**ESPÉCIE DE INCONSISTÊNCIA DAS COISAS** - PINTURA: Graça Fontis/CONTO: Manoel Ferreira Neto
"Em vão o homem através de planejamentos procura instaurar uma
ordenação no globo terrestre, se não for possível ao apelo do caminho do
campo" (Heidegger)
"Uma farsa enorme..."
"Enorme é um termo pouco para definir esta farsa".
"Um advérbio(?) que não tem sido. A farsa está sozinha".
"Sei disso..."
“Não tive nunca a preocupação de resgatar o que perdi com você. Não movi
uma palavra para recuperar a confiança. Nem sei mesmo porque. Já removi céus e
terras para recuperar o que perdi com as pessoas. Consegui, afinal".
"Tudo é uma farsa. Não sei porque após três anos você me procurar.
Qual foi a sua intenção?".
"Nem mesmo sei. Foi uma coisa de espírito. Aconteceu. Realizei. Não
consigo saber de nada. Talvez tivesse sido melhor deixar as coisas como
estavam".
"Não se deve arrepender do que se faz...".
"Não me arrependi. Só acho que deveria ter esquecido de tudo o que
houve. Não há mais o que pensar sobre".
"Não há. Nada houve. Não há nada. Haverá nada".
"É o que é. Desculpe o realismo. Não sei porque nunca preocupei em
resgatar a sua confiança. Talvez seja isto: confiança perdida é confiança
irrecuperável. Fiz com que perdessem a confiança em mim. Quis recuperá-la. Recuperei-a
. Com você não. Nada houve. Não entendo o que aconteceu entre nós. Como dizer?
E... Que peças entraram neste jogo? É a primeira vez estou sendo tão
realista".
"Tudo farsas, farsas..."
"Não mais possibilidade de nada entre nós. Mas, sinceramente, vou
sentir falta. De dialogar amenidades. É muito bom. Nem é possível uma boa
amizade. Gostaria de saber o que nos trouxe até este ponto. Machucamo-nos
muito. Nada irá nos responder".
"Não estou preocupada em saber..."
"A bem da verdade, estou. Apenas para não mais acontecer. Não é
agradável uma situação como a nossa".
"É esquecer de tudo..."
"Esquecer é quase improvável. De algum modo, iremos lembrar um do
outro. O que é: cada um seguir o seu próprio caminho. O melhor para
ambos".
"Vamos nos encontrar na velhice. Não conheço nada tão
insubstancial..."
"Já disse isto faz algum tempo. Quem irá garantir que vamos ficar
velhos? Apesar de tudo pode ter sido o mais verdadeiro que vivemos e iremos
viver. Ou o mais mentiroso".
"Mentiroso..."
"Talvez... Você perdeu a confiança em mim".
"Perdi. Tudo seria diferente se fosse do seu interesse recuperá-la.
Mas não".
"É... Já lhe disse: não me preocupei. Enganei-me. Quis acreditar
amava-me você. Amando-me, uma perda de confiança seria passageira. Nunca me
amou. Nem mesmo eu a amei. Vivi uma farsa. Uma espécie de aventura".
"Esperava a sua maturidade. Chegasse, seguiria o seu rumo. Estava
escrito".
"Não esperava nada. A maturidade chegou. Tomei decisões irei
realizar. E você não está incluída nelas".
"Não sei porque fui admitir tudo isso. Deixei acontecer. Por isto,
indago o porquê de me haver procurado após três anos".
"Nem mesmo eu sei... Soubesse, diria. Mas não sei. O que posso
fazer? Nada".
"Sempre precisei de dados sensíveis a seu respeito".
"Nunca lhe dei estes dados sensíveis...
"Sei disso..."
"Nem lhe vou dar agora. Nunca me preocupei com estas coisas.
Acredite: nunca lhe vou dar. Por que só no concernente a você? Por que não com
as outras pessoas? Isso é muito estranho".
"Farsa..."
"Farsa. Um direito meu não acreditar em você".
