M´INTRIGA O PALÁCIO DE CRISTAL GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA SATÍRICA
Perguntar-me-ia
alguém dos humanos, em primeira instância, até para ser diplomata e
estratégico, o que devo fazer, se me meteu na cachola que não se vive somente
para isto ou aquilo e que, se se vive, é num palácio que é preciso ser
construído? Essa é a minha vontade, isto é meu desejo, construir este palácio.
@@@
Que coisa
mais irritante, irritância que faz todos os pelos do corpo coçarem, como se
estivessem infestados de pulgas e carrapatos, não chega à sarna porque os meus
instintos de hoje não são de sarcasmo e sim de ironia, mas de impaciência e
náusea, comungada àquele meu olhar as coisas de modo indiferente, entaipados os
linces dos preconceitos e discriminações. Em compensação desta irritância sui
generis, lembrou-me aquando Sonia Cupim de
Chamone
estivera em nossa fazenda, dizia não ser ela de lugar algum, nascera na Favela
da Rocinha, Rio de Janeiro, fora expulsa de casa pela família devido ao fato de
ser namoradeira sem escrúpulos e vergonhas, tornou-se cabeleira num salão de
beleza na Capital das Gerais, era uma andarilha, de muita inteligência, de uma
ironia sem limites, não houve quem não abaixasse a cabeça no jantar dos Neves,
Beatriz Escullaxo molhou a calcinha, quando Sonia Cupim Chamone colocara as
mãos na mesa, na cabeceira desta e dissera pomposamente:
@@@
Intriga-me
o místico das poeiras do beco sem saída
A
hipocrisia, farsa, falsidade que os homens pregam
Nos seus
templos ornamentados de silêncio e solidão,
Saber o
que alenta,
O que me
tesa e o que me apaga
Nos
tesões da madrugada,
Intriga-me
e encanta,
Atrai e
ao mesmo tempo estupifidica e surpreende,
Cai-me o
queixo,
A vida
ser "PALÁCIO DE CRISTAL"
@@@
Quem
seria capaz de me arrancar esta vontade, podem tentar anulá-la a partir da
perseguição, preconceito, marginalização, interesses mesquinhos e medíocres,
podem obscurecê-la com máscaras e véus? Nada pode arrancar-me esta vontade
senão quando alguém perspicaz e inteligente tiver a ousadia de modificar os
meus desejos. Pois bem, direi com todos os relinchos legíveis: “modificai-os,
os interesses mesquinhos e medíocres, apresentai-me, senhores, outro fim,
oferecei-me novas utopias e sonhos, novos ideais”, prometo solenemente que irei
relinchar as novas utopias.
@@@
O que
importaria, aqui e agora, que o castelo de cristal seja inadmissível, ininteligível?
Que me importa, pois que ele existe nos meus desejos – construindo ou não
construindo, em verdade -, ou, ainda para ser mais profundo, mergulhar na
semente de mamona, pois que o castelo de cristal existe tanto quanto existem
meus desejos?
@@@
Inda com
as mãos na mesa, à cabeceira, Sonia Cupim de Chamone, continuando o que havia
antes dito no concernente à vida ser "palácio de cristal", dissera
com eloquência, que entendi como uma coça aos orgulhos de toda a família Neves,
fizera a analogia sublime entre "tomar água num canto grego" e o
"palácio de cristal:
@@@
"Embriagada
do intrínseco e interdito
Das
maravilhas do paraíso de cristal,
Ler um
xamã no livro dos segredos,
Sentir os
precípicios do abismo nas lendas e costumes
Dos
Krishnas e Taos, dos Vedas,
Dormir à
beira do Rio das Pulgas, sob o orvalho da madrugada,
Acordar
num sonho universal
Do Ser e
dos Efêmeros...
