#CAFÉ-COM-PÃO-MANTEIRA-NÃO, MARIA-FUMAÇA DOS TEMPOS# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA
De tempos em
tempos, tenho de acreditar que sei porque existo - na gíria, dizem
"recauchutar os pneus", "passar óleo de Péroba na Bengala",
odeio gírias e ditados populares, conheço um povo que não precisa de palavras,
servem deles, dos adágios, dos aforismos, expressões idiomáticas, muitíssimo
conhecido como o povo do "Devagar é que se chega lá...", "povo do
queijo...", "povo do uai..."
Se me é
assim tão difícil saber que existo - há quem peça ao outro um beliscão, um soco
bem dado nas fuças para saberem que existem, métodos ridículos e agressivos
demais -, sirvo-me do talento e dom gratuitos para desejar esta sabedoria, para
estabelecer um saber, para inventar um conhecimento, e sigo a longa estrada de
onde a curva re-constitui ventos, de onde os sibilos do abismo aderem-se ao
vento e se esplendem na terra, mesmo que me conscientize de que a sabedoria desejada
e sonhada não é ainda aquela que a minha espécie acredita não poder germinar
sem uma confiança periódica na existência. Os estabelecimentos e invenções,
assim acreditam os de minha espécie, não são ainda a fé na razão de viver.
Tempos
passam, esvaecem-se, nunca escafedem, e no instante de um tempo que está
encerrando, nascem, re-nascem sonhos, esperanças, para mim é tempo de
in-vestigação, o que fora e não fora patenteado, as eventualidades, percalços,
visões-{de{-mundo, tropeços, fazem parte da minha castanheira, habitam-lhe.
Se a vida
não me reservara nenhuma felicidade, quanta vez assim o pensei, quanta vez
assim o senti, lamentei, chorei, dei pitis, até de vítima eu dei, compreendo,
obviamente, que estava blefando, elevei as mazelas além dos limites, penei,
exconjurei Deus e Mefistófeles, mas algo de mais profundo gritava e murmurava
no intimo, dizendo que se não me reservara a vida felicidade alguma, deveria,
então, criar e re-criar os incomensuráveis momentos dela, acreditando que são
eles que criam a felicidade, pelo menos assemelham-se muito à felicidade,
sobretudo pela intangível e etérea qualidade que desaparece a um exame mais
minucioso. Diziam-me as muitas vozes que a gozasse enquanto pudesse, não
fizesse perguntas, não murmurasse palavras de não, não ficasse sorumbático,
sobretudo não ficasse pelos cantos, recantos ruminando e lamuriando por
respostas, mas contribuísse com o que fosse possível para me sentir feliz.
Com aquele
aspecto infantil, melancólico, embora às vezes jovial e parcialmente
inteligente, aparecia pela fresta da cortina da janela, observando a monotonia
das ocorrências quotidianas com um interesse inconseqüente e virando-me a cada
palpitação do meu coração para o quarto solitário de todo, a música Stand by
me, sendo tocada na radiola.
Da janela,
ouvia o silvo estridente da locomotiva e, se me inclinasse um pouco, veria de
relance os carros brilhando rapidamente no final da rua, esperando-a passar.
Minha emoção era sempre nova e parecia afetar-me tão desagradavelmente e com
tanta surpresa na milésima como na primeira vez. Assim carinhosa e
sarcasticamente, digo que a Maria ficara nos pretéritos da infância, mas a
Fumaça estivera per siempre ao meu lado, companheira inseparável. Nada revela
tanta decadência quanto esta perda de lidar com os homens, com as pessoas, se
con-viver com alguém é tão só con-sentir-lhe ser quem é, inda mais simples
con-viver com quem não é, a questão da con-vivência com o outro são o nada das
palavras e as nonadas do reconhecimento e admiração, e de acompanhar o momento
atual.
