DIAMANTES DE NADA E AD-JACÊNCIAS BEM-AVENTURADAS - Manoel Ferreira
Bem-aventurados os oradores de sobremesa, porque no banquete do Juízo
Final discursarão sobre os benefícios e vantagens da culinária de rabadas e
línguas de boi, focinhos e pés de porcos e suã de tatu peba, miúdos de veado;
Bem-aventurados os alcoviteiros das repúblicas e monarquias, porque no
inferno das polêmicas e qüiproquós os atos inconstitucionais serão assinados na
empolação do Habeas Copus, à moda de um copo grande e transparente de Gim,
rodela de limão e gelo, e na euforia dos instintos manifestos e perniciosos,
das mazelas latentes e pitis obtusos;
Bem-aventurados as linguagens de escol e os estilos de exceção, porque
na língua das cláusulas e emendas os juízos serão supremos, as razões serão
nobres, e a justiça ainda que tardia será verdade na “terra do nunca” do
Pequeno Polegar e de Sininho, e do mundo eterno;
Bem-aventurados os Quincas Borba das monarquias e repúblicas, por terem
os privilégios de degustar as culinárias do humanitismo, bananas com leite e
açúcar, batatas doces e cebolas cozidas, regadas a “sangue de boi” em copos
franceses ou simplesmente de plástico, porque não terão dúvidas sobre a vida e
a morte;
Bem-aventurados os Brás Cubas que escreverão suas memórias póstumas no
ardor das lembranças de suas picuinhas e mazelas republicanas, nas lápides
frias e insensíveis do mármore cinza;
Bem-aventurados os diamantinenses que desfrutam os prazeres e delícias
da vida diária com a negritude da escravatura, com o brilho dos diamantes nos
colares e pulseiras de Chica da Silva, com o diamante no anel do presidente, e
não precisam ralar das oito às dezoito para o pão deles de cada dia, a história
garante tudo, até mesmo o esquife de primeiríssima qualidade e todos os gastos
do velório;
Bem-aventurados os curvelanos de aparência, porque os espelhos não terão
de responder com categoria e pertinácia qual a imagem verdadeira a ser badalada
no banquete das eleições de prefeitos e vereadores, no arrasta-pés das
personalidades do ano, nos buffets dos curvelanos ausentes, nos churrascos de
homenagens aos eméritos da jurisdição;
Bem-aventurados os Zés e Manés do poder legislativo por suas
preocupações em projetar leis que dignificam e imortalizam as asnadas dos
valores idôneos e das virtudes divinas, em projetar cláusulas que beneficiam os
pangarés de carroças carcomidas por cupins, em revisar dia a dia as emendas que
classificam as suciedades dos tributos e églogas das ideologias;
Bem-aventurados os que defendem de unhas e dentes a abertura às nuvens
brancas e azuis do esgoto do córrego Santo Antônio, jamais seja canalizado, por
que ela proporcionará o a-núncio do fim até as cinzas, em todo o seu processo
de decomposição, e ninguém mais terá a ousadia ou empáfia de sentir que sua
memória jamais será esquecida;
Bem-aventurados os chifrudos pontiagudos, porque se São Pedro não lhes
abrir a porta do Céu, poderão abri-la a desejos promíscuos e clímaces dos
ossos, gozos da carne, masturbações do sangue nas veias, desfrutando as suas
incapacidades e impotências, e assim figurarem como reminiscentes da lábia picante
da serpente, naquele famoso episódio de Adão e Eva;
Bem-aventurados os gênios dos covis, porque suas letras e suas “faltas
do ser”, em linguagem francesa, “manque-d´-étres”, edificarão os nadas de suas
obtusas idéias e opiniões, com as mazelas e pitis do quotidiano de fracassos e
frustrações, com as sílabas da imbecilidade e os sons da mesquinharia;
Bem-aventurados os lustres de cristal e diamante alumiando os mais belos
colos da cidade, casacas direitas, outras curvas ouvindo os leques que se abrem
e fecham, dragonas e diademas, a orquestra dando sinal para uma valsa;
Bem-aventurada a vida dos princípios por ser a necessidade moral das
nações novas como das nações velhas, serão eles o sustento da verdadeira glória
da administração das espigas que ficam do lado oposto, donde a arrancam outras
mãos, mais ou menos sôfregas, ou até descuidadas de todo;
Bem-aventurados os lacaios e seus congêneres pelo desejo de
restabelecerem a verdade mais seriamente do que outrora, época em que a
diferença entre o trigo e o joio só existia nas páginas do Livro Sagrado, e
assim dando a devida rédea, a alma empina e não os cavalos em que se encontram
montados com todos os apetrechos do cangaceiro;
Bem-aventurada a expulsão dos vendilhões do templo, pois que ficarão
somente os crentes e os puros, os que põem acima dos interesses mesquinhos,
locais e passageiros a vitória indefectível dos princípios;
Bem-aventurado o cão, morto de fome e de fadiga, não pode ver as
estrelas, que já então rutilam, livres das nuvens, porque não ouvirá outras
vozes senão as surdas de seu senhor que palita os dentes, no ínterim das
tragadas de seu cigarro de fumo preto, à soleira de sua casa, con-templando o
crepúsculo;
Bem-aventurado o triste vento, que parece faca, e dá arrepios aos
vagabundos que, sentados no banco da Praça Benedito Valadares, proseando sobre
os caminhos sinuosos das autoridades e seus asseclas, relembram os tempos idos
do Fórum e suas agitações jurídicas;
Bem-aventuradas todas as graças que foram chamadas a postos, e obedeceram,
ainda que murchas. Gestos de ventarola, apertos de lábios, olhos oblíquos,
marchas, contramarchas para mostrar bem a elegância do corpo e a cintura fina,
tudo muito bem empregado.
