/**PERS-PIRAÇÃO LUMINOSA DO MÉRITO**/ GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: SÁTIRA
Epígrafe:
"Louco não morre, transfere a loucura para o
além." (Manoel Ferreira Neto)
"Jura que quer ficar em evidência? Então,
retire-se do foco."(Graça Fontis)
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O grande Erasmo, crítico de mão cheia,
inspiradíssimo que estava, registrara nas linhas do papel em que escrevia que
andar atrás da fortuna e das distinções é uma espécie de loucura mansa.
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Não sei o que quis dizer com “loucura mansa”. Por
mais tenham os críticos e especialistas mergulhado em sua obra, explicado e
esclarecido as dimensões de suas idéias e pensamentos, ideais e utopias, os
fundamentos da moral e ética que professava, as suas críticas ao tempo em que
vivia, e tenham os críticos sido sérios e responsáveis com as exposições
feitas, jamais a verdade será revelada, por todos os séculos haverá
interpretações e análises mais profundas e percucientes, também imbecis e
idiotas; as novas idéias contribuem para novas visões, refiro-me às cientÍficas,
literárias, filosóficas, psicológicas, sociológicas e teológicas, não me
esquecendo do momento político, econômico, social, das situações existenciais e
espirituais dos homens. Tudo são elucubrações, interpretações, análises,
leituras de uma obra, seja imensa, seja mais que pequena, menor ainda que a
imaginação fértil possa conceber, esta não interessa a ninguém, foi lida por
alguns íntimos, amigos e familiares do autor, não chegou ao conhecimento
público nem em sua terra-natal, satisfez apenas a vaidade do autor de deixar
uma obra publicada, de tornar real o que sempre se diz sobre para ser homem:
plantar uma árvore, escrever um livro, ter filhos. Já fiz tudo isso, escrevi
inúmeras obras, tive dois filhos, plantei algumas árvores, e não me julgava homem
senão quando me dispus a morrer pelos sonhos, projetos que me habitavam.
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Suponho, imagino, fantasio que Erasmo, ao dizer que
andar atrás da fortuna e das distinções seja uma espécie de loucura mansa,
porque não ferirá os orgulhos da esperança e da fé, não ferirá os ideais de
encontro com a verdade, o louco não jogará pedras em ninguém, em nenhum
sistema, princípio, dogma, não mostrará a ninguém que fortuna e distinções
neste mundo não são possíveis, tudo são vaidades de por baixo do sol; poderia
até serem profundas, a fortuna e distinções, se estivessem acima das nuvens,
das estrelas, do sol, próximas, bem próximas do paraíso celestial, ou já nele.
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Analiso e interpreto isto à luz de uma loucura
simples, de uma loucura inofensiva, de uma loucura desde sempre determinada por
Deus, ou seja, como destino, uma loucura hereditária, fisiológica, saga, sina,
determinada pelo pecado original – meu Deus! isto me inferniza a todo momento –
pela natureza humana que me habita, pela condição existencial que me perpassa o
corpo, a carne, os ossos, e tudo o mais.
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Sempre ouvi dizer “louco de pedra”, referindo-se
aos maiores disparates e despautérios de um homem, às maiores arbitrariedades,
é aquele que está mais do que ensandecido, a sua loucura transcende todos os
sensos e realidade, vai além de todos os ridículos. Este joga pedra, acerta a
cabeça de todos, mata mesmo se for atingido algum ponto sensível.
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Mas “louco manso”, em termos do que posso entender
e compreender das palavras de Erasmo é aquele que simplesmente está com as
idéias desvirtuadas, confundindo alhos com bugalhos, não sabendo discernir o
trigo do joio, fantasiando coisas sérias com coisas espirituais e verdadeiras,
quimeriando desejos de lucidez com realidades espúrias e chinfrins. E, tomando isto
em consideração sine qua non, disponho-me bem livre e tranquilo para uma
demonstração. Há quem pensa, sente, elucubra, medita, reflete que para estar em
evidência faz-se mister estar sob foco, onde a luz incidir lá estará ele para
enunciar a sua lídima importância... assim, jamais estará em evidência, inda
tido e havido como um atoleimado. Quem realmente quer estar em evidência, ser o
ás do baralho, jamais se apresenta, corre léguas do foco.