"Direito seu. Não lhe tiro este direito. É todo seu. Tem mais é que
reivindicar e viver seus direitos".
"Sabe que vivo os meus direitos..."
"E como sei disso!... O direito de esperar a velhice para nos
encontrarmos. Já fui questionado por causa disto".
"Fico pensando neste almoço sexta-feira. Estou quase não
indo".
"Não vai?"
"Não sei ainda. Mas não tem sentido algum".
"Quero fechar a relação com chave de ouro. Comemorar o seu
aniversário"
"Para que "chave de ouro"? Nada houve entre nós. Por que
querer consertar o que não tem conserto. O que não tem concerto nem nunca
terá".
"O que está feito"
"Pois é..."
"Você quem sabe. Não vou forçar nada".
"Nada faço com pressão. Sabe disso".
"Seria melhor a resposta agora. Aí, não vou lá. Procuro outra coisa
para fazer neste horário. Nem apareço por lá".
"Estou pensando..."
"Dê a resposta agora!..."
"Estou considerando a proposta"
"Considere, então. Voltando... Vou sentir falta de você".
"A gente só sente falta do que possui".
"Não a possuo. Nunca possuí. Com efeito. Mesmo assim, vou sentir
falta. Gosto de ouvir sua voz. Gosto de dialogar com você. Faz-me bem de algum
modo".
"Não lhe faço bem algum"
"Não concordo. Por mais nada haja entre nós, há qualquer coisa.
Você me faz bem, de algum modo. Não é o mesmo bem os outros me fazem. Mas
faz".
"É... Isto aí é com você".
"Só é... Respondo por mim"
"Uma farsa... Nada mais pode haver entre nós".
"Sei disso. Sexta-feira termina tudo".
"Estou considerando a proposta. Isto não tem sentido algum. O que
isto significa? Nada".
"Quero deixar uma boa recordação minha. Pense bem: nunca almoçamos
juntos. Só os corpos estavam distantes. Se bem me lembra, foi só no início da
relação que homenageei o seu aniversário com um abraço".
"O desejo era de beijar-me. Enviou-me um bouquet de rosas com um
lindo cartão. Já não nos falávamos".
"Nem me lembrava disto. É verdade. Fiquei com receio de devolver
tudo. Aceitou".
"Nem mesmo sei o porquê..."
"Não importa mais..."
"Não importa..."
"Este ano estou empreendido neste almoço..."
"Estou considerando... De alguma forma, nós vivemos a história de
Anny e Antoine de Roquentin".
"Não justifique... Não é de seu feitio. Lemos esta obra. Tudo bem.
Mas nosso caso é outro. A questão é: machucamo-nos muito. É o que é. Amadurecemos.
Não nos livramos das feridas. O fim só poderia ser este".
"Nosso caso foi nada..."
"Nada é uma palavra muito rica. Não foi um caso entre nós. Nada
houve. Começo a duvidar se houve diálogo entre nós".
"Nem diálogo... Nada..."
"O que é isto? Sinceramente, não entendo".
"Você pode responder..."
"Eu não... Nada sei. Concordo: por que fui procurar você, após
estes anos? Queria mostrar a mim o quê? Queria ver se a amava como
pensava".
"Você nunca me amou".
"Não. Nunca a amei. Sempre soube disso. Você foi alguém em minha
vida. Nem foi uma grande amiga. Foi alguém. Só isto".
"Sempre soube disso..."
"Não tem culpa. Sou eu o grande culpado. Fui eu o único quem a
procurou todas as vezes. Só uma vez me procurou, por interferência de alguns
conhecidos".
"Sim. Por causa deles...
"Sempre soube... Diga-me: vai ou não almoçar comigo?"
"Não sei. Não vou dar respostas agora".
"Tudo bem. Quando?..."
"Amanhã..."
"Tinha de sê-lo... Se não houvesse sido, já sabia de tudo".
"Então, até amanhã...
"Até..."
(**RIO DE JANEIRO**, 20 DE FEVEREIRO DE 2017)
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