Só podia ser
uma animação transitória a passagem da locomotiva à porta de minha residência,
pois, se o poder desta afetação perecesse, de pouco valeria a imortalidade. Por
que aquela musiqueta da Maria Fumaça, a que todos conhecem e ouvem nalguns
átimos de segundos de suas memórias, "... café com pão, manteiga
não...", que eu cantava "De antemão às revezes, o absoluto não"
pensava ser a vida contínua para mim, quiçá por imaginar que a Maria Fumaça continuaria
sua viagem até o fim dos trilhos...?
Precisava do
silvo estridente da locomotiva, de um mergulho nos sons de ventos
reconstituídos pelas curvas por onde ela passava e seguia o seu itinerário,
onde ficasse imerso por algum tempo, para depois voltar à vida vigoroso,
reintegrado no mundo e dono de mim mesmo.
Reconhecia
no fato de ficar à janela de meu quarto, enquanto passava a locomotiva, a
proteção divina para comigo, pobre criança à mercê das coisas circenses,
literárias, e a comédia e tragicomédia dos homens e dos indivíduos, que devia
ser perdoada por me considerar um deslocado, esquecido e deixado ao sabor de
encarniçado limite.
Há sempre
uma enorme confusão quando o espírito foge do momento presente, seja para o
passado, seja para o mais longínquo futuro, tornando-se o corpo guia de si
próprio. Ou para aqueles ideais e utopias que não são de suas índoles,
"pedigrees", de suas alçadas, per siempre escravos da mentira
deslavada.
Confusão
maior deveria ser a minha cujos deveres atuais estão compreendidos em tão
minuciosos detalhes. A vida e a realidade de minhas emoções tornam todas as
circunstâncias imateriais como fantasma de um cochilo semiconsciente. Não trepo
nas árvores para me mostrar na sua grimpa. Prefiro a caminhada lenta pelas
estradas de poeira e ventos.
De qualquer
modo, acho a imensidade suficientemente grande e a eternidade efetivamente
longa para todos os homens, para toda a raça humana, para toda a humanidade, de
todas as laias, estirpes. Tento entabular um itinerário propício para as
descobertas essenciais, impelido pelo bondoso impulso de tornar as horas mais
agradáveis que as anteriores e as que ainda sobrevêm os sentimentos mais
sublimes, por vezes angustiantes.
A presença
da vida – sonhei que sentira de todo a presença da vida em mim, tão forte e
refulgente esta presença que me olhei de cima a baixo procurando-me, não me
lembra se encontrei esta vida no que olhava em mim, o corpo – é tão agradável
como um brilho de sol caindo sobre o chão através da sombra de folhas
balouçantes, ou como o revérbero da luz da lareira, dançando na parede,
enquanto a tarde se transforma em noite.
Aquando
escrevia sobre o sonho de haver sentido de todo a presença da vida em mim,
sonho este acontecido esta noite, lembrava-me de outro sonho quando a uma certa
distância observei uma mulher que vinha em direção contrária à minha, com um
vestido longo, olhos azuis muito grandes, e, ao passar por mim, antes de
ombrear-se comigo, disse-me “existência”.
Em tom
jocoso, respondi que sim, “Existência”, "se não o fosse, com certeza a
pegaria", olhando-a de viés e às reversas, nalgum recanto seria inevitável
o reencontro. Passou por mim, dizendo “Existência”. Após quase dois meses,
sonho que sinto de todo a presença da vida em mim, senti uma sensação por
demais estranha, por demais esquisita. À mesa de café, ria a bandeiras soltas,
lembrava-me de um médico, Dr. Pimentinha, não por seu sobrenome era Pimenta,
por todos para ele sofrerem de um doença psíquica, para ele, era eu
esquizofrênico. Inteligência, sensibilidade careciam a todos, não podia, a vida
das esquisitices pulsava em mim, fazia-o com pujança, con-tundência.
Dia claro,
luminoso, de atmosfera santificada, em que o céu parece difundir-se sobre a
terra, num solene sorriso. Hoje, se não fosse suficientemente
"existência", não mais careço dela: sinto em mim, em qualquer lugar
que esteja, o culto natural da terra, a sabedoria das águas e do silêncio, da
ilha e dos bosques.
#RIODEJANEIRO#,
21 DE DEZEMBRO DE 2018#
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