VISCERAS DO PASSADO E PRESENTE GRAÇA FONTIS: PINTURA MANOEL FERREIRA NETO: PROSA
Os sofredores são todos esplendidamente dispostos,
inventivos, criativos, em matéria de pretextos e desculpas para seus afetos e
ternuras dolorosos – se não estivesse eu neste estado de letargia tão nítido,
servir-me-ia deste início para mais um instante de completa e perfeita ironia,
mas devo, de antemão, confessar que não há qualquer disponibilidade para este
empreendimento. Deixo fruir a própria desconfiança, a cisma com baixezas e
aparentes prejuízos, revolver as vísceras do passado e presente, atrás de
histórias escuras e questionáveis, em que possa regalar-me em uma suspeita
torturante, e intoxicar-me do próprio veneno da indiferença.
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Quem dera pudesse eu, agora, sem mais atraso ou
protelação, rasgar as antigas feridas, sangrar de cicatrizes há muito curadas.
Esta maneira de raciocinar é comum a todos os enfermos, tanto mais quanto lhes
for desconhecida a verdadeira causa da insatisfação e do mal-estar. Aliás, sem
sombra de dúvida, devo acrescentar num estilo humilde e sofisticado que as
misérias não assumidas são sempre elogios recebidos, crendo que gostaria de
estar acostumado ao ar cortante das alturas, a caminhadas invernais, ao gelo e
aos cumes, em todo sentido. Seria sim preciso uma espécie de sublime petulância
do conhecimento, uma última, securíssima, para que eu despertasse e, então,
deixando para trás a letargia, mergulhasse, por fim, num tempo mais forte do
que este presente murcho, inseguro de si mesmo.
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De quando em quando, suplico e rogo que me concedam
uma visão, concedam-me apenas uma visão, de algo perfeito, inteiramente
logrado, feliz, potente, saltitante, glorioso, no qual ainda haja o que temer.
Pressinto que tudo se desmorona, enlanguesce, descende, desce, torna-se mais
ralo, mais plácido, prudente, manso, medíocre. Quem em meu lugar, não só para
recusar as minhas palavras, para se afastar de sentimentos tão desagradáveis e
mórbidos, não preferiria mil vezes temer, podendo ao mesmo tempo se admirar e
orgulhar, a não temer, aprendendo a se perceber como apogeu e meta.
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A permanência no mundo sempre teve para os homens
valores ambíguos, contraditórios. Entristece-lhe e rejubila-o; angustia e
felicita saber que se estivessem de acordo com os princípios e valores
estabelecidos, não importando se para escravizar ou libertar, não seriam
aceites por ninguém, se são mui reconhecidos e valorizados é que em nada
concordam e endossam, não conseguem olhar, porque não são normais é que são
amados e queridos. O mundo repete por toda a eternidade uma única coisa. Em
princípio, consegue seduzir porque está em tensão entre um dado irresistível e
uma exigência de superação nunca satisfeita, dividida entre o apelo da terra e
o do mundo; depois, cansa, porque os homens encontram na tagarelice quotidiana
um refúgio para a angústia, e a vida vulgar dará lugar à outra, onde tudo se
tornará muito forte, denso, contundente, onde tudo se vive sem medos e defesas,
onde nada ousa sorrir, onde nada obedece e responde e reclama, onde nada é
esquecido...
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Experimentar a intimidade, uma vez vivida e sentida
não se apaga mesmo que os homens se amesquinhem, ridicularizem-se,
degenerem-se. A réstia de luz que perpassa o tempo, o espaço, envolve um
mistério de doação “escondido na beleza, na volúpia, na quebra da solidão, no
a-núncio da esperança, no afastamento do medo, na presença e re-velação do
silêncio."
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Ser tempo no coração do eterno. Sempre é tempo de
se arranjar tempo, rever como ando levando o tempo. Não é libertador procurar
nas nuvens a razão de ser de minha vida. Não é consciente buscar nas sombras o
que só se manifesta no sol, em sua presença de luz e raios. Mas, no “cada dia”,
no “cada dentro”, no “cada um”, na integralidade de tudo isso englobando a
vida, dando sentido aos pormenores, doando sentimentos e emoções ao detalhes,
amor e carinho, dedicação e ternura às picuinhas mesmas.
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É tempo de ainda ter tempo de transformar as
experiências dos sonhos que há no amor: tudo está re-começando, tudo está em
princípio, no início, tudo está em esperança.
O que me vem à boca e tem nome refugia-se na timidez
do silêncio, porque a voz que me fala transcende o passado, o presente, futuro,
vibra desde as minhas raízes até ao termo, e terno, aí onde o amor é mais pura
expectativa, pura interrogação.
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Ímpeto de entrar corajosamente pelas águas adentro
– curvar-me ao seu jugo, - seguro de que estou nos últimos sinais...Admiro
principalmente a habilidade de falsários com que os homens imitam o cunho da
virtude, e mesmo o tilintar, o tilintar de ouro das virtudes. Têm a petulância
de dizer, saboreando todas as palavras, que são os homens de boa vontade:
"EU SOU POETA", havendo tanto orgulho nesta fala que o próprio
orgulho declina a cabeça naquele gesto de dúvida "Sou mesmo capaz de
endossar esta importância tanta? Só resta dizerem SOU O POETA QUE É. Só Deus
pode dizer ser Ele o que é." Erudição definida, e, sobretudo, um caráter e
um coração.
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As depressões fazem-me sorrir agora e não sei o
motivo de, com este amor todo, do fundo da memória, chegar-me a imagem de um
prado, ladrilhado de ardósia. Se a consciência reouver um instante de
perspicácia, os contornos perdem-se.
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Dez horas. Tinha fraca esperança de poder conciliar
o sono. Há mais de uma hora que vigio a porta do quarto, luz acesa, desejando,
com impaciência febril, ver passado o péssimo momento de estar só, de estar
aqui tentando tornar as palavras uma companheira, uma amiga sincera e leal.
Deixo de olhar para a porta, mas passo a vigiar com atenção o rádio-relógio.
Marca dez e um quarto, dez e meia, dez e quarenta e cinco, começando a
aproximar-se das onze horas. Tenho de reconhecer, com desgosto, que estou
sozinho, e mesmo que saísse e encontrasse com alguém de minhas relações, ainda
assim permaneceria em todos os sítios de mim o travo da solidão e da amargura.
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Se antes o olhos mostravam ânsia de entender e
compreender o mundo, trazendo para o interior deles mesmos todas as
manifestações, agora mostram a vontade de penetrarem as dimensões todas do
espírito. O corpo pulsa. Verbo de um ato que corta a natureza feita de sonho.
#riodejaneiro, 28 de fevereiro de 2020@
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