**INÉDITO: "IN CAPITULO EXISTIR" - TEXTO DEIXADO EM MÃOS DE PAULO URSINE NO INÍCIO DOS ANOS 80**
POST-SCRIPTUM:
Desde que, em 1981, aquando comecei de escrever o meu primeiro romance
intitulado O VAZIO, o amigo, escritor e poeta Paulo Ursine Krettli participou
da criação desta obra em todos os níveis, inclusive com situações e
circunstâncias que vivemos.
Com respeito a este texto que está a enviar-me, chamou-me ele a atenção.
Não poderia ser incluso no romance, estava destoando do enredo e estrutura.
Disse-lhe: "Então, fique com você este capítulo. Guarde no meio de tantas
coisas que já tem guardadas."
Confirmei com ele isto mesmo: "Este capítulo é uma caracterização,
esboço da personalidade, caráter do personagem Romualdo Lacerda." Romualdo
Lacerda não era apenas uma personagem, transcendia. Tinha de viver muitas
situações e circunstâncias para criar o romance. Só mesmo o Paulo Ursine
Krettli pode dizer tudo o que vivi, aquando escrevendo.
IN CAPITULO EXISTIR
São quatro horas da tarde. Olho para o infinito. Ele existe. Resta-me
saber a distância entre mim e ele. Não posso calcular a distância. É-me
impossível. É como chegar ao nada e sentir que ele existe, mas não saber
explicá-lo. Sei apenas que o infinito existe. Não me importa a mim sua
explicação. O que me importa é que a visão que tenho de onde estou é
maravilhosa.
O céu está azul. Há algumas nuvens brancas. O sol parece-me tão
vermelho! Ao longe, a montanha parece-me calma. Chego a percebê-la. Ao longo da
montanha existem pedras espalhadas. Todas permanecem no seu lugar. Alguns
animais pastam. Os pássaros assentam na grimpa das árvores. Não cantam. Outros
animais estão estirados ao chão. Estão descansando debaixo de uma árvore
qualquer. Alguns insetos voam. Essa sensação do voo sempre me chamou a atenção.
Não sei muito bem o porquê. A vegetação é rasteira. Por debaixo das pedras, a
vegetação obstrui das pedras.
É isto a liberdade? Não pode ser. Para qualquer lado, que eu olhe,
existe uma casa erguida. Moro numa cidade. Não é muito velha. A sensação que
tenho de velhice não satisfaz a questão. Penetro no interior das casas. Cada
pessoa tem o seu problema. Cada um tem a sua frustração. Cada um é uma
individualidade em si. Até mesmo no modo de calarem-se, mostram ser diferentes.
Às vezes, pergunta-se: “Têm essas pessoas alguma razão para viver”? Não consigo
responder. A razão de viver cada um tem, dentro de si, de uma forma. Talvez
para elas, a vida já seja uma razão para viver. Não sei muito bem. A vida para
cada uma delas mostra-se de uma forma.
Ao longo da cidade, várias ruas cruzam-se. Nelas existem vários postes
de luz. À noite, as lâmpadas são acesas. A cidade adquire outro aspecto. As
pessoas mostram-se diferentes. Estão mais caladas. Talvez seja o cansaço o
responsável. Não é só isso. Algo ainda existe de diferente no comportamento das
pessoas. Não sei explicar. Torna-se impossível. Abre um parágrafo, aqui, para
uma questão de assaz importância. O que seria a impossibilidade? As coisas são.
A impossibilidade das coisas implicaria na não existência das coisas. Ademais,
a impossibilidade...
Nas praças, os casais de namorado, os amigos, ou apenas os conhecidos
encontram-se. Conversam. Contam vários casos. Alguns são verídicos ou pelo
menos tentam, por si mesmos, ser verídicos. Outros são frutos da imaginação.
Nunca dizem nada a respeito deles mesmos. Às vezes, contam algo sobre si
mesmos, porém sempre ideologicamente. Guardam para si mesmos as sensações
particulares – quando sabem dessas sensações. Os homens já estão acostumados
com as ideologias, não vendo o real.
Acendo o meu cachimbo. Olho de novo para a montanha ao longe. Não sei
por que, mas passou por minha mente que, em algum lugar da montanha, deva
passar um rio – talvez um córrego. A água deve estar muito morna. Ou estaria
fria? O sol está forte. Está tão forte que se nota a vegetação um pouco
ressequida. Em se falado de córrego (ou rio), não consigo ter uma imagem
perfeita de córrego (ou rio). Talvez um deles esteja existindo com convicção
que me não é possível ter uma noção sequer de como ele exista.
Já são seis horas. O sol está se pondo. Existe uma mancha vermelha ao
redor do sol. Isto dá um novo aspecto. Tudo fica tão bonito! A mancha, que
existe ao redor, do sol não é totalmente vermelha. É mais um vermelho
amarelado. Essa sensação vermelha- amarelo existe dentro de mim. Eu a concebo
dessa forma. Isso permite-me sentir as coisas. Agora parece-me que existe um
castelo desenhado nessa mancha vermelho-amarelo. Todas as suas janelas estão
fechadas. Chego a dizer “é mais o castelo de Conde Drácula”. Foi a sensação que
tive. Parece-me tão antigo que foi a única concepção que tive dele. Imagino que
existe alguém dentro dele. Está sozinho. Sua fisionomia está transfigurada.
