#AFORISMO 634/TRESANDADA DESOLADA - II PARTE# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: AFORISMO
Rapunzel, na sacada de seu quarto, penteia os cabelos, imaginando um
piquenique à beira da lagoa, olhando o pastor con-duzir as ovelhas, pastoreio
tão tranquilo, singelo, as ovelhas são mui dóceis, a vida própria se o pastor
necessita dela. Sua criada olha a imagem no espelho, de um lado o rosto de pele
lisa, brilho no olho, do outro, uma caveira. Na procissão de Santo Antônio,
caipiras, madames, divorciadas e solteironas, de vela na mão, recitam orações,
rogando ao santo esperança e fé na vida. Na procissão do último dia da novena
de São Geraldo, a cidade entupigaitadas de ônibus do país inteiro, fila
gigantesca para rezar uma Ave-Maria e Pai e Nosso, no buffet, comes e bebes à
revelia, entupigaitado.
O poeta, tomando cerveja no botequim, mãos amparando o queixo, cigarro
pela metade no canto da boca, observa o vira-lata fuçando o saco de lixo; na
mesa ao lado, jovem casal de namorados em silêncio olha o movimento de carros
na avenida. Mendigo sentado no meio-fio da calçada tagarela consigo sobre a
morte e a fome.
Renan Pintor, encostado ao parapeito da janela, esperando o cafezinho da
manhã ficar pronto, observa a esposa varrendo as flores do ipê roxo na calçada,
calada, saudosa da filha que morrera jovem, vítima de leucemia. Menino de pasta
escolar na mão, cabisbaixo, canta Requiém para Matraga, vai aprender novas
lições no grupo escolar, semblante circunspecto, olhos faiscantes e inquietos,
querem observar tudo, nem ele próprio sabe a razão disto, há inúmeras, o templo
revelará com os minímos detalhes. O pároco da igrejinha cumpre o doloroso dever
de a-nunciar o falecimento de dona Turka, a vendedora ambulante de salgadinhos,
o enterro será às duas horas da tarde.
Glória Sofia folheia partituras de música, sentada ao piano, perdida em
seus pensamentos, melancolia, nostálgica, a chuvinha fina caindo. A empregada,
na cozinha, lava as vasilhas do almoço, pensando no marido que não mais a
procura, talvez tenha se deslumbrado por outra mulher. Glória Sofia passa os
dedos no teclado do piano nervosamente, o som ressoa na casa inteira, o gatinho
se esconde debaixo do sofá.
O advogado, frente ao juiz, defendendo uma causa de litígio matrimonial,
silencia-se, fica olhando a cruz suspensa na parede, olhos esbugalhados,
respiração comedida, o juiz suspende o julgamento, o advogado é acompanhado de
dois policiais segurando-lhe os braços, todos saem sussurrando, murmurando. Na
radiopatrulha, o advogado é levado ao hospital, surto psicótico a avaliação do
médico de plantão.
Estudante universitário às voltas com um trabalho em Psicologia sobre a
des-personalização sente-se cansado, larga tudo sobre a escrivaninha, sai de
casa para encontrar os amigos na boate, mas fica andando pelas ruas sem rumo,
apagando e acendendo cigarros compulsivamente. Por que a inconsciência? Por que
Freud explica tudo e o tudo nada explica? O estudante se senta no banquinho da
praça pública, observa indiferente o coreto onde os mendigos dormem.
O corcunda da praça do Santuário-Basílica, sentado no chão, recostado no
tronco de uma árvore, toma cachaça no gargalo da garrafa. A mãe, introspectiva,
circunspecta, empurra o carrinho de seu bebê. Senhor, sentado no banco, olha o
domus da igreja, perdido nos seus sentimentos.
Os atores, no palco do teatro, sem qualquer animação para o ensaio da
peça, estão deitados, em silêncio, todos com cara de quem enterrou um diretor
muito querido.
Brasílio Mendes, escritor, sentado em sua escrivaninha, está muito
nervoso, ansioso, não lhe surge qualquer inspiração, ao menos uma palavra,
vazio, completamente vazio. Ele que não larga a pena, escreve sob iluminação, a
pena desliza rápido nas linhas da página. O seu cachorro de estimação dorme ao
lado da estante de livros, como diz à esposa: "Gosta de mostrar as coisas.
Só dorme de barriga para cima, as patas traseiras abertas, as dianteiras
descidas." Levanta de sua cadeira, abre a janela, re-costa-se ao
parapeito, olha, à distância, a neblina cobre a montanha.
Chapeuzinho Vermelho, sentada na cama, ao lado de sua vovó, tece
crochet, o lobo, mal deitado ao lado da cisterna. Manhã pacata na choupana. No
Sítio do Pica-Pau Amarelo, o Conde de Sabugoza, deitado na rede, cochila, a
Divina Comédia sobre o banquinho. A vovó sentada na cadeira ao lado do fogão de
lenha olha distante as panelas no fogo.
Zeus, no seu trono, ri a bandeiras soltas, olhando para a terra, vendo a
desolação dos habitantes de Tresandada.
(**RIO DE JANEIRO**, 14 DE MARÇO DE 2018)
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