CALCINHA PRETA DE RENDA - Manoel Ferreira
Bons
dias!
Vereador
Fagundes Norberto, trinta e dois anos, olhos verdes, cabelos lisos, cortados à
moda antiga, amante incondicional das chiques vestes, havia acabado de ser
eleito, sendo o mais votado de todos os candidatos, dizem que a maioria dos
eleitores fora as mulheres, era sim um pedaço de mau caminho. De inteligência
mediana, dava para o gasto, com ela poderia sobreviver neste mundo, nada mais
além disso. Estava esperando a sua eleição para marcar o casamento com Iaiá
Gontijo, uma jovem linda, cabelos louros encaracolados, caindo-lhe ao ombro,
corpinho de violino, olhos azuis, boca pequena, amava o luxo e a luxúria,
exigia presentes do vereador dos bons e dos melhores, e ele com os simples
honorários de advogado de primeira viagem, havia terminado o curso de Direito
fazia três anos - um curso feito nas coxas, em verdade; não possuía em si as
estratégias da ciência, conhecia bem as tramóias do comércio simples, nada de
elevado -, estava ainda se arrumando na profissão, dava os seus jeitos para
satisfazer as vaidades da noiva, vivia pagando prestações na Boutique da
Marcela. O importante é que era amado, venerado, idolatrado, Iaiá Gontijo
tinha-lhe verdadeira paixão, carregava água em peneira para lhe satisfazer as
vontades e desejos.
Com
o salário de vereador, ainda as propinas recebidas destes e daqueles, com uns
trocados dos cofres públicos, iria sim poder não apenas satisfazer as vaidades
da noiva, encher-lhe-ia de todos os presentes os mais lindos, maravilhosos,
pulseiras de ouro, brincos de ouro, roupas compradas em lojas de só grife na
capital, faria dela a mulher mais feliz do mundo. Estava feliz de sua vida,
graduado pela universidade, escritório no centro da cidade, presente de seu
pai, que era fazendeiro na região, cinco fazendas, um sem-número de vacas leiteiras,
de corte, de reprodução, fora a produção de frangos de granja para os
supermercados, e agora vereador dos mais votados, uma noiva que o amava acima
de todas as coisas e até de Deus, era o “deusinho” dela, como era de seu
costume sempre dizer: “Meu deusinho, me dá um beijinho daqueles!”, “Meu
deusinho, você podia me dar de presente um colar de diamantes”. O “deusinho”
estava sempre na frente dos pedidos, acompanhava-lhes de continência e tudo.
Vereador
Fagundes Norberto é daqueles cavalheiros à moda mais que antiga, mais que
démodé, mais que caquética, que gosta de tudo certinho, tudo nos devidos
conformes, tudo no seu devido tempo, tudo de acordo com os figurinos, menu e
moldes. Iaiá Gontijo uma jovem donzela, vinte e três anos, fazia faculdade de
pedagogia, lecionava História na escola estadual, os alunos dizem que ela
decora os livros para lecionar, nada entende da disciplina lecionada por ela,
por quem está mais do que apaixonado e por quem tem aquele todo respeito mais
que absoluto, quase chegando às raias do absoluto absurdo, e com a eleição este
amor ilimitado e incondicional multiplicara ainda mais. Há quem diga, e com
razões incontestes, que ele só conseguiu subir alguns degraus na vida por causa
da namorada, ela o “fabricou”, fabricou porque satisfazia as suas vaidades e
vontades todas.
Três
meses de trabalho na Câmara, poucas preocupações, sonhos e utopias, mas no
crepúsculo de todos os dias estava sempre acompanhado de Iaiá Gontijo num
restaurante-lanchonete no bairro Bela Vista, próximo a um posto de gasolina.
