**BORBOLETEANDO ALEGRE PELO ESTÔMAGO** GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: CRÔNICA
Agora como e levo muito a sério a salada de alface,
a carne de frango, torresmo, cerveja. Faço do prato objeto de alegria e
regozijo. Abro a boca, procuro olhar para ver se há alguém a observar-me a
comer. Coisa desagradável é estar sob os olhares de alguém, estando a comer -
ainda mais quando se trata de estar almoçando num restaurante chique como este
de Iguaba Grande, ÁGUA NA BOCA, acompanhado da esposa e cunhada. Há quem segure
o garfo como se fosse uma enxada, mas isto é de sua natureza. Não come, capina
a comida no prato.
@@@
Quer seja alto prazer, quer seja sublime
ingenuidade, quem vive tão assim no presente, em busca de saciar a fome de
conhecimento, e sabe apreciar o gosto de cada alimento, está acima de tudo, e a
vida nada consegue realizar contra ele, subestimar-lhe, negligenciar-lhe.
Talvez não chegue a entender por inteiro a vida espiritual. Mas quanto ao
resto, as tristezas, as angústias, os tédios, vazios, aos problemas pessoais,
anseios e aspirações, dúvida não haja de que os compreende bem.
@@@
Um instante de reflexão, um tempo de penetrar em
mim e indagar a parcela de culpa que me cabe nesta desestrutura e na violência
que impera no mundo – difícil fazê-lo! Preocupam-me estas coisas. Teria algum
sentido escrever ou pensar algo que não fosse humano? De nada valeria ter boas
e saudáveis idéias.
@@@
Pudesse frequentar um ridículo e nauseabundo salão
onde se dança ao som de Blues, e mais ainda que pudesse exibir-me como
dançarino perante indivíduos estranhos, sem ao menos saber como se move os pés
para dançar. Confesso que rio sem qualquer pejo e me envergonho interiormente
quando só, no quarto de estudos e leituras, punha um disco no aparelho e
repetia os passos que observava os personagens de filmes ou novelas fazerem.
Não havia qualquer originalidade, e creio que a ausência dela é que os tornava
interessantes. Após ter adquirido a tão esperada originalidade, tudo perdeu o
interesse, tudo se tornou bem insípido. Sem ela, as coisas parecem mais
verdadeiras. Só que não consigo esta destreza, e tenho que a perseguir
continuamente.
@@@
Santo Deus, estou aqui envolvido neste mundo que
até então procurei evitar com tanto esmero, neste mundo tão desprezível de
pessoas sibaritas, neste mundo tão rotineiro e polido das mesinhas de mármore,
das etiquetas e movimento de mãos, da música de Jazz e Blues. Se ao menos fosse
um jovem robusto, bonito e elegante, mas sou um enorme pateta, de uma feiúra
que faz pena, que não sabe dançar, a não ser a capoeira do pensamento e dos
sonhos.
@@@
Mas mesmo assim é de minha intenção que alguém se
apaixone por mim, mas não há pressa – enfim, sou mineiro, e este jamais tem a
pressa, é lerdo, é lento, é devagar. Primeiro é necessário que me torne colega
de alguém, duas pessoas que desejam ser amigas, porque nos conhecemos mutuamente.
Por ora temos de aprender um com o outro e nos divertir juntos. Ensinarei a
minha comédia, em retorno recebo as lições de como impressionar os presentes
com os passos mais perfeitos do Jazz ou do Blues. Velhas lembranças de antanhos
tempos.
@@@
A música não depende de estar com razão, de ter um
fino e requintado gosto ou erudição musical e o resto mais. É só observar os
pares num salão de dança no instante em que a música re-torna a tocar após um
intervalo demorado. É só observar como os olhos brilham, os pés se movem e os
rostos começam de sorrir.
@@@
Restam os ossos no fundo do prato. Prato com resto
de comida. Na juventude, olhava com afinco os restos, causavam-me uma sensação
estranha e esquisita. Talvez a intenção fundamental fosse: "Borboletear alegre
pelo estômago/Numa folia de amar." Embora a esquisitice estivesse em
imaginar a comida no estômago, toda ela misturada. Aí sim é de sentir
estranheza, quem sabe até vomitar para me sentir por inteiro livre da mistura
no estômago. Os restos não ficavam misturados no prato.
@@@
Ai, que prazer me dá, quando causo reações
esquisitas!
#riodejaneiro, 18 de fevereiro de 2020#
Comentários
Postar um comentário