#AFORISMO 664/AQUI ESTOU COM TODO O TEMPO DO MUNDO# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: AFORISMO
Não se preocupe... Não há qualquer pressa... Aqui estou com todo o tempo
do mundo.
Que me conste, ninguém inda relatou o seu próprio delírio, quem saberá
as razões e des-razões?; se me não faltam engenho e arte, faço-o eu, e a
ciência irá com efeito tecer-me todos os tributos, entupigaitar-me de todas as
glórias, empanzinar-me de sucessos e famas, insuflar-me de comiserações as mais
ad-versas. Se há alguém a quem isto não diz qualquer respeito, enoja-lhe tais
relatos, cumpre-lhe não ler única palavra. Não seria interessante raspar as
palavras com a retina dos olhos para fugir às fantasias e quimeras da
existência?
Passagem... Travessia... Equívocos: eis o que me são os sons, os
perfumes, os sabores. Quando me passam velozmente pelas narinas, como lebres
assustadas, rebanhos alucinados e surpresos, e não lhes presto devidas
atenções, poder-se-ia acreditar são muito naturais e tranquilizadores,
poder-se-ia acreditar haver no mundo um verdadeiro azul, um verdadeiro
vermelho, um verdadeiro odor de amêndoa ou de violeta, uma virtude fotografada,
uma dignidade cinematografada, uma verdade literalizada ou litterisada. Tão
logo os retenho por instante, este sentimento de conforto e segurança é
substituído por profundo mal-estar: as cores, os sabores, os odores nunca são
verdadeiros, nunca são simplesmente eles mesmos.
No horizonte além do "sou" de mim, dispersos, esvoaçam-se,
desnorteados, sentimentos, emoções sem nexos, perguntas sem respostas,
respostas sem perguntas, olhos no espaço, ensimesmados, sem brilho algum, névoa
cobre-lhes, sensações disparatadas, a respiração lenta e comedida, maresias
enovela-lhes, tantos desejos e vontades, tantas utopias e fantasias, o coração
pulsa as levezas do tempo e ventos o que fora de mim ontem, o que ontem fora de
mim, pretérito sem verbo, verbos, sem pessoas que os conjugue, do singular ou
do plural.
Não se preocupe... Não há qualquer pressa... Aqui estou com todo o tempo
do mundo.
Pontear de versos o nada que re-colhe e a-colhe as dimensões sensíveis,
contingenciais e intelectuais da criação, tornando-as objetos de re-flexão e
busca de outros horizontes, desejando o In-finito. Pontear de nada os verbos da
inspiração que, com sua dimensão de criatividade, concebe a consciência e a
arte da con-ting-ência, a liberdade e a criatividade, engendrada no quotidiano
das contradições e dialéticas, efêmero, querência do eterno, ESTAR-NO-MUNDO.
Nada há que algeme, acorrente.
Debruçado à janela, con-templo a distância, esgarçaram-se os nós das
certezas, desbotaram-se os versos dos sonhos que revelavam a sensibilidade e a
inspiração, esgarçou-se o aqui onde o tempo gira a roda-viva, onde o ser
des-vela o espírito eterno, a busca na contingência da vida é sempre o verbo
eterno, puíram as falácias eruditas que davam um toque de admiração, seduziam a
sensibilidade. Critico severo de si mesmo, à busca da imperfeição perfeita,
partindo do in-verso para atingir o verso verdadeiro.
Por quanto? Qualquer virtude ou valor trará o conhecimento do tempo
despendido que esperara por rasgar os verbos dos delírios... Dizê-lo, não
dizê-lo, nada irá mudar os idílios, água mole em pedra dura tanto bate até que
fura, que mesmice, repeti noutras instâncias o que tanto vivenciaram. A
resposta será inédita, de mim não esperavam.
Não se preocupe... Não há qualquer pressa... Aqui estou com todo o tempo
do mundo.
Há um homem sentado no meio-fio da casa de frente, cotovelos sobre os
joelhos, mãos amparando o queixo. Talvez um boêmio retornando a casa, após a
farra da madrugada. Talvez um andarilho, mas as vestes não são de um. Quem é
não o sei. Nunca o vi. Levanta-se. Segue o seu caminho. Perfeito estranho.
Seja por que caminhos trilhar até o(ao) seu lar, alguma coisa dói, faz
sofrer, angústias, tristezas, fracassos, o pulsar do coração comedido, e isto
por quanto tempo, ninguém o sabe. Aos vencidos, as bananas bem descascadas, sem
qualquer fiapo da casca.
Passava na rua ontem à tarde, ombreando-me com uma irmã de caridade,
havia muito não nos encontrávamos, perguntei-lhe se estava bem, respondeu-me
que sim, perguntei-lhe sobre a nossa amiga em comum, hoje, residente em Lisboa,
Ernanda Alvarenga estava bem. Perguntei-me se ela passaria naquela calçada
àquela hora, se eu também não estivesse passando, teríamos de nos ombrear, mas
por quê? - enquanto trocávamos aqueles poucos dedos de prosa. Asas pretéritas
de acasos - não existem, há verdades a serem re-colhidas e a-colhidas nos
acontecimentos, nas coisas que o senso comum denomina "acaso" -
flanando suaves no espaço. Haveria de partir também daquele lugar, seivar-me do
ar de todos lugares do mundo, patentear vez por todas o homem em sua plena e
vivaz consciência de sua cidadania do mundo.
