#OS DEDOS SE EMBURGUESAM E O ESPÍRITO SE ACHINCALHA# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA AUTO SATÍRICA
Epígrafe:
"... em nível do mar, em clima tropical, os
dedos se emburguesam e o espírito se achincalha."
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Não sinto o medo próprio de meu caráter meigo e
reto, ao me encontrar em choque com a sociedade, pastores e suas ovelhinhas, e
em contato com um acontecimento que transcende das regras ordinárias, nem
estou, como ela, pressuroso por me reintegrar na vida quotidiana. Elucubram,
cogitem, perscrutem, conjecturem, mas a vida quotidiana não concede nenhum
sabor de suas circunstâncias e situações, senão gostos insípidos: perambular,
deambular na contramão, nas margens é bem mais interessante ou estar no porto solitário,
aliás, é o mais eficiente.
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Minha posição atual, de momentânea felicidade,
dá-me um prazer selvagem como se colhesse uma flor de estranha beleza,
desabrochada em lugar desolado, ao sabor do vento, aquela deliciosa maresia
marítima. O segredo, enquanto assim possa ser chamado, mantém-me numa espécie
de encanto, chamo-lhe de "encantamento", por surpresa causar-me ser
solícito, numa solidão entre os homens, num afastamento tão completo como o de
um abismo no meio da serra, ramos das duas árvores pendem sempre as mais belas
grinaldas de flores.
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O mundo me parece estranho, mau e hostil. O meu
passado, solitário e obscuro. O futuro, uma tristeza informe que devia modelar
em formas sombrias. Transponho o limiar da porta, trazendo esperança, calor e
alegria. O momento amargo transforma-se, logo, num momento ditoso.
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O mundo deve todo o seu progresso a homens
infelizes. Os felizes confinam-se dentro de moldes antigos, retrógrados. Tenho
o pressentimento de que, daqui por diante, a minha missão será plantar sementes
de outras árvores, fazer cercas, e, talvez mesmo no tempo oportuno, construir
uma casa para outra geração, e, numa palavra, conformar-me às leis e aos
costumes tranquilos da sociedade. Considero e reconheço a sociedade como uma
intransigente hierarquia de méritos e poderes. Meu equilíbrio será mais
poderoso do que qualquer tendência oscilatória da minha parte. Não me é dado o
entendimento do sentimento deste equilíbrio, o bem nasce do fundo do abismo do
coração, a verdade nas jovens trevas - que ironia! ou seria um sarcasmo ácido
de haver colocado a fé nos pés, calçado de fé, e para este equilíbrio cabendo
ao intelecto a incumbência do mundo e do pensamento, a adesão de ambos - de meu
Entendimento.
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Nesta hora tão cheia de medos e dúvidas, opera-se o
milagre sem o qual toda vida humana é um vácuo. A benção, que torna tudo
verdadeiro, sagrado e belo, desce sobre mim.
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A face rígida e estranhamente branca recusa-se a
desaparecer nesse dissolvente universal. A luz torna-se cada vez mais
desmaiada. É como se outro punhado de escuridão tivesse sido espalhado pelo ar.
Agora, o ambiente não é mais cinzento, porém negro. Ainda há uma luminosidade
demasiada na janela, que, entretanto, não deverá ser tomada como uma
incandescência, clarão ou vislumbre; aliás, termo algum porque se denomina a
luz servirá para o caso, senão essa percepção duvidosa de que há uma janela.
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Frente à janela, campos lavrados e prados
ondulantes; mais longe, as montanhas escuras e misteriosas, plantadas nas
florestas. Além dessas, sombrias, ainda, desenham-se outras e mais para longe,
bem no alto do horizonte, sempre bela e sempre mutável, sempre a jogar com a
luz como o diamante, ergue-se a serrania das neblinas eternas.
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Devo, pois, constantemente traçar caminhos novos,
não importa em que direções. Mas é talvez por causa disso, precisamente, que
tenho por vezes desejo de escapar pela tangente, precisamente porque estou
condenado a traçar um caminho e também porque, por estúpido que seja eu,
adivinho por vezes que toda estrada leva sempre a alguma parte, e que não é a
direção que importa, mas o próprio fato de que ela me conduz para um lugar
qualquer.
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Receio a luz demasiado clara: por isso me resguardo
de meu tempo, e do “dia” desse tempo. Nisto é como uma sombra: mais o sol se
põe, maior eu fico.
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Quanto a minha “humildade”, assim como suporto o
escuro, suporto também uma certa dependência, um certo obscurecimento: mais
ainda, temo ser incomodado pelo raio, recuo ante a desproteção de uma árvore só
e abandonada, na qual toda intempérie descarrega seu mau humor.
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Começo de perguntar se esta procura desvairada da
pureza, do sublime, da purificação, não vai dar, em verdade, em alguma brancura
sinistra e misteriosa, irrespirável. São agora as palavras que parecem violar
uma proibição. Nivelando esse passado ao presente num paradigma que me remisse
de todos os enganos, equívocos, de todos os pecados cometidos. Apagando as
desilusões, reparando preconceitos e injúrias, re-plantando alegrias e plenas
realizações.
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Descubro a imagem da sagração e da renúncia. Sim,
de certo modo, a arte sempre se serve a si; ignoro quando servi verdadeiramente
uma transcendência, e isto me cobriu de orgulho e alegria. Propriamente recordo
e não conto.
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Ainda uma certa perspectiva de ironia em que a
intenção imediata se corrige, em que o espírito e intuição se erguem desde o
próprio sentir ao sentir de mim. De novo os homens erguem uma harmonia de
sentimentos e emoções, coroada de eternidade; de novo uma vereda sinuosa de
águas subterrâneas lhes escapa a segurança. Olho agora eu a incomodar-me com a
desgraça de toda gente. Tenho que chorar. Está aqui uma crise, sem um motivo
concreto em que nele possa escarrar, coisa que se visse com os olhos, se
apalpe. Um demônio incerto surge de fundos obscuros, e, por todo o escritório,
o mistério de uma sombra.
As portas fechadas. Ergo os olhos diante de mim
melancolicamente, às vezes espiritualista, por vezes louco, nunca perdendo o
domínio sobre as impossíveis grandezas, sempre sonhando altos projetos, e
sempre acordando para fins imbecis e hipócritas. Na verdade, só o vazio pode
acolher o múltiplo. Sei bem que não serei alguém – devo-me tudo, a começar pelo
vazio que cavei em mim e ao redor, como o jogador desafortunado que espalha as
cartas sobre a mesa, com as costas da mão, - em nível do mar, em clima
tropical, os dedos se emburguesam e o espírito se achincalha.
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Ouço o canto ausente. É feito de silêncio cortado
de gritos. Dentro da lareira do silêncio, em semente ardente: a fumaça do
cigarro tem sido de minha esperança.
#riodejaneiro#, 13 de novembro de 2019#
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