#OS DEDOS SE EMBURGUESAM E O ESPÍRITO SE ACHINCALHA# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA
Não sinto o
medo próprio de meu caráter meigo e reto, ao me encontrar em choque com a
sociedade, pastores e suas ovelhinhas, e em contato com um acontecimento que
transcende das regras ordinárias, nem estou, como ela, pressuroso por me
reintegrar na vida quotidiana. Elucubram, cogitem, perscrutem, conjecturem, mas
a vida quotidiana não concede nenhum sabor de suas circunstâncias e situações,
senão gostos insípidos: perambular, deambular na contramão, nas margens é bem
mais interessante.
Minha
posição atual, de momentânea felicidade, dá-me um prazer selvagem como se
colhesse uma flor de estranha beleza, desabrochada em lugar desolado, ao sabor
do vento. O segredo, enquanto assim possa ser chamado, mantém-me numa espécie
de encanto, numa solidão entre os homens, num afastamento tão completo como o
de um abismo no meio da serra.
O mundo me
parece estranho, mau e hostil. O meu passado, solitário e obscuro. O futuro,
uma tristeza informe que devia modelar em formas sombrias. Transponho o limiar
da porta, trazendo esperança, calor e alegria. O momento amargo transforma-se,
logo, num momento ditoso.
O mundo deve
todo o seu progresso a homens infelizes. Os felizes confinam-se dentro de
moldes antigos, retrógrados. Tenho o pressentimento de que, daqui por diante, a
minha missão será plantar sementes de outras árvores, fazer cercas, e, talvez
mesmo no tempo oportuno, construir uma casa para outra geração, e, numa
palavra, conformar-me às leis e aos costumes tranquilos da sociedade. Meu
equilíbrio será mais poderoso do que qualquer tendência oscilatória da minha
parte.
Nesta hora
tão cheia de medos e dúvidas, opera-se o milagre sem o qual toda vida humana é
um vácuo. A benção, que torna tudo verdadeiro, sagrado e belo, desce sobre mim.
A face
rígida e estranhamente branca recusa-se a desaparecer nesse dissolvente
universal. A luz torna-se cada vez mais desmaiada. É como se outro punhado de
escuridão tivesse sido espalhado pelo ar. Agora, o ambiente não é mais
cinzento, porém negro. Ainda há uma luminosidade demasiada na janela, que,
entretanto, não deverá ser tomada como uma incandescência, clarão ou vislumbre;
aliás, termo algum porque se denomina a luz servirá para o caso, senão essa
percepção duvidosa de que há uma janela.
Frente à
janela, campos lavrados e prados ondulantes; mais longe, as montanhas escuras e
misteriosas, plantadas nas florestas. Além dessas, sombrias, ainda, desenham-se
outras e mais para longe, bem no alto do horizonte, sempre bela e sempre
mutável, sempre a jogar com a luz como o diamante, ergue-se a serrania das
neblinas eternas.
Devo, pois,
constantemente traçar caminhos novos, não importa em que direções. Mas é talvez
por causa disso, precisamente, que tenho por vezes desejo de escapar pela
tangente, precisamente porque estou condenado a traçar um caminho e também
porque, por estúpido que seja eu, adivinho por vezes que toda estrada leva
sempre a alguma parte, e que não é a direção que importa, mas o próprio fato de
que ela me conduz para um lugar qualquer.
Receio a luz
demasiado clara: por isso me resguardo de meu tempo, e do “dia” desse tempo.
Nisto é como uma sombra: mais o sol se põe, maior eu fico.
Quanto a
minha “humildade”, assim como suporto o escuro, suporto também uma certa
dependência, um certo obscurecimento: mais ainda, temo ser incomodado pelo
raio, recuo ante a desproteção de uma árvore só e abandonada, na qual toda
intempérie descarrega seu mau humor.
Começo de
perguntar se esta procura desvairada da pureza, do sublime, da purificação, não
vai dar, em verdade, em alguma brancura sinistra e misteriosa, irrespirável.
São agora as palavras que parecem violar uma proibição. Nivelando esse passado
ao presente num paradigma que me remisse de todos os enganos, erros, de todos
os pecados cometidos. Apagando as desilusões, reparando preconceitos e
injúrias, re-plantando alegrias e plenas realizações.
Descubro a
imagem da sagração e da renúncia. Sim, de certo modo, a arte sempre se serve a
si; ignoro quando servi verdadeiramente uma transcendência, e isto me cobriu de
orgulho e alegria. Propriamente recordo e não conto.
Ainda uma
certa perspectiva de ironia em que a intenção imediata se corrige, em que o
espírito e intuição se erguem desde o próprio sentir ao sentir de mim. De novo
os homens erguem uma harmonia de sentimentos e emoções, coroada de eternidade;
de novo uma vereda sinuosa de águas subterrâneas lhes escapa a segurança. Olho
agora eu a incomodar-me com a desgraça de toda gente. Tenho que chorar. Está
aqui uma crise, sem um motivo concreto em que nele possa escarrar, coisa que se
visse com os olhos, se apalpe. Um demônio incerto surge de fundos obscuros, e,
por todo o escritório, o mistério de uma sombra.
As portas
fechadas. Ergo os olhos diante de mim melancolicamente, às vezes
espiritualista, por vezes louco, nunca perdendo o domínio sobre as impossíveis
grandezas, sempre sonhando altos projetos, e sempre acordando para fins imbecis
e hipócritas. Na verdade, só o vazio pode acolher o múltiplo. Sei bem que não
serei alguém – devo-me tudo, a começar pelo vazio que cavei em mim e ao redor,
como o jogador desafortunado que espalha as cartas sobre a mesa, com as costas
da mão, - em nível do mar, em clima equatorial, os dedos se emburguesam e o
espírito se achincalha.
Ouço o canto
ausente. É feito de silêncio cortado de gritos. Dentro da lareira do silêncio,
em semente ardente: a fumaça do cigarro tem sido de minha esperança.
#RIODEJANEIRO#,
14 DE NOVEMBRO DE 2018)
Comentários
Postar um comentário