Despedimo-nos. Indo embora para casa, lembrava-me Ernanda, nossas longas
conversas, nossas desavenças intelectuais às vezes, mas relevávamos, no mesmo
instante o sorriso, a alegria de nossos encontros. Éritos do passado. Diria ela
mesma, se conversássemos à respeito: "Hoje são as éresis à busca das
iríadas". Achava essa linguagem dela tão peculiar, tão ela mesma, quando
de alguma nostalgia, melancolia ou mesmo a saudade. Os portugueses tem um
estilo sensível e emocional de se revelarem, pertencem-lhes as características,
divinas epopéias e paulicéias do sentimento da efêmero ao encontro da
eternidade da consciência estética. Certa vez, perguntei-lhe o que significa
isto de "Hoje são as éresis à busca das iríadas", respondeu-me tão
simplesmente, e era mesmo o que pensava e sentia: "Criemos hoje, pensando
no amanhã. Criatividade..."
O que isto tem em comum? Em que entrelaçam as "mãos"?
A história se repete, mas não com os mesmos fatos. Continuo absurdo,
continuo imperfeito, percorri tantas ruas, tantas avenidas, comi o pão que o
diabo amassou com o rabo, lambi as côdeas do pão agarradas nos pelos do rabo
dia-bólico, respostas sem perguntas, perguntas sem respostas, experiências,
vivências. Canta o galo nalgum galinheiro, seria que alguma galinha arrepiasse
as penas de raiva por ser acordada antes da primeira luz do dia? As coisas
mudaram.
Penso e sinto mesmo
As cintilâncias das estrelas
Luminarão as escuridões das
Grutas de estalactites?,
Penso e sinto mesmo
Que o brilho da lua
Lumiará as sombras
Nos proscênios e picadeiros?,
Penso e sinto mesmo
Que do jeito que as coisas vão
A crucifixão por parte de todos
Será inevitável,
Que irão cercear a liberdade
De cuidar da minha ec-sistência?
Não se preocupe... Não há qualquer pressa... Aqui estou com todo o tempo
do mundo.
Acendo um cigarro, dou a primeira tragada, con-templo a fumaça
esvaecendo-se no ar. Ponho os pés cruzados sobre a mesa de trabalho,
re-costo-me à cadeira giratória, olho furtivamente as coisas, objetos, trago a
fumaça, alguns segundos após expilo-a. Esplendorosa cena cinematográfica
bergmaniana... Angústia, tristeza, medo, dúvidas, melancolia, nostalgia,
desespero no semblante, na fisionomia, nas pupilas, no corpo, na alma, a dor
elevada ao último nível. Ingmar Bergman é divino!
Imperfeito absurdo... E eu que pensei na travessia de tantas pontes
partidas chegaria o instante em que me espreguiçaria solto e leve numa rede no
alpendre de minha residência. Re-festelo-me re-costado à cadeira giratória, a
mente nos delírios dos pretéritos, o que era de mim, o que me fora, ingênuo e
tolo.
Certezas, seguranças, bem-estar senti-os presentes, esbocei longos e
alvissareiros sorrisos, esvaecem-se hoje.
A metáfora da vida é a verdade do sentimento da voz.
Não pensei a voz se elevasse no silêncio, con-templá-la-ia,
auscultá-la-ia, des-cobriria o verbo da verdade, des-vendaria os tempos do
verbo de ventos e contra-tempos, no sonho de saber quem sou. A voz que me
habita desde o instante em que abri os olhos no mundo agora é a verdade de mim.
Estou na música. Na cítara dos silêncios toco as cordas da solidão, crio ao
ritmo do efêmero e da verdade o verso-re-verso da plen-itude, das vozes crio
ritmos e melodias ad-versos na ad-versidades dos sentires. Nos espelhos rolam
globos de fogo; anéis de fumaça os cercam e giram, {en}-cobrindo e
[des]-cobrindo o sorriso duro da luz.
Foi sobretudo isso o que mudou: meus gestos. Por que o vazio dos
sentimentos, por que o vazio do ser das metáforas, por que o vazio dos versos e
estrofes do soneto das sendas da alma à busca dos caminhos de luz nas trevas,
por que o vazio nas bordas do lince do olhar que con-templa o múltiplo no
espelho convexo de miríades côncavas do não-ser sed-uzindo a borboleta que voa
livre sobre as flores amarelas do ipê?
A voz revela sendas, anuncia veredas. O que me sou sentido algum tem, as
metáforas dos versos e estrofes de minha língua que se vai movimentando no
espaço da boca, pro-nunciava a etern-itude etern-itária do ser enovelando-se
com o eidos do perene volatizou-se.
Quem do sou de mim efemerizar-se-á, o eu de minhas éresis dos sonhos, e
o que a-nunciarão as esperanças? E por que não dizer, neste instante em que
tomo uma taça de vinho, inda que sentado na cadeira giratória, em posição
normal, corpo ereto, o eu das éresis dos sonhos a ser efemerizado é a raiz da
existência estar por sempre comungada a um lugar, sou um cidadão do mundo, e
por tantos sítios piso os passos, sigo re-colhendo e a-colhendo a erudição das
utopias, renovando-a, à frente outras cores e vozes...
Então,
É sábado...
Alguém observa-me de
Chapéu branco, capote preto,
Atravessando ruas e avenidas,
Observo-o rindo, sorrindo, feliz
Por vislumbrar as cores do arco-íris,
Seguimos juntos, à distancia,
O exílio e o refúgio...
Não se preocupe... não há qualquer pressa... Aqui estou com todo o tempo
do mundo.
(**RIO DE JANEIRO**, 26 DE MARÇO DE 2018)
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