#A FELICIDADE BROCHA# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: AFORISMO
Não vivo a travessia de nonadas, não vivo o passar
nas pontes partidas, não vivo o pisar nos mata-burros de estradas poeirentas e
trincadas de raios numinosos do sol ardente, não vivo o alvorecer de veredas
perpassando os uni-versos do não-ser... Em verdade, em verdade, nada vivo,
vivencio o ser-da-vida, sendo-em-sendo-do-ser-da-vida sigo o campo de caminhos
sinuosos de curvas e ziguezagues, ora amando apaixonadamente o verbo do
ser-amor, ora negando todos os sentimentos e emoções, ora recusando todas as inspirações
do belo e da verdade, ora rastejando nas sarjetas imundas do quotidiano das
situações e circunstâncias, ora quase mendigando nas tabacarias de todas as
solidões, tabernas, portas de casas, igrejas, botequins, mercearias.
Com ninharia habitar…. faz parte dela… pode é não
viver na íntegra.
E a solidão pede licença, gestos etiquetados, pois
que vai muito além de si mesma o que se mostra, e, se pede licença, é que ali
não está. As sombras se retiram à francesa, vão acompanhar outros que delas
estão necessitando.
Só em face desta alucinante di-vergência entre quem
fui eu, como fui eu, é possível divisar os limites desde onde posso sonhar a
construção do meu reino sobre a terra. E é porque é difícil estabelecer esta
di-vergência, ter a aparição de mim a mim próprio, que os homens podem
construir uma redenção com uma aparência de segurança que os ilude e os
escarnece.
Nada vivo... Ah, quem dera vivesse, a vida se me
contemplasse no espelho das imagens perpétuas!..., se me perscrutasse nas
perspectivas do rosto ou da face. E nas perspectivas e ângulos re-versos às
cavalitas das lusitanas jornadas por mares desconhecidos, inversas às
carioquicéias do crepúsculo à beira-mar, respiro a serenidade do inferno nas
lareiras chamejantes da perpétua morte ou da morte na perpetuidade da vida...
Apreciar de tudo na existência é benéfico? As
realidades nefastas corrigem-nos a habitar? Os factos, benéficos, conserva-nos
viventes?! Assim, as boas e más experiências são elementares na vida…nada é
nada…
Face a estas paisagens irradiantes de luz, a estes
cenários de puro resplendor de verde, em que, como um viajante da redenção e da
ressurreição, caminho ao sol, às vezes à chuva, a vida das coisas nas suas mais
humildes parcelas se me impõe, descubro as palpitações secretas da natureza nas
amendoeiras em flor, nos campos de lírios, nos pomares, nas searas, nas aldeias
de telhas castanhas que se apertam à volta da igreja, nas ruas trepidantes e
coloridas ou no respirar lento. O que o outono me tem prometido é-me confirmado
pelo Inverno e satisfaz o meu desejo; à minha volta tudo brilha e se tinge de
muitas cores, transcende o meu delírio, alucina-me e me possui.
Verbaliza, que realidade, ninharia reside, adota
uma posição valorizante, sintética, que não é unicamente inerte e emocionante,
pois abarca igualmente um recado intelectivo activo. O ser-da-vida,
sendo-em-sendo-do-ser-da-vida perfilha o chão de trilhos tortuosos de dobras ,
ou adorando enamoradamente a eloquência do ser-amor, ora contestando todas as
sensibilidades e agitações, ou declinando todas as númenes do sublime e da
realidade, ora arrastando-se nos escoadouros repugnantes do dia-a-dia das
condições e conjunturas, ou sensivelmente esmolando nas tabacarias de todos os
isolamentos.
Muitas flores são recolhidas prematuramente.
Algumas, mesmo ainda sem rebento. Há sêmenes que jamais desabrocharam e há
aquelas flores que habitam a existência completa, até que pétala por pétala,
pacíficas, experientes, restituem-se ao vendaval. Mas o ser não sabe acertar
por quanto tempo residirá ornamentando de arrebiques e contornos esse Paraíso e
sequer aquelas que foram cultivadas ao nosso redor.
Sou um homem tão estranho que a felicidade no
de-curso, per-curso, trans-curso do tempo acaba por me nausear, angustiar,
sentir-me entediado, mergulhado e refestelado no abismo.
A felicidade brocha.
(**RIO DE JANEIRO**, 29 DE MAIO DE 2017)
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