O QUE EU ERA OUTRORA JÁ NÃO SE LEMBRA DE QUEM SOU... - Manoel Ferreira
Luzes não são suficientes para iluminar a longa área de mato e capim que
se estende adentro mistério entre árvores, galhos, esquecimentos, de alguém
que, sentado no meio-fio, a noite segue seu caminho, se há outra significação
para o pouco ou demais de olhos que desejam com que gestos ou modos de revelar
o erro abstrato da criação, e o silêncio perpassa momento difuso, profuso,
completo de viver tudo de todos os lados.
Do antiqüíssimo de mim - não seria melhor dizer "Do mais remoto de
mim", sendo, quiçá, o estilo de re-velar o que me perpassa o íntimo,
sentimento de outroras, e claro "remoto" precede o
"antiquíssimo", sinto em mim, o outrora são lembranças, não
nostalgias e melancolias, quero no seio delas deitar, aconchegar, antiquíssimo
é apenas vontade, desejo de sentir - onde têm raiz todas as rosas de maravilha,
todas as orquídeas do esplendor, cujos odores são esperanças que amo, porque as
sei fora de relação com o que há na vida, uma vontade estranha, oculta, e
deliberada de verter lágrimas quentes e fáceis, talvez porque a alma é infinita
e a vida, finita. As infin-itudes, quê esplendor!, fazendo-se continuamente.
A compaixão surge na existência contínua, cíclica, com grandes fontes de
alegria como a misericórdia, o que desejo é que iluminai a todos como tendes
iluminado a mim, e deito tranqüilo, sabendo que vós estais a meu lado a todo
instante.
Esta antiga angústia que trago há milênios no coração, transbordou da
taça em lágrimas, imaginações férteis, desejos de mostrar o íntimo, mesmo com
todas as dificuldades, carências. E, no entanto, na lua que esplende no céu, no
sol que incide sobre o vale, um indício fala no limiar das origens, no
frontispício do in-audito.
Tudo quanto se encontra fora de mim é mais belo, e todos os homens mais
perfeitos do que eu, todas as contingências mais divinas do que eu. E isto é
natural porque sinto demasiado as imperfeições; os outros sempre sugerem
possuir com precisão aquilo que me falta.
É evidente que imaginei, criei, e por que não dizer que inventei todas
essas vossas palavras, bebi num cálice de verbo a oratória sem cor e sabor,
para matar a sede de censura e rejeição, realizar a paranóia que é só minha –
estais em silêncio apenas ouvindo. Isto é também de um homem além das águas.
Olhando-as, contemplando-as, buscando entendê-las, tenho passado anos
consecutivos observando com perspicaz atenção, por uma frincha, a essas vossas
palavras. Sou quem as expressa, sou quem as inventou, pois é apenas isso que se
tem de fazer à beira de um rio olhando a água passar, inventar alguma coisa. à
beira-mar con-templando as gaivotas que sobrevoam. Não é de se espantar,
assustar, não é de causar qualquer admiração que estas palavras hajam sido
decoradas e assumido forma literária.
Quando contemplo, da janela da sala-de-televisão, da rede de balançar,
quando me deito e fico a pensar os caminhos da inspiração de fazer a liberdade
bailar, sapatear, andar, seguir procissão fúnebre levando mais um cadáver para
descansar eternamente de por baixo da terra, o sol matutino rasgar a bruma sobre
a colina distante, iluminando a campina silenciosa no fundo do vale, e vejo o
riacho tranqüilo correndo para mim e serpenteando entre os salgueiros
desfolhados, essa natureza me parece insípida, fria, e inanimada como uma
estampa colorida, cores de todas as tonalidades.
O que eu era outrora já não se lembra de quem sou...
Se um véu cobre a miopia de um homem e suas futuras desgraças, o mesmo
véu esconde dele alívios, e um suspiro que não havia sido temido é encontrado
como um consolo que se não esperava.
Quem, ontem, fui já hoje em mim não vive.
Quando um tempo mais frio e inclemente chegou, quando, sob o peso de
sofrimentos, comecei a fundar numa condição mais penosa, foi sorte para mim que
a mesma pessoa, a cujas migalhas do café tinha acesso, permitiu-me dormir em
uma grande casa desocupada que lhe pertencia. Chamei-a des-ocupada, pois não
havia ali nenhuma mobília, exceto uma mesa e algumas cadeiras. Mas descobri, ao
tomar posse das novas acomodações, que a casa já possuía um habitante, criança
pobre e sem amigos, aparentando dez anos de idade: parecia ter sido atacada
pela fome, e sofrimentos deste tipo fazem as crianças parecerem mais velhas do
que são. Ela mesma me contou que havia dormido e vivido sozinha naquela casa
durante algum tempo antes de minha chegada, e expressou grande satisfação,
alegria, quando descobriu que seria sua companhia nas horas de escuridão.
Manoel Ferreira Neto
(24 de setembro de 2016)
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