**NO CAOS DAS COISAS, SOU EU!** GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto/Graça Fontis: PROSA
Epígrafe:
Deixo a triste tristeza... triste. A Inspiração em
mim é inesgotável!...(Manoel Ferreira Neto)
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Agora começou a chover. Venta e faz frio. Meu corpo
molhado treme e a tristeza é ainda maior. Nem percebi a tristeza chegando;
quando vi, estava triste. Nunca manda um bilhete, um aviso de quando vai
chegar. Já tivemos algumas bungas-bungas por mostrar sua face quando não é
convidada, sempre em horas impróprias. Teimosa como ela, não adianta brigar,
rasgar os verbos, jamais irá mudar isto, não questiono com quem se diz dona da
verdade. Pus-me certa vez a dialogar com um doutor em dialéctica da iluminação,
arrancada do ser-tao roseano, os seus óculos deveriam ser para longe, enxerga
com primor de perto, pós quinze minutos de conversa, pediu-me licença, tinha
coisas a fazer, mas "Precisamos encontrar outras vezes, sua inteligência é
sublime", disse, conservando os olhos baixos.
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Caminho por ruas esburacadas e, por vezes, enfio o
pé em poças d´água, com certeza contaminadas pelos dejectos que os transeuntes
jogam. Minha alma está triste até à morte - a tristeza mergulha profundo no meu
coração, consome-o. Meu eu agora é esquálido, magro, quase um nada e a tristeza
não deixa de corroê-lo, daqui a átimos de segundos não mais existirá e como a
tristeza é insaciável, em pouco tempo, tempinho de nada, consumirá a si mesma,
como as chamas ardentes do fogo sem nada onde se aderir; dar-se-á a
metamorfose; serei uma águia, livre, leve, bom, e voarei para além desse chão
lamacento - seria que nos tempos barroqueanos existia tanto barro, chão tão
barroso? -, para além dessas nuvens escuras, e me fundirei, num amplexo de amor
e carinho, com o azul infinito deste céu diáfano que meus olhos cegos já
começam a ver.
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Queria escrever versos gritados, ferozes, versos
selvagens, versos rebeldes, versos revoltados, versos que explodissem em mil
sons, versos gargalhadas terríveis, versos risos amareliçados com aquela
pontinha de cinismo, ironia, versos em voz rouca, versos "limão
capeta", "pimenta malagueta", eita, sai de baixo, ardem até nas
prefundas da alma, versos realisticamente fantásticos, versos que confundissem
o coração e ferissem a inteligência, versos ecos em abismo e labirintos, versos
mistérios de fundo oceânico, queria escrever vida em versos.
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Não queria escrever versos de tristezas tristes,
estes versos corróem as palavras, são ácidos cítricos, kkk. Vou garatujando
letras nas linhas da página sob o feitiço, mau olhado, macumba da tristeza,
daqui a pouco, quiçá, estarei livre, estarei alegre e contente. Não escreverei
versos, escreverei prosa. Os mistérios da prosa insinuam-se, convocam. São e
estão. Nas cordas interiores vibram os dedos da mão. Versos vertem lágrimas
pujantes, prosa revela brilhos no olhar, nesta me entrego.
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Não estou triste e nem alegre agora. Estou. Não vou
investigar o que estou, não vou obter resposta plausível. Deixo-me estar.
Deixo-me estar sentado aqui na mesa do restaurante, frente à entrada da Matriz
de São Antônio, final de celebração, os fiéis agora vão praticar outras
solidariedades das condutas de má-fé, cometer outros pecados, olhando a
chuvinha que cai lá fora, por vezes passando o dedo indicador, o cliente atrás
de mim, cadeira a cadeira de costas, está usando perfume de quinta qualidade ou
é o famoso "cecê", a agenda aberta, a mão sobre a mesa segurando a
caneta, logo uma imagem acompanhada de metáfora. Deixo-me estar garatujando
estas letras.
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Canção da Liberdade...
Olhar perdido... Imensidão
Nada silencio do dia a dia,
Levo-me circunspecto,
Em ristes passos de encontro ao vento
E a brisa que o tempo de longe traz.
No convite, o perscrutar os sinais
Das percuciências a serem compreendidas
Ao longo da estrada a perder-se, perder de vista,
Alamedas sinuosas advirão até primevas estações
Cujos porvires são de outras paisagens, panoramas,
Aquando se incidem no silêncio
As cores que compõem
Rastros de outros sonhos a galgarem
Ondas siderais e seus boreais profetizadores,
Trilhas de muitos passantes rumo ao desconhecido.
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O vento incoerente prepara o caos das coisas.
Murmúrios e estrondos estão lado a lado. O que me ensina? Ensina-me a ontologia
do pressentimento. Enleva-me na pré-audição. Pedem-me que tenha consciência dos
mais débeis indícios. Tudo é indício antes de ser fenômeno nesse cosmos de
limites. Quanto mais débil é o indício, mas tem sentido, pois que indica uma
origem. Ascendem e acendem as chamas calientes da verdade na alma, quando o
cântico evidenciado nas mãos da esperança a lacrimejarem os olhos da liberdade,
o coração ouve o ritmo de canções de virtudes que não se compactuam, pactuam
com as diferenças presentificadas na quotidianidade e seus valores embutidos ou
expressos sem quaisquer níveis de pudores.
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Ah, inteligência quiçá de outros tempos
Em que a hipocrisia não reverberava as
indefinições!...
Há, contudo, hoje,
A consciência de seus danos, consequências,
A que patamar do nonsense e da bestiloidia levam,
Há-de superar-se, suprassumi-la.
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Triste tristeza. Tristeza triste. Triste tristeza
triste. Brinco com as palavras. Estão elas abertas para mim, consentem
plenamente que eu as registre nas linhas da página, mas eu, tomado desta triste
tristeza triste não estou conseguindo mergulhar em mim. Deixo-me.
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Deixo a triste tristeza... triste. A Inspiração em
mim é inesgotável!...
#riodejaneiro, 28 de fevereiro de 2020#
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