#O NADA E A COLCHA DE RETALHOS# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: PROSA
Crochetear o
nada! Com que linha – grossa ou fina? Com que cores? Colchetear “retalhos”, com
que résteas de criatividade e invenção? Com que quimeras e ilusões?
Jezabel, meu
amor, está entregue à feitura de sua colcha de retalhos. Que lembranças,
recordações povoam-lhe a mente? Que sentimentos, emoções perpassam-lhe o íntimo
neste instante? Salomão, meu amigo, está sentado à beira do rio, esperando o
peixe fisgar a isca, peixe frito no almoço – quê delícia!
E eu
pensando em crochetear o nada? Fazer o que? Há pouco andava pelo quintal
contemplando os pés disso e daquilo. Olhava para cima, a mangabeira repleta de
mangas verdes, ainda pequenas. Qual a primeira que chuparia? – aquela
satisfação e alegria tão grandes! Houve sementes que os conceberam, deram-lhes
frutos. Que sementes para crochetear o nada? Sementes da inspiração, da
intuição, da percepção? A inspiração ser o nada a criar, o nada inspirar a
inventar qualquer coisa que preencha os vazios que residem nos interstícios do
ser. E que frutos ad-virão dele? Seria até inusitado chupar o nada, sentir-lhe
o sabor, degustar-lhe com aquele prazer jamais existido neste tempo presente e
nos de outrora. Mente vazia é tenda do nada. O nada que crocheteio agora será o
vazio de amanhã, para esta minha fértil imaginação; o vazio que crocheteei
ontem é simplesmente o nada de agora, para esta minha dolorida decepção. E
perambulo pelas horas que os ponteiros do relógio patenteiam, e devaneio pelo
dia inteiro sem o quê para crochetear o nada, interessando o vazio que existe
neles, espaços para re-colher as coisas que por ele passam.
Terminada a
colcha, Jezabel sentir-se-á feliz, contente, a criação custou-lhe tempo
inestimável, houve momentos em que pensara em desistir, não seria capaz de
realizar os seus desejos, vontades, mas insistiu, persistiu, poderá cobrir a
sua cama, os olhos e a sensibilidade dirão que a cama atingiu outro aspecto,
terá noites repletas de sonhos lindos, coberta pela colcha. Não sentirá o frio
da madrugada. E eu, coitado de mim, se conseguir crochetear o nada, como vou
mostrá-lo, alguém dizer que é um objeto esplendoroso, há arte e criatividade no
nada, merece perpetuar-se, nos tempos vindouros será luz de alguma ribalta
esquecida. O nada crocheteado por mim não me legará os sonhos indescritíveis de
tanta beleza, nem cobrirá o frio.
Quem pode
garantir o segredo deste crochê do nada não seja simplesmente colocar-me dentro
dele, comungar-me nele, nada e eu conciliados. Terminado, qual a imagem se
esplenderá a todos os horizontes e universos? O eu nada, o nada eu? Quem o
vislumbrar fará aquele movimento do dedo indicador do lado da fronte girando
para dizer que isto é a doidivania pura e simples. Mas quem o louco? Eu que
crocheteei o nada ou a pessoa que vislumbra? Ouço-lhe dizer com a sorriso
desenxabido nos lábios: “Por que não experimentou simplesmente nada fazer,
esquecer a idéia de crochetear o nada, levar o tempo na flauta, arrumar o leito
na tenda do nada e esvaziar a mente e dormir o sono destituído de qualquer
sonho? Teria sido mais proveitoso. Só mesmo eu para este despautério sem
limites” Retrucar – como?
Jezabel e
Salomão estão comendo o peixe que este pescou. Jezabel pensa na continuidade de
sua colcha de retalhos, que retalho próximo será o adequado para a harmonia das
cores, o saco está cheio deles. Enfiará a mão nele e tirará algum. O peixe foi
pescado, a colcha de retalho está quase pronta, e eu sem qualquer condição de
crochetear o nada. Estou simplesmente comendo a impossibilidade que a falta do
que fazer criou.
Por mim
sinto um pouco de medo, medo da tarde passar sem o que fazer, o despautério do
crocheteio permanecer na mente, as estrelas no céu aparecerem, a lua brilhar, e
eu sem nada ter feito durante o dia. Jezabel terminar sua colcha, pensar em
outra para criar, talvez para cobrir a mesa da sala de estar. Salomão semear
sementes no canteiro do jardim, semente de papoula, de rosa, de lírio, de maçã,
de limão, pitanga no quintal. Todos os dias assim que levantar regar com água
da cisterna, observar a vida deles prosseguindo, breve haverá flores, breve
haverá frutas.Depois ir ao rio pescar, afastar todas as idéias, pensamentos,
esvaziar a mente.
E dizer que
esta idéia nasceu por Jezabel haver dito a Salomão não poder entender como ele
pode pescar tantos peixes, ela poderia ficar a eternidade sentada à beira do
rio, segurando o anzol e nada pescar. E ele dizer que nem por milagre ou dádiva
seria capaz de tecer colcha de retalho.
#RIODEJANEIRO#,
20 DE OUTUBRO DE 2018)
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