Uísque e vinho eram as bebidas prediletas, churrasco mesmo é de picanha, Iaiá
Gontijo até babava, precisando de um lencinho que trazia dentro da bolsa para
estas ocasiões, tinha de enxugar a baba, só de ver a gordurinha escorrendo, e
quando não é picanha, é porção de filet com batatinha. Conversam sobre os seus
mais íntimos sonhos, como será a vida conjugal deles, a casa em que morariam no
bairro Cobra D´água, a mansãozinha que o pai já lhe dera de presente, e já
residia nela desde o primeiro ano como advogado de pouquíssimas causas, como
será a criação do único filho que desejam ter, as viagens que farão, a
primeira, a de lua-de-mel, será em Brasília, é conhecido de muitos políticos,
serão muito bem recebidos, conhecerão os lugares mais lindos, almoçarão em
restaurantes dos mais chiques, conhecerão outros pratos deliciosos, franceses,
alemães, italianos. Por vezes, comprava
livros de poesias, Olavo Bilac, Cecília Meirelles, e no restaurante-lanchonete
fazia questão de lê-las, não sabia declamar, não tinha o menor jeito, poemas
lindos, leitura péssima, mesmo assim Iaiá Gontijo adorava os poemas. São os
seus assuntos no restaurante-lanchonete da Bela Vista, nada de política,
política é na vida diária, é na Câmara, tudo deve ser tratado no métier próprio
e singular.
Vereador
Fagundes Norberto fora fazer a sua primeira viagem, quatro meses depois de ser
eleito, representando o prefeito que não podia comparecer, tratava-se do
recebimento de uma verba para canalizar todos os esgotos a céu aberto da cidade
e o asfaltamento de seu bairro, um casarão, com jardim e até uma pequena
piscina, numa rua de só poeira e buracos, só saía de casa em seu carro de
vidros escuros, para ir à prefeitura e retornar à casa, não ia a mais lugar
algum, e só recebia em seu gabinete os seus correligionários, algumas pessoas
do povo, assim mesmo a dedos de escolha; vá explicar a atitude de reclusão do
prefeito é que são elas, dizem ser paranóico, tem enormes medos da opinião
pública, de fazerem pouco-caso de sua presença nos eventos, de o vaiarem, não
se chega a um consenso, mesmo depois de oficializar o seu casamento.
Prometera
a Iaiá Gontijo que lhe enviaria um presente, um lindo presente, iria ficar
radiante de tanta felicidade. Apesar de todas as insistências da noiva por
saber que presente era, é de uma curiosidade sem limites e cancelas, não houve
jeito de persuadir Vereador Fagundes Norberto a dizer-lhe, perderia a graça se
o dissesse, era uma surpresa, soubesse esperar a hora, não se esquecesse de que
tudo tem o seu tempo devido. Na rodoviária, derramaram lágrimas pujantes, eram
muito apaixonados um com o outro, uma ausência de apenas três dias era muito
significativa, iria durar séculos de tantas saudades, saudades do crepúsculo do
restaurante-lanchonete do bairro Bela Vista, de seus passeios na Praça
Principal, das sessões de cinema, dos bailes no clube, tantas lembranças
gostosas, tantas recordações maravilhosas. Despediram-se com um beijo daqueles,
verdadeiro chupão, chamando a atenção dos passageiros que esperavam o ônibus.
Meu
Deus! Tanta importância, tanta beleza, tantos princípios, tantas metódicas
coisas, tanto amor no coração e tanto carinho e ternura recebida em troca, e na
hora das redações era aquela negação, não sabia escrever uma linha, tinha a sua
secretária que escrevia tudo para ele, dizem até que o pai pagara uma nota
preta para um professor escrever o seu discurso de posse na presidência de uma
entidade filantrópica, para não passar vergonha, para não ser ridicularizado
pelos destinatários, para o Juiz não lhe mandar estudar a nossa tão amada e
querida “última flor do Lácio”.