Sente-se solitário. Tem necessidade de contato humano. Chegando totalmente a
noite, ele sairá a procura de alguém. Não consegue ficar muito tempo daquele
jeito. Ao encontrar alguém, sugará o seu sangue como forma de mostrar o seu
sentimento.
As primeiras luzes da cidade já estão sendo acesas. Algumas pessoas
passam de cabeça baixa. Vejo um casal de namorados descendo. Não falam um ao
outro. É como se eu visse isso. De onde estou não posso ter a convicção de que
não estão falando um com o outro. Eu tive essa sensação. O modo deles
caminharem mostrou-se não estão falando um ao outro. Estavam caminhando
devagar. Ela estava com o braço passado em seu pescoço. Ele estava com o braço
passado na cintura dela. Devido a minha curiosidade de ver se estavam mesmo
falando um ao outro, fui até o portão. Não foi possível ver absolutamente nada.
Já estavam muito longe. Mesmo assim continuo com essa ideia: não conversam.
Um carro passa na porta. Dentro, quatro pessoas. Não consegui ver o
rosto de um sequer. Passou muito rápido. Do carro, lembro-me a cor. Era
alaranjado. A marca não sei. Não entendo muito de marcas de carros. Para mim
todos são iguais. Apenas a cor difere. Cada um gosta de uma cor.
Volto para dentro de casa. As paredes são pintadas de branco. Uma luz
está suspensa no ar. Existe um fio que segura essa lâmpada, que agora observo.
As portas são pintadas de verde. Nessa sala, pequena e ampla, existe um armário
guardando algumas louças, objetos velhos, pratos com ilustrações de rosas e,
nelas - as ilustrações -, a palavra “FELICIDADES”. Apenas passo o olhar nesses
pratos. Volto a olhar para outras coisas existentes na sala. Existe uma mesa
com seis expostas em seus lugares. Existe também um ferro sobre a mesa. Sua cor
é vermelha. Fui eu mesmo quem pus. Não existe mais nada na sala. Todas essas
coisas existem com muita convicção. Não me demoro muito olhando para as coisas
que existem na sala.
Antes de dirigir-me ao quarto, acendo de novo o meu cachimbo. Para o meu
cachimbo também existe uma história. Prefiro não revelar. O cheiro não o sinto.
Acostumei-me.
No quarto não são muitas coisas colocadas ao seu longo. Apenas uma
penteadeira e um guarda-roupa existem. Alguns objetos estão colocados sobre a
penteadeira. O guarda-roupa é preto. Tem duas portas. Em cima dele não existe
nada colocado. Recuso-me, por uns momentos, abri-lo. É como se houvesse
qualquer coisa dentro dele que não quisesse ver. Dentro dele existem apenas as
minhas roupas: algumas velhas, outras poucas e recentes sem serem usadas.
Abro a porta de guarda-roupa. Tiro a calça e a camisa que vou usar.
Fico, por instantes, olhando para dentro do guarda-roupa. Procuro ver se há
alguma coisa que não queria ver antes de abri-lo. Não encontrei nada. Foi
apenas uma sensação que tive. Às vezes, tenho essa sensação de que vou
encontrar uma coisa que não quero ver. É como se eu estivesse de ver sempre as
mesmas coisas. Ao deixá-las, sem ver, morreria.
Essa sensação da vida parece-me tão estranha! É como se a vida não me
pertencesse. Fosse uma coisa a parte de mim. Eu seria eu mesmo. A vida seria
ela mesma. Nunca iria haver nenhum vínculo comum entre mim e a vida. Chego, à
conclusão, de que a vida existe fora de mim. A vida é um ser diferente.
Diferente como a montanha às sete horas da manhã e às seis horas da tarde. Eu
faço parte da vida às seis horas da tarde.
Estou pronto para sair. Preciso andar um pouco pelas ruas da cidade. O
ato de andar é-me tão significante. Piso com muita firmeza no chão. Meus olhos
observam tantas coisas ao mesmo tempo. Consigo dar algumas impressões a mim
mesmo sobre as coisas observadas. Lembrando-me delas, parecem-me tão diferentes
de quando as observei. É como se algo passa a existir. Estava escrito numa
placa um pouco suja: “Bar do Hélio”. Olhei rapidamente. Vi que estava escrito.
Não houve nenhuma reflexão no momento. Dias após, lembrei-me da placa.
Lembrei-me de muitos fatos. Daqui, de onde estou, agora, inerte, essa placa
significa muito.
Antes de sair, olho para o céu. Somente existem estrelas e a lua. O
infinito parece-me cada vez mais distante.
(**RIO DE JANEIRO**, 07 DE FEVEREIRO DE 2017)
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