#AFORISMO 492/PARA QUEM TODO O PASSADO NÃO É ESTRADA DE UM MENOS# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: AFORISMO
Para quem todo o passado não é estrada de um menos, mas, ao invés, um
prado enorme que nenhum inverno nunca toca, flocos de neve não flanam sobre o
teto da bodega, a tempestade não avassala tudo e é preciso salvar os equus
asinus, vale sem limites e fronteiras que nenhum outono jamais acaricia, possuo
a arte e engenhosidade de ouvir os sons que se apresentam ao espírito, aos
ouvidos, ritmos e melodias se presentificam na inspiração, notas e acordes
presentificam-se na imaginação, e num toque de mágica tudo são intuições,
percepções, tempo de musicalizar as palavras com sentimentos, emoções, a alma
presente em suas dimensões con-tingentes; reclino-me, então, na cadeira,
desembainho um olhar afiado e comprido ao longo do quarto em que me encontro,
ora dando continuidade ao trabalho, ora dando continuidade à vida que se me
a-nuncia na sublime trans-cendência do verbo e do amor.
Quando se traduz o pensamento em palavras, as coisas todas, os homens
todos parecem razoáveis, o prado enorme que nenhum inverno toca parece
inteligível, o vale sem limites e fronteiras que nenhum outono jamais acaricia
afigura-se mágico, o deserto sem distância e longínquo não trans-parece ser mui
quente, caliente, o desejo de passear tendo uma mochila nas costas é
imensurável; mas quando se considera os seres humanos que passam pela rua a
idéia transforma-se em ato de fé.
A rua que tomei em declive. Tenho a sensação de já ter andado pelas
vizinhanças e de haver perto uma avenida principal. De alguma parte chega-me
aos ouvidos um vozerio sem igual. A rua faz uma curva brusca e acaba nuns
degraus que conduzem a um beco em nível inferior. Provido de todos os sensos,
estou no século XXI, caso contrário juraria estar no século XVIII francês.
Detenho-me um instante no alto da escada. Do outro lado do beco, há um
barzinho miserável cujas janelas parecem embaciadas, mas na verdade estão
cobertas de pó. Sede agora? Tomei água há pouco num botequim de esquina. A
ocorrência da sede implica que o ego se situou no centro de um mundo habitado
por entidades estáveis, com as quais mantém determinadas relações. Algum som
que desconheço, um sibilo, que entre serras, manuscreve o pórtico partido para
o Impossível que não deixa em seu atrás senão seus vestígios de harmonia e
serenidade. O grande papel é a vivência de extrema lucidez que percorre além de
todos os limites do tempo, que passa fora da cerca, e que nem as flores senão
flores baloiçam, a terra de quando em vez estremece, rolam as ondas, algumas
vezes sua fúria de compreender suas próprias ilimitações não deixa apenas
vestígio, mas ruínas. Pensar como quem anda um caminho é pensar um caminho, é
pisá-lo e senti-lo por baixo, senti-lo interiorizando-se em cada dimensão. É
chupar um fruto e saber-lhe o sentido, é fumar depois do almoço, e o cafezinho
conhecer-lhe o verbo.
Para mim, é uma situação nova de nosso amor, uma aparência de encontro
exclusivo, de busca de conhecimentos e desejos outros, alguma coisa que nos faz
adormecer a consciência e resguardar o decoro. Sinto-me livre de poder evitar
os encontros nos bares, a cachacinha acompanhada de um salgadinho, conversas
inúmeras, o chá de algumas noites, enfim a presença de outra alegria senão ás
portas de um desejo da experiência de amor. A sua presença resgata-me tudo; o
mundo vulgar termina à porta; daqui para dentro é o infinito, o eterno, mundo
superior, excepcional, nosso, somente nosso, sem leis, sem instituições, sem
desejos, um mundo de nos fundirmos um ao outro, de nos completarmos. Um só
mundo, um só casal, uma só vida, uma só vontade, uma só afeição e carinho,
consideração e entrega – a unida ética e sensível de todas as coisas pela
exclusão das que nos são contrárias. Dizem-me decantar, cantar, declamar,
recitar o amor em todos os instantes, toco o mundo, toco os homens. E quando
ouço, penso em silêncio: "Fossem-me dadas as palavras verdadeiras para
dizer o que sinto nestes instantes de declamação, recitação, as con-tingências
que me habitam, extinguiria vez por todas esta atitude e ação, em verdade, em
verdade, é um sonho. Mas agora é realidade, a vida no quotidiano de todas as
coisas, trilhamos os nossos caminhos, sabendo para onde estamos indo, o que o
nosso amor quer de nós.