Em
Brasília, após o recebimento da verba, que aconteceu no outro dia de sua
chegada à Capital Federal, dirigiu-se a uma loja de departamento. Era chegado o
momento de enviar o presente a Iaiá Gontijo. Não iria poder pedir à funcionária
da loja que escrevesse o cartão, todo bem vestido, terno de mais que grife,
gravata, barba escanhoada, cabelos cortados à moda antiga, um pedaço de mau
caminho, e precisar que alguém lhe escreva até um cartão para anexar ao
presente, era um absurdo. Tinha de ele mesmo fazer isto. Iaiá Gontijo iria
chamar-lhe a atenção, não podia continuar sendo ridículo nas suas redações,
tinha de contratar um professor para ministrar-lhes as lições de aprendizagem
da Língua, não podia continuar dessa forma.
O
presente era um finíssimo par de luvas de pelica para ser usado com um vestido
longo no Baile de Exposição que iria acontecer duas semanas depois de seu
retorno à cidade. Nem podia imaginar o que estaria por acontecer. A balconista
se enganou e colocou na caixa uma calcinha de renda, também uma calcinha muito
cara, muitas mulheres iriam querer receber uma de presente. O vereador Fagundes
Norberto pediu um cartão à balconista, perguntando-lhe se não havia um lugar
onde pudesse escrever a mensagem, era o primeiro presente que dava à noiva
depois da oficialização do casamento, precisava ser muito bem escrito, tinha de
se sentir à vontade, ali no balcão não, as pessoas iriam observar, e nestas
circunstâncias tinha certeza de que não iria conseguir escrever única letra. A
balconista lhe levou até o escritório da loja de departamento, ofereceu-lhe
água, cafezinho, dizendo-lhe que se sentisse à vontade. Podia demorar o quanto
fosse necessário. Demorou hora e meia para escrever as seguintes linhas, não
sei se por estar fazendo muito calor ou se o grande esforço não lhe abrira os
poros, sei que o suor corria no seu rosto.
“Querida
e amada Iaiá Gontijo,
As
saudades aqui são muitas, breve estarei em casa. Saiba que a cada dia que passa
o meu amor é ainda maior.
Estou
mandando este presente para fazer uma surpresa. Aliás, já disse, quando estava
de saída para vir a Brasília receber a verba para a canalização de todos os
esgotos a céu aberto da cidade e para asfaltar o bairro de nosso digníssimo e
excelentíssimo prefeito, que lhe enviaria um presente. Fiquei com peninha de
você devido às suas insistências por saber qual era o presente, e eu não quis
dizer, perderia a graça se dissesse, deixaria de ser surpresa.
Sei
que você não usa, pois nunca a vi usar. Pena não estar aí para ajudá-la a
vestir. Fiquei em dúvida sobre a cor, preferi a preta, que é sempre chique em
qualquer circunstância. Mas a vendedora experimentou e me mostrou que esta é a
mais bonita. Achei meio larga na frente, mas ela me explicou que é para a mão
entrar fácil e os dedos mexerem bem. Você não deve lavar em casa. Depois de
usar, passe talco e vire do avesso para não dar mau cheiro. Espero que goste,
pois este presente vai cobrir algo que vou
beijar em breve”.
Mostrou
à balconista o que escrevera, perguntando-lhe se estava bem redigido, se não
havia uma gafe da língua, não existe coisa mais difícil neste mundo do que a
Língua Portuguesa, era graduado em Direito, vereador, e não sabia escrever
direito. A balconista lera, dizendo-lhe que não se preocupasse, estava bem
escrito, até mais do que imaginava, a noiva iria ficar muito orgulhosa dele, de
sua mensagem, do presente que estava enviando. Agradecera à balconista. Passara
no correio, enviando por CEDEX, iria chegar no outro dia. Aproveitou que estava
à toa, só iria almoçar com o deputado Fabrício Neves às duas horas da tarde,
passaria noutra loja para comprar dois vestidos para a mãe.
Do
mesmo modo procedeu, perguntando à balconista se não havia um lugar mais
tranqüilo para escrever o cartão para a sua querida e amada “maiinha”. Fora
levado para o escritório. Desta vez a balconista não se enganou, trocando os
presentes.