Bem-aventurado o desejo que se desenvolve como uma tenência a buscar seletivamente
as paixões que aumentam a potência de agir ao encher a aptidão a ser afetada de
relações que se compõem com a proporção que constitui a unidade do indivíduo;
Bem-aventurados os que comparam os olhos de uma jovem adolescente às
estrelas, e as estrelas aos olhos, alfim de contas é coisa que se pode fazer à
vista de todos, debaixo do nariz de qualquer um, em família, na roda dos
amigos, na porta da igreja, nas barbas do juiz ou delegado, e em prosa ou verso
para o público;
Bem-aventurado o espírito de Satanás que faz dar à língua mística do
Cântico um sentido direto e natural: a sua mão esquerda se porá debaixo da
cabeça, e a sua mão direita abraçará a violação de todos os princípios e
movimentos in-versos;
Bem-aventurados os ratos que roubam o pedaço de queijo de cima da mesa e
correm para debaixo do fogão a gás, pois que assim poderão degustar a sua
guloseima com serenidade e êxtases dos deuses, tirar uma pestana depois,
recuperar a fome para outro roubo e outros prazeres;
Bem-aventurado o gato, que jamais leu Kant, e nas curvas rutilantes da
metafísica vaga pelos telhados de generais, diplomatas, senadores, dando-lhes à
vida um aspecto de viagem abstrata, em que as palavras mudam conformes as
ideologias tantas;
Bem-aventurados os que não atinam com os motivos e razões de tantos
risos, tantas gargalhadas e tantos sentimentos hilários, pois que talvez lhes
hajam escapado algum vocábulo que em Curvelo tenha outro sentido, mas o repetem
no fulgor da beleza, para mostrarem importância e erudição, e não descobrem
nada; são todos usados e comuns;
Bem-aventurados os que choram uma lágrima às escondidas, tomam a si
custear as despesas do enterro, e acompanham o defunto ao cemitério, pois a
espada da bainha, assim chama à alma um velho autor, parece não ter gume nem
campanhas, apenas uma ingênua faca de marfim;
Bem-aventurados os partidos políticos que devem ser unidos e
disciplinados, pois que essa disciplina e união não podem ir ao ponto de
rejeitar os benefícios que caem das mãos dos adversários; que devem fechar os
olhos aos desmandos do governo, à postergação das leis, aos excessos da
autoridade, à perversidade e aos sofismas, pois que nunca perderão a certeza e
convicção de que são superiores a todos os demais homens, são entes divinos,
que sempre merecem ser adorados;
Bem-aventurado o desejo de poder que apresenta dois caracteres
simétricos: é proporcional à dominação sofrida e é inversamente proporcional à
potência efetiva, pois que o desejo de dominação manifesta a passividade máxima
que possa ser vislumbrada da aptidão a ser afetado e a potência de agir mais
fracas;
Bem-aventurado o homem que encontra um gênio, que lhe diz que pode ter o
que quiser, mas que a sogra dele receberá o dobro do que pedir; e, pensando por
instantes, pede um milhão de dólares e que seja espancado até ficar meio morto;
Bem-aventurado o Estado que é comparável a um indivíduo real fisicamente
composto, dotado, como todo indivíduo, de um conato e de um pensamento, que, no
entanto, se aparenta a um todo artificial, onde os cidadãos estão únicos “como
por uma alma”;
Bem-aventurados os que enchem bem os copos e bebem de uma vez, brindando
à saúde dos bons e valentes oprimidos, e ao castigo dos opressores;
Bem-aventurado o derradeiro homem que, ao despedir-se do sol frio e
gasto, haverá de ter um relógio de bolsinho Mondaine, correntinha de ouro dezoito
quilates, para saber a hora verdadeira e exata em que morrerá, porque o seu
pensamento, ardiloso e traquinas, saltará pela janela e baterá asas em direção
aos auspícios do Edifício Pioneiro;
Bem-aventurado o Brasil que está cheio, entupigaitado de maus políticos,
vestidos em pele de cordeiro, mas que se revelam verdadeiros lobos quando a
imprensa mostra suas verdadeiras intenções e atos, pois que viveriam à míngua,
ou quem sabe dependendo de ajuda de terceiros para se fazerem na carreira
profissional e política;
Bem-aventurado o médico que cultiva simultaneamente a patologia e a
comédia, mas promete ser melhor Esculápio que Aristófanes;
Bem-aventurado o que rói as unhas e arranca tufos de cabelo à espera
mais que ansiosa por ser convidado pela academia de letras para fazer parte,
ser membro, e mostrar a cara em todos os eventos artísticos sem letras e
garatujas, pois dele será a cadeira de Zeus no Olimpo;
Bem-aventurado os que não comparecem, não mandam representantes, não dão
a mínima satisfação, a nenhum banquete, pois que sobrará comida à vontade para
os famintos e miseráveis, mendigos e prostitutas que já não interessam nem a
Mefistófeles tê-las no inferno;
Bem-aventurado o réu-vereador que se limita a ouvir calado a sentença do
Juiz, olhando à sorrelfa para a chuvinha fina que cai na tarde de crepúsculo
ensimesmado, molhando o asfalto da avenida, cujo aspecto parece mais belo do
quando cometeu o seu crime de embolsar alguns réis dos cofres públicos, estava
um calor de cozinhar os miolos, olhando o asfalto de baixo para cima parecia
tremelicar;
Bem-aventurados os que conseguirem criar outras bem-aventuranças
destituídas de sarcasmo e ironia, cinismo e escarnecimentos, porque já estarão
bem distantes das hipocrisias da modernidade, quase próximos à consumação dos
tempos;
Manoel Ferreira.
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