O que na verdade desejo saber é se há mais liberdade, se há mais
esperança hoje do que nalgum tempo de outrora. O dia inteiro a esperança
exigindo um passado que redima o presente e o futuro. O dia inteiro, sem uma
palavra, a liberdade exigindo que a esperança tenha nascido de seu ventre.
Pela primeira vez, eu, quem sou um ser votado aos sonhos, às utopias,
pela primeira vez sinto-me atraído pela esperança: atração pelo instante-limite
da realização e da felicidade. Numa palavra, pela possibilidade. E pela
primeira vez tenho então amor pela liberdade, pela esperança. É um amor pedindo
realização, a concepção, a vida possível.
Limpo os óculos. Estão embaciados. Não posso enxergar bem na tela do
computador com os óculos embaciados. Tento, embora com certa isenção, o golpe
da inteligência de poder ver no assoalho desta bodega miserável o fruto de
alguma esperança de outrora. Onde vim parar no sentido de estar só, tomar uma
cerveja?
Atrás da esperança não há senão a esperança. Vêm lúcidos nas curvas de
montanhas outras a mão que vibra de sentido, posta livre, e os dedos,
movimentam de um lado para outro comungando os gravetos de verbos articulados
em cada sonoridade da língua, um refúgio e uma libertação, como a voz da Terra,
que é tudo e ninguém é ninguém, a algazarra da Terra e do Mundo na esperança de
serem verso-uno. No silêncio absoluto, as palavras de outrora estremecem de
insanidade, o silêncio estala a minha boca como uma pedra, estala-me os ossos.
Toda essa água que anuncia Deus é isso mesmo – um anúncio, do que jamais foi,
na pálida auréola do ar, das casas silenciosas, da copa das árvores ao longe,
raiadas de pingos de chuva, quando o silêncio é tão profundo que me ouço ser.
Existe apenas uma torrente dinâmica de devir na qual nada perdura e na
qual todas as coisas são, de fato, o produto da interação de forças plurais,
sempre em mutação. O homem da bodega olha-me, o que estaria escrevendo, carta
para a namorada. Peço-lhe outra cerveja e aperitivo.
A única vida verdadeira está no presente. Mas a que distância está esse
presente não há como se prever. Pode ser daqui a mil anos, no século XXII,
quando nem as cinzas existirão de mim, do que fui, do que represento no mundo.
No momento nada é possível exceto alargar a idéia de esperança e de liberdade,
senti-la na carne e nos ossos.
A emoção traz-me lágrimas aos olhos, e eu volto a cabeça, a fim de não
me trair, negligenciar-me. O senhor que me atendera, provavelmente de uns
sessenta, setenta anos, encontra-se agora palitando os dentes, enquanto olha o
pequeno movimento de sua bodega. Três caipiras jogam as cartas, tomando
conhaque. Encontro-me eu a tomar a minha bebida, uma cachacinha, cerveja,
escrevendo para preencher o tempo de letras.
A rua que tomei descia em aclive, aproveitei deste momento para refletir
e meditar sobre o amor que tudo modificou em minha vida, devolveu-me a
esperança, devolveu-me a liberdade, percepção de coisas novas, desejos
inusitados e excêntricos, ao avesso da terceira lâmina que cria ilusões e
quimeras, fantasias, as lâminas múltiplas da busca de integração e de visão do
jardim estar bastante florido e já ser o final do inverno. Aproveitei para
subir os degraus do conhecimento de sentimentos que sei, hoje, serão a redenção
e a ressurreição, serão o húmus de toda a vida.
(**RIO DE JANEIRO**, 23 DE DEZEMBRO DE 2017)
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