“Maiinha,
querida:
Como
vai o cavalo do meu pai, a besta do meu avô e o burro do meu irmão? Mãe, não
entendo o que mesmo aconteceram com eles. Tô mandando dois vestidos para a
senhora, mãe, foi comprado numa das lojas mais chiques aqui do Distrito
Federal. Um é pra senhora meter em casa e outro, pra meter na rua. Sabe, todos
os meus pássaros morreram, aqueles que estavam no alpendre. Até a minha rola
amanheceu dura na manhã de ontem, antes de minha viagem. E aquele peixe que
pedi à empregada que fosse entregar à senhora anteontem, antes de minha viagem.
A senhora fez como eu mandara dizer: que chupasse a cabeça e desse o rabo ao
meu pai”.
Mostrou
à balconista a mensagem no cartão, fazendo-lhe as mesmas perguntas. A
balconista, lendo, olhava-o de soslaio, as gargalhadas todas mais que contidas,
um homem tão pedaço de mau caminho escrevendo tantos disparates, não era
possível que não tinha senso do que estava escrito, até um perfeito imbecil
iria cair na gargalhada. Mas dizem que os políticos têm senso e inteligência
para a sagrada corrupção, nada mais. Respondeu que sim, estava muito bem
escrito, a mãe iria ficar mais do que lisonjeada.
Vereador
Fagundes Norberto ainda não tinha chegado à esquina da rua, a balconista caíra
numa gargalhada estridente, chamara a atenção de algumas pessoas que passavam à
porta, as colegas de trabalho quiseram saber a razão daquela gargalhada toda,
contou-lhes o bilhete, tinha facilidade para assimilar leituras pequenas,
reproduziu o bilhete como fora escrito, o resto do dia as balconistas não
tinham outra coisa a comentar senão o bilhete do vereador, e rirem, rirem.
No
outro dia, por volta das duas, três horas da tarde, hora de o carteiro passar,
estava saindo para pagar umas prestações na Boutique da Marcela, quando recebeu
o embrulho, uma caixa de tamanho pequeno. Colocou-a dentro da bolsa, e durante
todo o trajeto até à boutique exercitara a imaginação fértil para o presente,
de que se tratava. Pagou a prestação. Encontrou-se com duas amigas, Cleusa e
Viviane, que lhe convidaram para tomar juntas um lanche na lanchonete ao lado
da prefeitura. Iaiá Gontijo contou que havia recebido um presente de Fagundes,
na lanchonete abriria para elas verem, com certeza era um lindo presente.
Sentaram-se
na mesa da calçada. Iaiá Gontijo retirara a caixinha de dentro da bolsa. Em
primeira instância, retirou o cartão que estava afixado no embrulho, ao lado de
uma fitinha cinza, encaracolada. A lanchonete, por ser horário de lanche,
estava cheia, as mesas da calçada todas ocupadas. Abriu o envelope e lera em
voz alta o que estava escrito para as amigas, outras pessoas ouvindo. Era
chegado o momento de abrir a caixinha. O que seria? Dentro da caixa, a calcinha
estava embrulhada, que ela rasgou ansiosa. Quando retirou, era a calcinha. As
amigas caíram na gargalhada, alguns presentes das mesas ao lado não conseguiram
conter a risada. Iaiá Gontijo não teve escolha, saiu correndo da mesa, chorando
de tanta vergonha.
Não
vou contar o que acontecera depois que o vereador Fagundes Norberto chegara à
casa. Só uma coisa posso afiançar: jamais irá esquecer de seus bilhetes, caiu
no domínio público, as funcionárias das lojas que tomavam o lanche da tarde
fizeram questão de comentar com os conhecidos, amigos, íntimos, em pouco tempo
muita gente ficou sabendo. Nas conversas
de esquina, era chamado de “Vereador da calcinha preta de renda”.
Manoel
Ferreira.
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