#RUÍNAS DE MUNDOS PASSADOS# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira: PROSA
Contemplo o fogo,
as nuvens,
o aspecto nublado do dia,
ocasionado por uma chuva
que acontecera por volta das onze horas
até às três da madruga,
e por ser em região alta, cercada de serras,
o frio está intenso.
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E quando surgem presságios – não é incomum, se o
for, nada me desautoriza, haver presságios inúmeros num instante de
contemplação do fogo que me invade interiormente, e só disponho da habilidade e
inteligência, misturadas às engenhosidades e, se ouso dizer, à intimidade com
as palavras.
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Converso sozinho, e com estas mesmas palavras,
enquanto, encostado ao parapeito de minha sacada, olhando a NOITE que se
desponta viva e escura e misteriosa, revelando quem sabe os segredos mais
profundos que na alma me habitam, e me sinto ademais jubiloso e orgulhoso de
tudo o que me sucede, algo divino, mágico, e para não acabar com isso é que me
contento com a contemplação.
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As vozes que em mim soam, e em minha alma
abandono-me a elas sem perguntar se isso convém ou não. Daqui a algum tempo,
ininteligível, imperceptível a olhos nus, que me escapam inerente à vontade,
conseguirei me perder, entrar na escala burguesa e fossilizar-me – entrar na escala
burguesa outra coisa não significa senão sentir prazeres imensos, um alívio no
peito, enfim, e o que mais se deseja nestes espíritos, a melancolia e a
nostalgia, nada há de mais esplendoroso para eles.
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Muito diverso é quando minha veneração pelo frio,
pela rua, solitário, nela não reconhecendo uma viva alma que a atravesse,
havendo medo de passar na calçada, muito escura, sombras, só mesmo andando no
meio da rua, e meu carinho são alheios a todo hábito e correspondem a uma pura
inclinação pessoal, uma tendência para a alegria e o prazer sem nada que os
sustente, aliás, havendo razões para que os desaprove e censure, quando de todo
o coração sou homem sobremodo interiorizado, em mim guardo dentro os
sentimentos mais esquisitos e divinos, não ousando revelar, se o fizesse, com
certeza, não ouviria de ninguém senão risadas as mais sarcásticas e irônicas,
um perfeito visionário, um otário de grande estirpe, um idiota, por achar lindo
e maravilhoso não sentir melancolia e nostalgia em noite de inverno intenso.
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Cada um dos pensamentos que me afastam ou voltam-se
contra meu próprio coração, como uma seta envenenada, e cada um dos gestos que
revelo acerta-me de volta no rosto.
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Naquele que acredita seguir uma moral superior, uma
ética humanística, surgem as idéias de “traição” e de “ingratidão” como
censuras e estigmas vergonhosos, e o coração, assustado, foge temeroso para
refugiar-se nos interstícios, nos abismo e desertos vales das virtudes, sem
resignar-se a crer que também essa ruptura com o que sucede a todos numa noite
de inverno, se estão ou não recostados ao parapeito da sacada de casa ou
simplesmente trancafiados num quarto, e presentes os medos e dúvidas atrozes,
há-de ser consumada e o laço rompido.
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Sabe o bom Deus como nascem tais palavras, como as
deixo serem pronunciadas, a espontaneidade, a hesitação, até mesmo a volúpia
com que sou tomado por longos tempos, desde horas e segundos imemoriais.
Digo-as sem más intenções e sem ter a mínima idéia da tragédia que podem
causar, dos íntimos desfacelados e desesperados que podem advir devido a estas
palavras.
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Em verdade, sinto que digo algo cujo alcance
ignoro, cedo a uma ocorrência insignificante, um tanto jocosa, talvez um tanto
viperina, e essa ocorrência se transforma em destino, muda-se em fatalidade
inexorável.
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Enfim, o que ocorre e residir num lugar onde tudo
cheira a velhice, a antiquices, a coisas que são impossíveis de retornar, e um
odor fétido por todas as ruas e becos, devido aos casarões velhos, as casas
antigas, e os rostos resplandecerem as primitivas ações e reações. Nada há que
possa identificar melhor a fatalidade. Condenado a viver no passado, sem a
mínima possibilidade de algo presente, de algo que esteja acontecendo agora, ou
seja próprio de agora.
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Mas, para mim, isso porque nutro e alimento
sentimentos ainda com um quê de pureza e inocência pela cidade, por sua
arquitetura construída no fundo do abismo, tudo isso é mais curioso e
interessante do que realmente vital; soa-me a erudição, à laboriosa investigação
sob as ruínas de mundos passados, e de repente, sinto grande repugnância por
toda essa atitude espiritual por que sou tomado numa noite de inverno intenso,
por haver chovido durante a madrugada passada, e por todo o dia fizera frio
intenso, contra o culto de mitologias e esse mosaico de velhos hábitos e
costumes, de costumes e de religiosidades existentes na comunidade.
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Pela manhã, acordara com uma fome sem fronteiras,
ocasionada por não haver jantado, não haver sentido qualquer desejo de preencher
o vazio do estômago com alimentos, e decidira fazer uma farofa de ovos. Acendi
o fogo, coloquei óleo, cortei as cebolas, e pedi à senhora da pimenta pequena e
redondinha que recebera de agrado de uma de suas clientes.
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Não é pimenta que arde muito se esmagada com os
dentes do garfo, espalhada na comida, mas se mastigada arde um bocado. Digo-o
por haver ousado mastigar uma, e a conseqüência fora tomar água até ao final da
comida.
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Por volta do meio dia e meio, a senhora chegara
para o almoço, e de novo perguntei se ela podia arrumar-me mais de suas
pimentas. Disse-me não ficasse a comer pimenta toda a hora, isso faz um mal sem
limites para o fígado.
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Comentara então que se a pimenta fosse esmagada e
espalhada na comida não ardia, mas se mastigada resplandecia. Estava mesmo mui
bién inspirado, pimenta resplandecer é realmente muitíssimo inusitado, até
revelação artística muito original, coisa que ninguém ousara dizer, dizia eu
que a pimenta resplandece no mais íntimo de nosso espírito com a sua ardência.
Mangofava de mim, sabia-o eu, mas que diferença fazia a sua opinião ou não?
Para mim, nenhuma.
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Estava com um espírito muitíssimo manifesto de
crítica aos poetas e artistas, os que são capazes dessas transgressões
violentas para despertarem nos homens as fantasias e sonhos os mais impossíveis
e excêntricos, e se eles mergulham profundo são mesmo capazes de sentir a
ardência que resplandece no espírito as mais divinas sensações de prazer e gozo
com as coisas simples e venenosas existentes no mundo.
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Minha atitude, aceitando em silêncio o absurdo de
dizer que a pimenta resplandecia no espírito, se mastigada sozinha e não
amassada com os dentes do garfo, renunciando a ter razão e reconhecendo minhas
palavras serem manifestação do insólito e do imbecil, muito mais que aquilo que
se tem costume dizer: quando cachorro encontra a porta da igreja aberta, entra
até no fundo à busca de um osso, mesmo que esteja em fase de transformação em
cinza.
#IGUABA GRANDE(RJ), 05 de fevereiro de 2020#
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