#AFORISMO 487/EXCONJUREI DEUS E MEFISTÓFELES# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: AFORISMO
De tempos em tempos, tenho de acreditar que sei porque existo - na
gíria, dizem "recauchutar os pneus", odeio gírias e ditados
populares, conheço um povo que não precisa de palavras, servem deles, dos
adágios, dos aforismos, expressões idiomáticas, muitíssimo conhecido como o
povo do "Devagar é que se chega lá..."
Se me é assim tão difícil saber que existo - há quem peça ao outro um
beliscão, um soco bem dado nas fuças para saberem que existem, métodos
ridículos e agressivos demais -, sirvo-me do talento e dom gratuitos para
desejar esta sabedoria, para estabelecer um saber, para inventar um
conhecimento, e sigo a longa estrada de onde a curva re-constitui ventos, de
onde os sibilos do abismo aderem-se ao vento e se esplendem na terra, mesmo que
me conscientize de que a sabedoria desejada e sonhada não é ainda aquela que a
minha espécie acredita não poder germinar sem uma confiança periódica na vida.
Os estabelecimentos e invenções, assim acreditam os de minha espécie, não são
ainda a fé na razão de viver.
Se a vida não me reservara nenhuma felicidade, quanta vez assim o
pensei, quanta vez assim o senti, lamentei, chorei, dei pitis, elevei as
mazelas além dos limites, penei, exconjurei Deus e Mefistófeles, mas algo de
mais profundo gritava e murmurava no intimo, dizendo que se não me reservara a
vida felicidade alguma, deveria, então, criar e re-criar os incomensuráveis
momentos dela, acreditando que são eles que criam a felicidade, pelo menos
assemelham-se muito à felicidade, sobretudo pela intangível e etérea qualidade
que desaparece a um exame mais minucioso. Diziam-me as muitas vozes que a
gozasse enquanto pudesse, não fizesse perguntas, não murmurasse palavras de
não, não ficasse sorumbático, sobretudo não ficasse pelos cantos, recantos
ruminando e lamuriando por respostas, mas contribuísse com o que fosse possível
para me sentir feliz.
Com aquele aspecto infantil, melancólico, embora às vezes jovial e
parcialmente inteligente, aparecia pela fresta da cortina da janela, observando
a monotonia das ocorrências quotidianas com um interesse inconseqüente e
virando-me a cada palpitação do meu coração para o quarto solitário de todo.
Da janela, ouvia o silvo estridente da locomotiva e, se me inclinasse um
pouco, veria de relance os carros brilhando rapidamente no final da rua,
esperando-a passar. Minha emoção era sempre nova e parecia afetar-me tão
desagradavelmente e com tanta surpresa na milésima como na primeira vez. Assim
carinhosa e sarcásticamente, digo que a Maria ficara nos pretéritos da infância,
mas a Fumaça estiver per siempre ao meu lado, companheira inseparável. Nada
revela tanta decadência quanto esta perda de lidar com os homens, com as
pessoas, se con-viver com alguém é tão só con-sentir-lhe ser quem é, inda mais
simples con-viver com quem não é, a questão da con-vivência com o outro são o
nada das palavras e as nonadas do reconhecimento e admiração, e de acompanhar o
momento atual.
Só podia ser uma animação transitória a passagem da locomotiva à porta
de minha residência, pois, se o poder desta afetação perecesse, de pouco
valeria a imortalidade. Por que aquela musiqueta da Maria Fumaça, a que todos
conhecem e ouvem nalguns átimos de segundos de suas memórias, "... café
com pão, manteiga não...", que eu cantava "De an temão às revezes, o
absoluto não" pensava ser a vida contínua para mim, quiçá por imaginar que
a Maria Fumaça continuaria sua viagem até o fim dos trilhos...?
Precisava do silvo estridente da locomotiva, de um mergulho nos sons de
ventos reconstituídos pelas curvas por onde ela passava e seguia o seu
itinerário, onde ficasse imerso por algum tempo, para depois voltar à vida
vigoroso, reintegrado no mundo e dono de mim mesmo.
Reconhecia no fato de ficar à janela de meu quarto, enquanto passava a
locomotiva, a proteção divina para comigo, pobre criança abandonada, que devia
ser perdoada por me considerar um deslocado, esquecido e deixado ao sabor de
encarniçado limite.
Há sempre uma enorme confusão quando o espírito foge do momento
presente, seja para o passado, seja para o mais longínquo futuro, tornando-se o
corpo guia de si próprio. Ou para aqueles ideais e utopias que não são de suas
índoles, "pedigrees", de suas alçadas, per siempre escravos da
mentira deslavada.
Confusão maior deveria ser a minha cujos deveres atuais estão
compreendidos em tão minuciosos detalhes. A vida e a realidade de minhas
emoções tornam todas as circunstâncias imateriais como fantasma de um cochilo
semiconsciente.
De qualquer modo, acho a imensidade suficientemente grande e a
eternidade efetivamente longa para todos os homens, para toda a raça humana,
para toda a humanidade, de todas as laias, estirpes. Tento entabular um
itinerário propício para as descobertas essenciais, impelido pelo bondoso
impulso de tornar as horas mais agradáveis que as anteriores e as que ainda
sobrevêm os sentimentos mais sublimes, por vezes angustiantes.
A presença da vida – sonhei que sentira de todo a presença da vida em
mim, tão forte e refulgente esta presença que me olhei de cima a baixo
procurando-me, não me lembra se encontrei esta vida no que olhava em mim, o
corpo – é tão agradável como um brilho de sol caindo sobre o chão através da
sombra de folhas balouçantes, ou como o revérbero da luz da lareira, dançando
na parede, enquanto a tarde se transforma em noite.
Aquando escrevia sobre o sonho de haver sentido de todo a presença da
vida em mim, sonho este acontecido esta noite, lembrava-me de outro sonho
quando a uma certa distância observei uma mulher que vinha em direção contrária
à minha, com um vestido longo, olhos azuis muito grandes, e, ao passar por mim,
antes de ombrear-se comigo, disse-me “existência”.
Em tom jocoso, respondi que sim, “Existência”, se não o fosse, com
certeza a pegaria. Passou por mim, dizendo “Existência”. Após quase dois meses,
sonho que sinto de todo a presença da vida em mim, senti uma sensação por
demais estranha, por demais esquisita. À mesa de café, ria a bandeiras soltas,
lembrava-me de um médico, Dr. Pimentinha, não por seu sobrenome era Pimenta,
por todos para ele sofrerem de um doença psíquica, para ele, era eu
esquizofrênico. Inteligência, sensibilidade careciam a todos, não podia a vida
das esquisitices pulsava em mim, fazia-o com pujança, con-tundência.
Dia claro, luminoso, de atmosfera santificada, em que o céu parece
difundir-se sobre a terra, num solene sorriso. Hoje, se fosse suficientemente
puro, sentiria em mim, em qualquer lugar que estivesse, o culto natural da
terra.
(**RIO DE JANEIRO**, 19 DE DEZEMBRO DE 2017)
Comentários
Postar um comentário