#AFORISMO 535/**A SEPULTURA SEMPRE HÁ DE COMPREENDER E ENTENDER O ARTÍFICE DAS PALAVRAS**/ - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: AFORISMO
Presença do vazio, nada, morte. A existência que se esvai com a presença
do tempo. A falha que falta extermina a proximidade. Desfaleço-me. A
consciência presente nas manifestações das coisas.
É na alegria que o homem prepara suas lições e, ao alcançar o mais alto
nível de exaltação, exultação, a carne se torna consciente e consagra sua
comunhão com um mistério sagrado cujo símbolo é o sangue negro.
Sombras forjam cruzes que estúpidos mortais comparam à fera humana e
hedionda. Impreciso retângulo de porta aberta arde traições que foram sonhos.
Longe fileira cravada atrai perfídias num esquecimento caduco.
Quanto a mim, vendo as angústias em que meu coração se debate, quiçá
assim levem-me a cogitar e refletir sobre coisas pretéritas, necessita ele libertar-se
e apenas a consciência do que sucedera isto realizará, e querendo uma vez mais
arrancar-me à morte, ponho-me nos braços o enorme mastro da nau de proa
sombria. A ele me abraço e, durante alguns dias, vogo arrastado pelos ventos
funestos.
A inocência tem necessidade da areia e das pedras. Quando a pedra,
afligindo a carne e os flancos sensuais de morna lassidão, impedir de desejar e
arfar meu coração e meus pés de seguir a trilha aventurosa, a sepultura que tem
seu confidente em mim – porque a sepultura sempre há de compreender e entender
o artífice das palavras –, dir-me-á sussurrando "Nas insônias sepulcrais
das noites sem fim, na sombria solidão de seu quarto, você acordava com a
embriaguez já minorada ou finda..." E o homem des-aprendeu o convívio com
essas coisas. Pelo menos é nisso que tenho de acreditar, porquanto se
entrincheira neste lugar singular onde dorme o tédio. Que tentação a de
identificar-me com as pedras, unir-me intimamente a esse universo ardente e
impassível que desafia a história e suas agitações!
A solidão ferve. Árvores que ecoam no deserto e silencioso vácuo. O
isolamento sem excesso. Um ruído mudo e cego do qual não se retira nem mesmo a
sua mudez e cegueira. O exílio cheio dos brilhos acobreados do sol quente e das
sombras contorcidas e trêmulas das árvores, folhas, galhos. Olho para os dedos
e as mãos. Desejos infantis afloram com lágrimas guardadas. Cresce um grande
lago de tristeza e desamparo, sobre o qual escorre e corre o entoar seco de
minha libertação. O velho mundo barroco que me segue a nostalgia, a melancolia.
Conheço os meus dedos, mãos, reconheço-os, e, ao mesmo tempo e instante, na
dobradura do horizonte, sinto-os distintos, como se capazes fossem de uma
enorme atitude, em grandes ações e gestos, em que a vontade e o querer não
interviessem, não interferissem.
O segredo dos rostos se desvanece e eis-nos de novo lançados na cadeia
dos desejos. E se a pedra não nos pode oferecer mais do que um coração humano,
aquilo que elas nos dá não é muito menos.
Ausência tragada de presenças. Absorvido, sugado pelo grânulo de açúcar.
Plenitude que se esvanece com a presença do efêmero. A existência. A
metamorfose. Inferno dos desesperados. O olhar para distante.
O vento sopra forte por entre as árvores. A porta da frente estala e uma
banda se abre lentamente, rangendo um pouco nas dobradiças. Uma rajada de vento
entra na biblioteca, indo agitar a pilha de jornais empoeirados no canto,
enfurnando os quadros na parede como se fossem cortinas.
(**RIO DE JANEIRO**, 13 DE JANEIRO DE 2018)
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