OBSTÁCULO À ESFERA DAS NUVENS GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: CRÔNICA
As perguntas de toda ordem, estilos e modos,
acompanharam-me por todo o sempre, quer trabalhasse a madeira de pinho, de
cedro, de nogueira, de faia ou de carvalho, quer cinzelasse a tecla amarela ou
o ébano negro; ou então observasse os egípcios fazerem libações de vinho e
leite no altar de Dionísio ou os citas sacrificassem pombas a Ísis, ou ainda as
mulheres cipriotas e os mancebos da Cilícia oferecessem vulvas de vitela e
testículos de touro à deusa que alguns chamavam, no mesmo templo, de Vênus,
Ishtar ou Astartéia, permaneceria com as mesmas perguntas, passando a vida à
busca de consolidar alguma que, enfim, contribuiu com as realizações.
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O ouvido, quem sabe possa ser ensinado – embora o
som seja conhecido, o ritmo é para além do que é des-conhecido, - a ouvir a
Verdade perfeita e absoluta, sem a qual tudo se torna, às vezes uma sombra, às
vezes uma escuridão, algo de obscuro –, três águas irromperam-se para cima e se
encontram no topo formando um só jato torrencial d’água – e através da qual tudo
recebe luz, até mesmo abismos que jamais iremos conseguir adentrar-nos.
Exprimir o desejo de glória, de amor, da Verdade, do Reino.
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Talvez agora possa eu vislumbrar o riso de Goethe,
o riso do imortal. Um riso sem motivo, era só luz, claridade. Alegria de
aceitar inteiramente, de sentir que uno o que há de verdadeiro e primitivo em
mim, independente de qualquer das idéias recebidas sobre a beleza, a
espiritualidade. É doce e bom saber que há segredos tecendo uma vida fina e
leve sobre a outra vida, a real. Continuo sempre me inaugurando, abrindo e
fechando círculos de vida, jogando-os de lado, murchos, cheios de passado.
Momentos tão intensos, vermelhos, condensados neles mesmos que não precisam de
passado nem de futuro para existirem. Trazem um conhecimento que não serve como
experiência – um conhecimento direto, mais como sensação do que percepção. A
verdade então descoberta é tão verdade que não posso subsistir senão no seu
seio, no próprio fato de sua presença e de sua espiritualidade.
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À noite, entre os lençóis, um movimento qualquer ou
um pensamento inesperado acorda-me para mim mesmo. Levemente surpreendido
dilato os olhos, percebo meu corpo mergulhado na confortável felicidade.
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Senhor, talvez esteja eu sendo o mais egocêntrico e
egoísta de todos os homens, pois em nenhum instante deste nosso diálogo estou
eu pensando na humanidade, nos homens. Mas acredito, Senhor, que nós os homens
comuns e simples não temos o Dom de penetrar fundo na humanidade, de
descobri-la, de revelá-la em todos os seus conflitos e alegrias, felicidades e
traumas. Temos sim o Dom de penetrarmos fundo em nós mesmos, e assim, quem
sabe, podemos revelar a humanidade.
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A humanidade nasce de nós mesmos, do fundo de nossa
alma, aí sim há o que nos une para sempre. Desculpe-me, Senhor, inda mais sendo
hoje o Dia que vivemos a sua Morte, diante de todo o sofrimento e dor, mas é
sim meu sonho unir-me ao Senhor, estar cada vez mais próximo de sua Graça e
Presença.
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Receber aquela resposta que é a comunicação da
vida, suas últimas palavras, volto a pronunciá-las em voz baixa, e há silêncio
na sala de trabalhos; o sol se põe, fazendo brilhar o ouro das lombadas dos
livros – nada até hoje expressa tão bem a generosidade de fé quanto a oferta
livre da voz das águas, de uma herança recebida, o silêncio das águas, onde as
renúncias diante de necessidades e da liberdade tornam a alegria de ver e de
ouvir em um pequeno toque exterior a mais ou a mais leve vacilação interna
seriam suficientes para arrojar-me no abismo. O que é o Senhor senão a cinza
quente após o fogo haver queimado as achas..
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De onde me é tão familiar a limpidez etérea,
convertida em imagens com a cristalina eternidade a envolver-me, e a fria
alegria, um eterno riso divino, talvez tenha herdado a acrobacia genética que
me faz projetar-me no picadeiro da vida com a fertilidade do artista que
arranca do público os aplausos pela magia musical de minha obra, na fecundidade
de minha linguagem e imagens; sinto ao meu redor rumor de vozes e risos, de
compassos de dança, de resplendor de todos os olhos acesos, cá estou no meu
cantinho, não vou mal.
