#AFORISMO 454/QUANDO O MORTO FALA POR SI# - GRAÇA FONTIS: TÍTULO/ESCULTURA/Manoel Ferreira Neto: AFORISMO


EPÍGRAFE:


"Raras são as pessoas portadores de um pensamento consciente, vivo."(Manoel Ferreira Neto)


Dizendo que raras são as pessoas portadoras de um pensamento consciente, vivo, pensa-se, com efeito, o desejo é de achincalhar os valores de nossa contemporaneidade, de nosso quotidiano, mas nunca que se tem outros objetivos bem mais sérios que apenas uma afirmação neste nível, embora seja bem explícito que assim o penso, seja uma incólume verdade.


Raras são as pessoas portadoras de um pensamento consciente, vivo.


Não tê-lo não é solo, leitmotif para sentr-se inferior, negligenciado, subestimado, achincalhado, vexar-se, sentir vergonha: o aconselhável e a atitude ipsis verbis suprema e divina é silenciar-se, nada dizer do que pensa e sente. Alguns diante do que pensam e sentem, viram as costas, res-ponder seria o mesmo que assumirem o mesmo nível; quanto a mim, em certas circunstâncias, não descendo em nível delas, mas dizendo-lhes de modo que jamais terão a contra-resposta: levar-me-á ou levará o sapo seco para a sepultura. Ai, isto me dá um prazer que a eternidade jamais sentirá o nível deste prazer que sinto.
Poder-se-á replicar que em tudo isto não existe idéia, nenhuma novidade. Tenho muito poucas mesmo, idéia e novidade, e creio que isto é o pecado original mais puro, o pecado, que alguns supõem terem se anunciado no pretérito das pulgas, antes do rio assim se chamar, na sua fonte mesma. Disse-o antes que não tenho uma novidade, a minha é feita de caminhar. Replico, pela última vez, não me lembra de haver tido a primeira; não irei repetir, é algo de que sinto sérias ojerizas.


Contudo, que há nisto uma grande massa de idéias, e nova, isto é, existem nestas palavras escritas no túmulo inúmeras idéias novas, muitos desejos e vontade de mais vida ainda, há sim, pois que sou eu quem o faz, não houve outro senão eu próprio. Mas, como já era esperado, exprimo-as com grosseria. Não há motivos de agressividade, mas me exprimo deste modo e estilo, e ainda me rejubilo de prazer e contentamento. Disseram-me que escrever só coisas lindas e doces acaba por enjoar os ouvintes, leitores, o que concordei. Havia coerência. Não sou um pequeno sujo que come chocolates de modo compulsivo. Aí, então, sendo autêntico, assumi a agressão. Comigo não há outro caminho senão os extremos, os paradoxos. Encontrei agora o meio-termo que tanto as pessoas e íntimos reclamavam de mim.


A exposição é mesquinha, frouxa, superficial e de nível ainda inferior à minha idade. Faz vinte anos cometi o disparate de aumentá-la dois anos. Os amigos descobriram a mentira, censurando-me por atitude tão medíocre. Por que aumentar a idade?! Sem sentido. Talvez não tivesse. Acredito. Pensava comigo que, aumentando a idade, iria mostrar maior experiência e sabedoria. E, agora, esta exposição dos primeiros dias de falecido é de nível inferior à minha idade. Adquiri muitas experiências com as situações e circunstâncias da vida.
É por um destes impulsos a que se procura em vão resistir, que se entrega fácil a hesitações tantas, que me ponho a escrever estas poucas linhas, quem quiser que compreenda e entenda mesmo que à moda das orelhas pontiagudas, tenho pouco tempo, antes que o primeiro verme venha roer as frias carnes do meu cadáver. É tudo, em mim e à volta de mim, tão estranho e obscuro!... No entanto, mesmo que vivesse ainda por uns quarenta anos, juro que não assumiria de novo tal encargo em relação a qualquer outro período da existência. Deixo a liberdade de um posicionamento próprio, mas é necessário estar ignobilmente enamorado de si mesmo para que seja possível a alguém escrever a autobiografia pós mortem, em poucas palavras, sem me envergonhar.


Se é que me envergonharia de algo escrito, com certeza tenho uma idéia de quando: com uma linguagem bem vulgar e chinfrim, já que posso espremer os miolos, criando coisas de alto nível, com uma linguagem de causar inveja a muitos. Sentir-me-ia escrevendo um diário muito peculiar a adolescentes, a adolescentes que descobriram a primeira paixão.
Vale a verdade que não tenho em mira o aplauso dos vivos, dos que estão ainda sensibilizados com a minha morte. A questão é tão antiga que nenhum ouvido é capaz de captar com clareza e senso de julgamento. Ouviu-se ser falado em todas as rodas isto e aquilo, em todos os lugares, aí são os tratamentos mais delicados possíveis. Almejam com certeza algum comentário dos futuros biógrafos, especialistas. O biógrafo e o especialista esquecem-se de dizer com todas as letras e estilos possíveis que seu empreendimento não teve outro sentido senão figurar no pretérito das pulgas. Mas com certeza estes homens não vão figurar junto comigo. Não cito os nomes, mas denuncio as falcatruas e interesses mesquinhos.


"Considero uma vilania expor no mercado literário os sentimentos íntimos de um morto...”


(**RIO DE JANEIRO**, 09 DE DEZEMBRO DE 2017)


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