#DIALÉCTICA DO ISOLAMENTO E LIBERDADE EM Ana Júlia Machado E FERNANDO PESSOA# - GRAÇA FONTIS: FOTO DE CAPA/ Manoel Ferreira Neto: ENSAIO
Ora, a liberdade concede-nos todas as possibilidades, todas as chances,
todas as portas e janelas abertas – a de viver só, a de viver em rebanho e,
mesmo, a de não viver. É a liberdade que nos garante a possibilidade de
vivermos como quisermos, de fazermos o que entendermos, de revelarmos o que
pensamos e sentimos, o de criticarmos o com que não con-sentimos, para não nos
vermos na situação, exasperante, descrita por Nuno Júdice: «”Quem / és?”,
perguntou à sua imagem; e não se espantou / com o silêncio que lhe respondeu…»
Na frase escrita na parede, Fernando Pessoa afirma que quem não consegue
viver só, nasceu escravo, e, no livro, acrescenta a esta ideia a de que «A
morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem». Percebo,
naturalmente, a mensagem, mas, à partida, não concordo com ela. Até porque o
Homem não nasceu para viver sozinho, nasceu para viver com os demais e é com
eles que realiza a sua verdadeira essência, o seu ser social, a verdadeira face
é o outro. Como afirma Sophia de Mello Breyner Andresen: «O meu interior é uma
atenção voltada para fora». Todos nós necessitamos do exterior, dos outros,
para viver.
Sozinho qualquer um de nós de pouco vale. É na interação com os demais
que conseguimos estabelecer relações, em pequenos ou grandes grupos, numa
sociedade onde se cria cultura, riqueza, onde se produzem alimentos, onde se
definem leis, onde se estruturam as várias esferas da sociedade em que o Homem
– ser social por natureza – vive. Porque, no fundo, servindo-me das palavras de
Jorge de Sena: «Nada que fui, de mim não fica nada». Só daquilo que
coletivamente conseguimos…
É claro que há momentos em que cada um de nós precisa de estar só, em
que, na sua solidão, reflete sobre o que é e o que quer ser, em que procura
afastar-se de todos para estar consigo mesmo. E se cada um de nós não consegue
enfrentar o isolamento ou a solidão, não é porque nasceu escravo, é porque
nasceu vocacionado para a vida com os outros.
Deveríamos questionar o que acontece com o "ser só",
"estar só"? A escritora e poetisa Ana Júlia Machado, em ISOLAMENTO,
na Antologia Poética O EU LIVRE, diz-nos que o "...calvário do espírito
padece no isolamento...", "O retiro é na alma, isolamento no
espírito". O retiro na alma a que se refere a poetisa é aquele momento de
reflexão, in-vestigação das con-tingências ec-sistenciais, a busca do outro
atrás do eu que se manifesta fora, o saber o "sou", o que pode ser. O
isolamento no espírito vai além do retiro na alma, pois que, como o diz
Fernando Pessoa, é o "escravo" de quem se é, não con-templa qualquer
possibilidade de trans-formação, de mudança, é o que o filósofo e escritor
Sartre define com categoria, é o "Em-si", uma coisa, um objeto. Num
verso pequeno, a poetisa sintetiza o "ser escravo" de Fernando
Pessoa, o "ser em-si" de Sartre: "É a querença que arredou-se e
anuiu a sensibilidade...", e no verso seguinte da mesma estrofe "...
a existência arrasou a causa", este "arrasar a causa significa que a
decisão, a escolha foram olvidadas, a liberdade sacrificada, nada mais se é, o
oco institui-se, o eu suplicia-se.
Para a poetisa e escritora Ana Júlia Machado, a solidão, o isolamento
são o espírito desventurado, e a liberdade está nas mãos do resgate íntimo da
sensibilidade, enquanto para Fernando Pessoa, o resgate da liberdade está na
consciência de que o homem nasceu para o outro, para a vontade da síntese do
"eu" e do "outro". Ambos os poetas portugueses, Ana Júlia
Machado e Fernando Pessoa desejam a "claridade" da liberdade, a sua
trans-parência, criando o "Eu", o "Eu-Outro", verbalizando
a sensibilidade, comungando o Verbo e o Ser, tornando-se Verbo-de Ser.
Só os outros podem dar-me a medida do que sou. Posso ser uma excelente
pessoa, mas se, na interação com os outros, sou irritadiço, sem paciência,
intolerante, prepotente, autoritário, então deveria questionar-me sobre se sou
mesmo a tal excelente pessoa que pensava ser. Apesar de ser verdade que, como
afirma Clarice Lispector: «Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso.
Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro». Afirmação,
esta, irônica, mas tão sábia…
E alguém que não consegue viver com os outros, que não consegue
alegrar-se com as alegrias desses outros e preocupar-se com as
[cor]-respond-{entes} tristezas, mais vale que viva na solidão, porque
considera que os outros não são boa companhia para si. E, como diz o ditado,
«antes só que mal acompanhado»…
(**RIO DE JANEIRO**, 22 DE DEZEMBRO DE 2017)
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