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Sondando o porvir com olhar de profeta, cedo tenho
de deixar o meu país natal, fugindo do furor de homens cheio de inveja. O
Senhor cochila em paz nas dobras de meu lençol.
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“Tenho uma espécie de imagem de mim mesmo: nunca
cresci, meu rosto e meu corpo envelhecem, arranjo minhas recordações, minhas
experiências, mas por dentro dessas coisas tangíveis continuo assim como que
por nascer. Não me recordo de nenhum rosto, nem do meu rosto. Às vezes, tento
lembrar-me do rosto de minha mãe e não consigo. É claro que sei que era alta,
morena, que tinha olhos azuis, nariz grande, uma boca carnuda e a testa grande.
Mas não consigo por todos os pedaços no lugar, não combinam, não consigo
vê-la”.
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Retornando-me do êxtase – esta capacidade de
penetrar na essência singela da emoção – sou um homem em silêncio perpétuo: o
sentimento de eternidade necessita desfacelar-se em mim. A excentricidade, ao
buscar relacionadas as emoções, estabelecê-las e firmá-las perenemente no
outro, é a dificuldade de crer possa superar... De tão sensível e emotivo sou,
há momentos em que a alma, mergulhada no oceano de efusões, pede um alívio:
precisa recompor-se. A alma de sentir as profundidades eloqüentes do viver
leva-me a sentir as nuanças do olhar, em cujo brilho busco a percepção da
verdade.
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Pleno egoísmo, não, Senhor, estar dizendo de minha
felicidade, paz, alegria, contentamento, quando hoje os homens comemoramos a
Sua Morte por todos os nossos pecados. O Senhor conhece bem o fundo de minha
alma, sabendo de antemão, desde toda a eternidade, existir um coração que já
sofreu grandes turbulências, mas isto não afetou em nada algo que trago em mim,
a consciência de quem sou e represento no mundo, a sinceridade com os
sentimentos e a lealdade com quem amo. Nada conseguiu desvirtuar-me disto.
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Certa vez, algum crítico, de cujo nome não me
lembra neste instante, disse que sou homem capaz de gerar amizade, de tanta
amizade que meu coração se dilata, se multiplica para nos fazer sentir de
dentro a multiplicidade de emoções e sentimentos. Será mesmo?
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Minha senhora às vezes questiona-me sobre isto de
questionar sobre a minha fé, não pode acreditar que tenha eu dúvida dela,
quando os amigos e conhecidos dizem isto a todo momento, os ouvintes e leitores
comentam em seus lares, os viajantes da ressurreição refletem em suas alcovas.
Rides, vós, os homens!... Viajantes da ressurreição refletindo em suas
alcovas!... Uma imagem que criei para dizer que o meu sonho mais importante é
que a terra me seja leve. Quero ter aquele privilégio de morrer bem tranqüilo e
sereno com a minha consciência, ter a certeza de que, se não fiz melhor, é que
não pude mesmo, esgotei todas as minhas capacidades.
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Quando a terra de um homem é leve, este homem
desaprendeu tudo na vida para aprender algo de mais essencial: “A vontade do
verbo amar concilia-se à recordação dos caminhos do campo cujo esplendor e
iluminado som de alhures aproxima-se através do clímax. Talvez com a linha do
sol crocheteie imagens de um renascer de espectros. As palavras, os modos, as
atitudes, a voz dócil e meiga, o corpo são uma saudade plena e absoluta da
vertigem do despertar.
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Compreendo agora o que está sendo, porque rios e
mares estou a navegar. Contudo, se me indagar que rios e mares são estes,
aquela necessidade de entendimento, não serei capaz de esclarecer, deixando-me
realmente perplexo.
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Correspondência anterior e interior: lembranças e
recordações dos acontecimentos. Aprecio mais os tesouros do Calvário.
Compreendo ou me persuado de que maduro estou, enfim, para uma nova forma.
Entendo ou me convenço de que consciente sou, enfim, para assumir um estilo
próprio, singular, mesmo que não diga coisíssima alguma, seja algo
ininteligível. Para além da simples vontade e contemplação estou”.
#riodejaneiro, 27 de fevereiro de 2020@
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