#AFORISMO 928/ MORRER CUSTA - ONDE O PENSAMENTO CONSCIENTE É MAIS QUE PURA EXPECTATIVA, PURA INTERROGAÇÃO# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: AFORISMO



O que me vem à boca e tem nome refugia-se na timidez do silêncio, porque a voz que me fala transcende o passado, presente, futuro, vibra desde as minhas raízes até ao termo, e terno, aí onde o pensamento consciente é mais que pura expectativa, pura interrogação. Como teria gostado de abordar-me, mas me não permitia fazê-lo, a fim de não me ferir o orgulho, a vaidade!...


Morrer custa.


A fênix pôde renascer das cinzas, pôde escolher entre a morte e a vida. Escolhera a vida. Glória tão simples, renascer das cinzas, parece-me estranha. Outros dirão o que me falta é humildade, se se preferir, a simplicidade. É procurar a Sabedoria. Assim, serei castigado com mãos de ferro. Sabedoria lançará epigramas, desarmará as flechas, afrouxará o arco, apagará a tocha, e não mais tratará com deferência a minha pequena pessoa. Porém, essa palavra, em suma, é ambígua. Semelhantes àqueles bufões de Dostoiévski que se orgulham, se vangloriam de tudo, sobem aos proscênios e terminam expondo a vergonha, a culpa toda, faltam-me apenas a nobreza e virtude do homem que é a infidelidade a seus limites, o lúcido amor de sua condição, o transparente sonho de sua natureza.


Se devemos resignar a viver o frio e as paisagens, o vento e cenário, a vida, enfim, e as felicidades que eles implicam, o mito de Prometeu está entre os que nos farão lembrar que toda mutilação do homem não pode ser senão efêmera e que ninguém mostra nada do homem se não o apresenta por inteiro, o cenário e vento, as paisagens e o frio, as arquiteturas e a solidão. O herói acorrentado, mesmo sob o raio e o trovão divinos, mantém inabalável sua fé no homem. Assim, ele é mais duro que sua rocha, mais paciente que seu abutres


Por isto morrer custa. Abrem-se as gotículas, com a calma da boa consciência. Abre-se a esperança dos que iniciam, a vida renova-se, crianças nascem, abrem os olhos, completam-se, visão aguça, enquanto outras crianças vão nascendo e levam os nossos desejos que vão envelhecendo e assistem à vida renovar-se. Abrem-se os sonhos de quem deseja amar, deseja entregar-se à vida sem reservas, contemplar o que é isto ser feliz.


Morrer custa.


O questionamento é o que estaria, em verdade, acontecendo. Não acredito que algo neste nível surgisse de imediato, tomasse o lugar imaginado e pensado ser conveniente, passasse a inter-ferir em todas as outras dimensões, modificando as emoções, transformando os sentimentos, aguçando a sensibilidade, sensibilizando o corpo. Sinto o inverno que toca a pele, o corpo por inteiro, sinto-o perpassar a carne, ainda não o sinto nos ossos. Será que, além dos ossos nunca emagrecerem, jamais sentem frio? Quem dera venha a senti-lo nalgum tempo distante, nalguma janela aberta da pousada Relíquia do Tempo, é a esperança que trago nas cinzas de quando nada sentia.


A inteligência é o mesmo que nada, o verdadeiro, o lídimo, o probo valor está no coração, e que sem ele o intelecto é pobre, miserável. De olhar lançado ao mundo, há só noite lá fora. Confronto com a ameaça suprema do desespero absoluto diante da temível natureza da existência, tomado assim pelas maiores dores, os tumultos e as angústias, que se pode superior o maior dos obstáculos.


O que me lembro não tem face nem nome, é a estética de um limiar indistinto, para anunciação da presença, alarme de uma aparição. Num longe imaginado, passam os ventos em seqüência, o frio desliza sobre a terra abandonada, uma voz de espaço ressoa a atenção minha lançada. O barco vai não sei para onde, os remos vão perdidos já. Ultrapasso a linearidade com a simples intenção de, a cada instante, o coração sem cúmulo algum, indistintamente, através de todas as coisas, ser o viver do bem-estar, da paz.


Morrer custa.


A que me re-corro não é flauta, não é cricrilo de grilo, não é silvo de serpentes esquecidas de picar como abstratas ao brilho da lua cheia, serpentes bífidas, à cintilância das estrelas, recorro-me à partícula sonora que a vida traz na algibeira, é som que precede a música. Psique e Cupido comungam-se, aderem-se, conciliam-se, e uma filha nasce de seus amores, chama-se Volúpia.


O espelho reflete outro espelho. O corredor cria outro corredor. Volúpia de acabar que não acaba. Onde abate o alicerce ou escafede o instante, estou comprometido pela consumação dos tempos. Livre de encantos, seduções, o perspicaz sabor gratuito de oferendas, o círculo vazio, a ingaia ciência. Vida na sua forma irredutível, já sem ornato ou comentário rítmico, vida a que aspiro como paz na exaustão (não a morte)


Morrer custa.


Compreendo que esse esplendor, resplendor, êxtase demasiado longos, infinitos nada oferecem à alma, sendo apenas um gozo sem limites, sem fronteiras, sem reservas. Desejo então retornar às coisas do espírito, fascinam-me, completam-me, e o desejo é de expressá-las em sua pureza.


Devasto os mares e rios de mim, o meu ser visita os mais recônditos e longínquos sítios da verdade - quando serei presença? Busco o solo profundo onde fixar raízes - quando serei verdadeiro? Ou melhor: estilo de emergir das profundezas tumultuosas...


Se o homem é corrompido por natureza, como poderá crer em se transformar, por mais que se esforce num homem novo agradável a Deus, quando consciente das transgressões das quais até então se tornou culpado, se encontra ainda submisso ao poder do princípio mau e não encontra em si mesmoma força suficiente para fazer melhor no futuro?


Os homens desta terra têm coração e espírito, nisso residindo a força, a decisão de serem livres, só alguns, não são poucos, contudo, vivem esta esperança que lhes habita o íntimo, os outros não a quiseram alcançar, seguem trilhas diferentes.


Entregando chaves de segredos... As coisas, aparentemente mortas, do passado, permanecem transitando na vida, estão latentes na memória e presentificadas na poesia, objeto a ser aberto e como resultante de ontem e hoje, devolvo-me tesouros perdidos, eu mesmo de minhas cinzas particulares e íntimas.


Podem tornar-se amigos (e amigos excelentes!), mas jamais serão confidentes de ninguém. Talvez seja uma peculiaridade, singularidade, originalidade, que alguns julguem pernósticas e perigosas, cidades onde se faz enorme consumo da alma e do espírito e onde a água das confidências jorra furtivamente, ilimitadamente, por entre as fontes, serras, estátuas, jardins.
Quiçá noutra perspectiva de pensamento e idéias, percepções e sensações, inspirações e aspirações, sentimentos de alheamento do que na vida é suspiro. As próprias delícias fazerem sentir poderia dormir ao contacto do sopro mais fresco.


Volúpia de des-atar a música saborosa que esperava ouvir à hora do passamento no campesino ar já cansado de dormir sonhando a alma e a comunicação.


Morrer custa.


(**RIO DE JANEIRO**, 04 DE JULHO DE 2018)


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