@@@
Enquanto
espero que me apresentem, ofereçam de coração e espírito, recuso-me a tomar uma
estrebaria por um palácio de cristal. Isto até por bom senso: a estrebaria é
estrebaria, palácio de cristal é palácio de cristal, a menos que esteja
afastado de minhas faculdades mentais, seja insano. Há, verdadeiramente, duas
coisas diferentes: saber e crer que se sabe. A ciência consiste em saber esta
diferença incólume e lídima; em crer que se sabe está a ignorância. Querem que
vos ensine o modo de chegar à ciência verdadeira? Aquilo que se sabe, saber que
se sabe; aquilo que não se sabe, saber que não se sabe; na verdade é este o
saber.
@@@
É sim
possível que o palácio de cristal não seja senão um mito, as leis do ponto e
natureza não o admitam e que eu o tenha inventado, criado, para satisfazer os
desejos de pilhéria e cinismo deslavado, impelido por certos hábitos inconscientes
e irracionais da geração, não creio os tenha trazido de outras.
@@@
Se me
apresentarem meios e estilos de o construir, se me oferecerem as oportunidades
reais e concretas de fazê-lo, agradecerei a todos e oferecerei as patas para o
sacrifício, sentir-me-ei feliz e realizado, construí o castelo de cristal de
meus desejos de um "suntuoso exponencial solitário amor no banco
infinito"
@@@
Penso e
elucubro que os vivos estejam caindo na gargalhada pela pilhéria sem limites,
numa linguagem e estilo clássicos, eruditos. “Ride até mais não podeis.
Ofereço-me a interromper por alguns segundos até que possais continuar a
ouvir-me. Ride tanto quanto vos façais felizes”. Não me sentirei responsável
quando o riso cessar, revelar-se o choro, manifestarem-se a angústia ou
depressão.
@@@
Se me
desnudo diante de vós, apresento-me a vós com estes e aqueles desvios de toda
ordem e qualidade, ofereço-me numa taça de cristal para saborear-me num “à
nossa”, aceitarei todas as pilhérias, admitirei todas as zombarias, recusar-me-ei,
contudo, a declarar-me saciado das fomes milenares, sedes seculares, quando
ainda tenho fome e sede; não me contentarei com uma responsabilidade, com um
zero cada vez mais inclinando para a esquerda, renovando-se indefinidamente,
pela única e exclusivíssima razão de que está conforme as leis da diplomacia,
estratégia, os bons princípios.
@@@
No dia
vinte e um de abril do ano passado, dia consagrado a mim na Família Neves, Dia
do Asno, tinham vindo algumas pessoas das relações amigáveis de Beatriz
Excullaxo, passar o dia em nossa Fazenda, dentre elas Silvia Marina Sem
Origens, que fazia setenta anos, tinha orgulho de ser velha de setenta e oito
anos. A certa altura, entre Agripina Santos e Guido Neves, à beira do
chiqueiro, observando a porca Saluel grávida, como um furacão, e anunciou
Sílvia Marina Sem Origens que acabava de descobrir, lá fora, diante da cozinha,
uma criança abandonada. Toda a gente se precipitou para ver o objeto achado:
uma petizinha de três ou quatro semanas, que gritava dentro de um cesto. Pegou
no cesto e levou-o para a cozinha. Trazia, preso com um alfinete, um bilhete
assim concebido: “Queridos benfeitores: tende piedade da pequena Arínia. Já
está batizada. Pediremos sempre por vós, iDeus ilumine nos caminhos de sua
educação e criação. Os nossos desejos de felicidades neste dia de festa. Alguém
que não conheceis”. Thales Simeão, a quem consagrava grande estima Guido Neves,
desgostou-se: o seu rosto tornou-se carregado e, embora não tivesse filhos,
tirou-a do cesto, de onde se exalava um cheiro azedo, desagradável. Pegou na
criança ao colo e declarou que tomava conta dela.
Sílvia
Marina Sem Origens, conquanto fosse boa pessoa, protestou: no seu entender
impunha-se o hospício. No entanto, tudo se fez conforme o desejo de Thales Simeão.
E assim fora a petizinha chamada por ele e uma negrinha que contrara para
ajudá-lo a criar: "Cristal", um cognome afetivo.
#RIO DE
JANEIRO, 20 DE ABRIL DE 2020, 16:32 p.m.#
Comentários
Postar um comentário