#AFORISMO 150/MIM É UM EU QUE A-NUNCIO# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: AFORISMO


Escultura de ar, minhas mãos te delineiam nua e abstrata para o homem que não serei. Não viver para contemplá-la! Não é delongado mentar uma flor, e con-sentido deambular por cima do estreito rio presente, construir do orvalho matutino a razão de ser, o ímpeto.


Terminou a titubeante angústia de meu inverno. Aproxima-se a primavera. E, semelhante ao vento, quero, inda que tardio, soprar no meio deles e, com o meu espírito, tirar o respiro ao seu espírito: assim deseja o meu futuro. Ocultar-me a mim próprio e à minha riqueza - assim aprendi a engolir palavras, sem lhes sentir o sabor. Liberdade é o grito preferido; aprendi a não ter fé nos "grandes acontecimentos", assim que ao redor deles haja muita algazarra e fumaça.


Muita algazarra ensurdece, muita fumaça lacrimeja os olhos. Não desejo o exílio, o abandono. À extremidade de mim estou. Eu, implorante, eu quem necessita, quem chora, quem pede, quem lamenta, quem roga. A que digo palavras? Palavras ao vento? Que importa se as traz de novo, possuo-as. Eu à beira do vento. O morro dos ventos uivantes me chama. Quiça se me patenteie, no seu cume, a simbiose entre o sujeito que transita e o objeto transitado ao ponto que já não saiba quem é o conteúdo, quem é o continente. Ato de criação, cometimento total que aproxima o homem do mito e dos deuses. Qualquer que seja a metáfora ou símbolo de que me utilize, por mais que varie da construção do verso, da tecitura da prosa, o que existe é a verbalização do trajeto do sujeito ao objeto.


Mim é um eu que a-nuncio. Não me é sabido sobre o que estou falando. Estou falando do nada. Eu sou nada. Depois de morto engrandecerei e me espalharei, e alguém dirá com amor o meu nome. No riste da palavra está a palavra. Quero usar a palavra "vale" e não sei onde e quando. Não terá qualquer sentido, significado, quando terminar de delinear a escultura de ar. À beira de eu estou mim. É para mim que vou. E de mim saio para ver. Ver o quê? ver o que existe. Minh´alma livre procura um canto para se acomodar. Quem sabe, acomodando-se, onde e quando usar a palavra "vale" se mostrem livremente. Durmo o sono dos justos por saber nada saber sobre usar uma palavra no seu lugar devido, quando ela transcende tudo o que foi sentido e pensado, não atrapalha a marcha do grande tempo. Ao contrário, parece que é exigido de mim que seja disso inconsciente, não saiba usar palavra, por meu destino ultrapassar-me. A palavra é o próprio escritor, o próprio caminho, e o trânsito próprio.


Minh´alma abandona o canto para se acomodar. Intransigente e hiperativa não con-sente com limites. Aquele para quem a palavra é nó górdio no peito, deve-se des-aconselhá-la, a fim de que não se lhe torne caminho para o inferno. Dirijo-me ao mar do tempo e empreendo uma viagem profunda pelo ilimitado vale de mim que é um eu, até me aportar nos domínios seguros da memória.


(**RIO DE JANEIRO**, 04 DE SETEMBRO DE 2017)


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