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Apesar de todas as confusões, equívocos, não faz
mal, não prejudica ninguém, vive seus distúrbios mentais de modo tranqüilo,
consigo mesmo, não espera a morte para se ver livre, libertar-se dos
sofrimentos e dores de seus distúrbios, porque louco não morre, transfere a
loucura para o além. Estou dizendo uma coisa inusitada, excêntrica, creio seja
algo inédito, mas aqui não é lugar e hora de fundamentar esta idéia que com
certeza iria ser bastante discutida nos manuais de loucura.
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Andar atrás da fortuna e das distinções é loucura
mansa, não vai denegrir os brios de ninguém, não vai prejudicar os princípios e
preceitos morais de quem quer que seja, não vai tomar o santo nome de Deus em
vão, não vai subestimar a inteligência alheia. Estará apenas interessado no seu
conforto, regalias, despreocupações com a sobrevivência, tranqüilidade, porque
o dinheiro proporciona tudo isto, no reconhecimento, nos aplausos, nos olhares
de inveja e despeito, superioridade social e individual, enfim ser distinto
reclama dons e talentos, exige feitos e obras que respondem pela distinção,
merecer distinção é dificílimo, quanto mais num mundo em que imperam grandes
valores, enormes inteligências, pode não haver dois gênios em cada área do
conhecimento, mas é impossível não encontrar um em todas elas, jamais houve na
história um século tão rico em distinções e méritos.
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Creio que até agora esteja andando de modo distinto
no concernente à interpretação e análise das idéias de Erasmo, serão
respeitadas e reconhecidas, serão "leitmotivs" de aplausos, quiça
seja a última palavra sobre as idéias do grande filósofo e sátiro, fiquem na
história, sejam objetos de análises e interpretações por todos os séculos dos
milênios sem fronteiras e cancelas, enfim será necessário compreender como é
que fui abarcar com tanta categoria e propriedade as idéias de Erasmo; estão
mais do que elucidadas, justificadas, coisa que nenhum douto fizera, às vezes a
doutice deixa muito a desejar por baixar num templo e persistir a ficar só
nele, rezando as mesmas orações sem mudar única vírgula de lugar, não por limites,
mas sim por bitolação.
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Ficarei decepcionado, com sentimentos de fracasso,
mexerei os ossos na sepultura, se alguém chegar a provar por alhos e bugalhos
que a minha tão grande façanha foi alcançada num instante de PERS-PIRAÇÃO e não
de inspiração pura, apesar de haver sido iluminado por forças transcendentes,
por Deus. Aí, se estivesse vivo, soltaria as frangas, piolhos, pulgas e
carrapatos, rasgaria os pepinos da serra até à medula, destilaria os ácidos da
química e da fisiologia, pois que isto de haver mais perspiração que inspiração
é blasfêmia, é dizer que Deus não doa méritos, dons e talentos aos homens, quem
aprendeu só técnicas tem mesmo é de pers-pirar muito – perspirar significa que
muito esforço foi feito, além de todas as expectativas e realidades, muito suor
deslizou pelo corpo, nem calor de quarenta e cinco ou sensação de cinquenta
graus provocaria tanto suor. Isto me deixaria entristecido, angustiado.
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Mas para me ver livre desta interpretação dos
doutos, possível só em 8888, penso que Erasmo, dizendo que andar atrás da
fortuna e das distinções mandou outro recado aos homens de todos os séculos, já
passados, ainda presentes, vindouros, por virem. É preciso ser portador de
olhos de lince, ser gênio para decifrar um recado na filosofia, na literatura,
pois que ele se revela ao in-verso da mensagem.
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Num mundo de só desonestidades, corrupções,
canalhices, de apenas tragédias, problemas, frustrações, fracassos, violências,
neuroses e psicoses, decepções, é loucura desejar o contrário, querer a pureza,
sonhar. Estas coisas são piores que ácido sulfúrico para corroerem o espírito
da vida.
