egoísmo e a cobiça. “A sociedade não tem outro
sustentáculo senão o egoísmo. Todo indivíduo crê em si mesmo...” (O médico
rural). “Apodera-se de todos uma esperança e uma ambição de chegar per faz et
nefas ao paraíso terrestre da luxúria, da vaidade e dos prazeres, matando a
alma e prejudicando o corpo só por uma breve possessão desta terra prometida.”
(Eugenie Grandet)). O mundo converte-se num campo de batalha sem misericórdia
onde cada um luta contra os demais, onde “o egoísmo mais selvagem e mais hábil
vence” (Uma filha de Eva), onde os homens “lutam e se devoram como as aranhas
num jarro” para citar Vautrin (Pai Goriot).
A exemplo de
Homero ou Ésquilo, Dante ou Shakespeare, Balzac foi o espelho móbil e profundo,
onde vieram refletir-se, infrenes e ululantes, todas as fatalidades humanas.
Ele não pretendeu reformar os homens senão reproduzi-los, transmitindo-nos, sem
retoques infiéis, as suas diferentes máscaras. Não há nos seus tipos uma
filosofia preconcebida, um sistema de idéias formado no raciocínio puro de
Balzac. Há unicamente exemplares humanos em face das contingências.
Desejoso de
produzir efeito impressionante pela evocação da realidade concreta, não teria
obtido esse resultado senão por meios abstratos, articulando todas as partes
dessa realidade com uma armadura e ligações conceptuais. Disso resultaria uma
constante confusão entre a prosa estética e a prosa racional, de sorte que o
leitor nunca saberia precisamente o sentimento que tem da realidade de uma
cena, afinal, não é apenas uma ilusão devida à verdade do comentário abstrato
que a enquadra.
Na posição e
dedução abstrata dos casos psicológicos, Balzac gasta tesouros de inteligência
que lhe asseguram incontestável soberania sobre todos os moralistas presentes,
passados e, sem dúvida, futuros. Ninguém conheceu melhor que ele a vida média e
os mil aspectos que pode revestir uma ideia social posta em contato com a experiência:
vale a pena reler estas admiráveis análises em que Balzac definiu as relações
entre os noivos e os esposos: Memórias de duas jovens esposas, Uma dupla
família, O contrato de casamento, Uma filha de Eva, etc.
O retrato de
Natália Evangelista, por exemplo, é uma obra-prima, e a atitude de Félix de
Vandenesse em face de sua mulher representa uma das situações mais profundas,
mais delicadamente naturais já concebidas.
Mas, do
ponto de vista que nos interessa, é essencial observar que o acento, nessas
narrativas, está na análise abstrata, concebida e executada à margem da ação e
antes dela; e que a ação representa aí apenas um papel complementar.
(**RIO DE
JANEIRO**, 13 DE ABRIL DE 2019)
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