#DO FUNDO O EXECRÁVEL SORRISO# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA
Devo confessar que muito me espanta isto de me
referir frequentemente ao silêncio, con-templo-o, vislumbro-o, se há coisas que
não consigo em hipótese alguma esconder, as mágoas, ressentimentos, até me
expondo a estarem à flor da pele, uma sombra constante nos caminhos até então
per-corridos, e é disto que estou com urgência necessitado de não mais me
referir ao que me aborrece sempre.
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Quero voar por terras distantes. Quero sentir a
brisa do alvorecer quiçá sentado numa pedra na margem da estrada, fumando um
cigarro, olhando a distância com indiferença. Um vagabundo. Socapas do
instante-já reverenciam a passagem de ovelhas em direção à colina onde a
pastagem satisfaz seus gostos refinados, solicitam do pastor agilidade,
habilidade com o cajado na subida íngreme, impeçam-lhe de esborrachar no chão,
rolando ininterrupto.
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Se sou eu quem tira a água do fosso, também sou eu
quem a bebe ou dá de beber a alguém sedento. Se sou eu quem está se referindo
com constância ao que lhe aborrece, também sou eu quem ouve falas e
comentários, dizeres e falácias.
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Aprendi vez por todas que se todos concordam com
algo, alimentam de leite e mamadeiras de mingau o que sorrelfam a verdade plena
e absoluta, e sou eu o único que não concorda, melhor para mim próprio, posso estar
quietinho no meu canto seduzido pelas silésias do infinito, imaginando o meu
espírito performando eternidades liquídas.
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Não endosso as opiniões de todos, e isto posso
fazer sentindo-me livre e tranqüilo. Posso, com efeito, recusar o que todos aceitam
com alegria, fazem da coisa o tesouro supremo do estar-no-mundo, sentem-se
alegres e saltitantes, jamais olvidados, jamais danados pelas línguas de trapo.
Não preciso de estrelas dependuradas no peito, não necessito de ornamentos,
enfim compreendi que estilo não é questão de apenas arranjo, não careço de
ostentações, linguagem não é questão de fluxos da alma que prescinde de si
revelada, seja sentida nos interstícios do sensível. Também não peço que
concordem comigo, não sou nada humilde para não afirmar que não estou a
necessitar de concordâncias nem de regências para os verbos proscritos e
prescritos, infinitivos hereges de fé e esperança. São meus, assumo-os no frio
de todas as sepulturas, destas sepulturas de apelos tantos.
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Suspiros e perguntas gemem, afogam-se, consomem-se
e lamentam-se dia e noite. Não me esqueço de ouvir a voluptuosidade que
respiram esses queixumes, estas lamúrias, extasias que inspiram rogos e
suspiros. Continuo recusando, e se duvidar sou capaz de recusar por todo o
sempre, mesmo que seja eu o único a dizer isto e aquilo.
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Ouço as falas e comentários, mas não ponho fogo na
palha, restará em cinza, não faço o vinho transbordar na taça de cristal.
Recusei, recuso. Poderia muito bem haver aceite. Se houvesse aceite, estou tentado
a dizer que nada teria se tornado possível. Afianço que nunca me senti culpado
com uma decisão por mais absurda que tenha sido. Ao redor de tudo o que se diz
e se escuta, a natureza brutal adorna-se com seus encantos adustos. Faço
rebrilhar o cenário ad-verso que re-cobre a natureza e lanço os olhos de todas
as línguas por entre as casas, por cima de todos os tetos, à distância na
poeira das estradas.
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Subindo um dos caminhos no flanco da montanha, o
que vejo surgir em primeiro lugar são os grandes turbilhões de sol, o vento se
alastrar, arejando a cidade desalinhada, dispersa pelos quatro cantos de uma
paisagem montanhosa, e fundindo-se com ela. Tudo isso faz com que se eleve em
direção ao caminho que segue o flanco da encosta um perfume de vida.
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Muitas vezes chega a enfastiar-me o talento, o ver
que também os vulgares e acadêmicos têm talento e de sobra. Tapo as narinas,
atravesso com desalento todo o ontem e o hoje; na verdade, o ontem e o hoje
empestam os vulgares da pena. A vida do cego decorre apoiada em um cajado, a
náusea consome a vida, a angústia alimenta os volos do eterno, o nada sacraliza
as palavras versais do In-finito. Com enorme dificuldade e com cautela o meu
espírito sobe escadas, as esmolas da alegria foram a minha consolação.
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Às vezes, deitado sobre a poltrona, tendo os pés
cruzados em seu braço, digo comigo que a vida é um manancial de alegrias, mas
onde quer que o populacho vá beber, todas as fontes encontram-se desde a
eternidade envenenadas. Volvo as vistas para o fundo do poço; reflete-se do
fundo o execrável sorriso.
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Não sei precisar em mim o que me deixou assim tão
deprimido, angustiado, tudo se me afigura sem sentido, não posso dizer, pensar,
sentir o que estou querendo tanto. Não é medo ou simplesmente evitar um
dissabor maior. Nada temo, sou eu quem o diz, creio que se deva desconfiar de
quem dá atenção ao que estou dizendo, se nem mesmo eu dou atenção a coisa
alguma, sigo o caminho como cumpre fazê-lo. Coitado daquele que se preocupa ou
tem necessidade de descobrir algo de importante, se nada há de tão digno assim
de atenção e observâncias.
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Branda e doce como um amanhecer num bosque, nasce a
inspiração. Invento o que deveria dizer. Re-presento o que haveria de ser. Os
olhos fechados, entregue, digo baixinho palavras nascidas no instante, nunca
antes ouvidas por alguém, ainda tenras da criação, ainda viçosas do orvalho das
utopias. Palavras vindas de antes da linguagem, da fonte, da própria fonte
originária. Sinto-me, no entanto, pleno como se tivesse sorvido um mundo
inteiro.
#riodejaneiro, 24 de fevereiro de 2020@
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