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Em primeva instância, quiçá estância, qualquer
desejo ou aspiração no espírito humano surgiu para não ser realizado –
Schopenhauer prova e comprova isto com distinção, propriedade e conhecimento de
causa e efeito. A vida mesma, real e insofismável são problemas, sofrimentos,
dores até a morte, o homem é besta jumentada em nível da contingência,
imanência, correndo ou andando atrás dos contrários, despautérios ou
disparates, é jumento classificado em nível espiritual, transcendente, andando
atrás da fortuna e distinções.
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Para que servem as distinções? Para mostrar os
orgulhos, vaidades da laia e estirpe? Orgulhos e vaidades não vão, nem por
milagre de Mefistófeles, extinguir a natureza humana, acabar vez por todas com
as mazelas, pitis. Para ser admirado, reconhecido pelas obras? Sentir-se
recompensado pelas lutas? Declarar pureza de espírito diante do inimigo que tem
as provas contrárias é verdadeiramente um idílio... Declarar sabedoria frente
ao analfabeto é ser pernóstico de carteirinha. Quem correu atrás da distinção,
não sei a razão, ama de paixão mirar-se no espelho, pois ele solta gargalhadas
diante da imagem que está diante, coisa que os homens não conseguem, sempre
haverá uma fisionomia casmurra diante do distinto, creio que por inveja, ciúme
e despeito. O travesseiro do distinto lambe as suas mágoas, como uma mulher nas
noites de criações, na esperança de esquecer o tempo. O lençol nunca esquece de
protegê-lo das euforias e êxtases por ser apontado pelas ruas da cidade como
homem que alcançou méritos nunca dantes alcançados, recebeu medalhas de honra
ao mérito que ostenta por todos os lugares por onde anda. Bebe cachaça feito
água, fuma que nem torre de indústria, come lambiscando pelos bares e
restaurantes de grife. Faz da cela a sua calçada deserta, a sua noite clara e
solitária. A cela sabe que o distinto está dentro dela injustamente, mas a lei
da sociedade humana exige provas para provar inocência ou sabedoria, para
acusar, e o distinto tem provas para provar a sua distinção.
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A única distinção por que andei atrás foi escrever
com a melancolia que a natureza, para realçar a alegria do século, colocou na
minha alma, o parecer não compreende a vida das letras e as belas e eruditas
linguagens não justificam os espinhos de antanho. Isso quanto aos interesses
jocosos. Pelo que toca aos obscenos, é preciso admitir que, assim como há bocas
recatadas, também as há lúbricas. A alegria tem todas as formas, não se há de
excluir uma, por não ser igual às outras. A monotonia é a morte. A vida está na
variedade.
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Quando tomei conhecimento das palavras de Erasmo,
levantei-me vivo e perspicaz, pois que por longos anos me questionei sobre a
vaidade de escrever com a melancolia, não com a pena dela, pois que não voa
daqui para ali, de lá para acolá; queria ser distinto nas letras, e sabia que
isto não tem sentido e finalidade alguma, estava era sendo imbecil, distinção
não iria saciar a minha fome e sede de sublimidade, imortalidade, eternidade,
mesmo na idade bem avançada das letras e da vida. Mas Erasmo mostrou-me com
eficiência, sabedoria, que não estava sendo imbecil, correndo atrás da distinção
nas letras, estava sim sendo um “louco manso”. Ser reconhecido como “louco” é
elogio dos mais sublimes, quase o mesmo de ser chamado de subversivo, que causa
frenesis, êxtases, alegrias e felicidades inomináveis aos homens de letras.
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Ora, cada um ri com a boca que tem, ninguém ri com
a boca alheia. Mas a prova de que a obscenidade de escrever com a melancolia,
como com a jocosidade, formas de distinção divina e pura, são de origem
legítima e autêntica. Quando a alegria das distinções entra nas repartições
públicas, nas alcovas de todos os lares, é que a tristeza foge inteiramente
deste mundo.
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Se pudesse, mesmo que transgredindo a melancolia da
escrita, dar um conselho a quem anda atrás da fortuna e das distinções,
proporia: “Gloria a Deus nas alturas”, deve permanecer; mas completaria com
outras palavras bem sutis: “e, na terra, paz aos distintos”.
#riodejaneiro, 13 de fevereiro de 2020#
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