**SIMPLES E SINGELO ESTARRECER** - PINTURA: Graça Fontis/CONTO: Manoel Ferreira Neto


“Let me die in my footsteps
Before I go down the do the ground...”
(Bob Dylan - Let me die in my footsteps)


Os meus cinqüenta anos verifico-os não numa redução paralela e íntima da capacidade de viver, mas na certeza externa dessa redução, simples ou difícil de isto admitir, mas é verdade inconteste, longe de mim negá-la, neglicenciá-la, recusá-la.
Lembra-me a juventude, quando olhava, observava, con-templava os que tinham cinqüenta anos, e era a maioria com quem convivia, íntimos da família e dos amigos, que vem dos livros, romances, crônicas, contos, em que se diz de uma personagem que já era cinqüentão e me deixava surpreso, digamos até estarrecido, simples e singelo estarrecer, e um pouco na dúvida sobre se isso era comigo, se era eu isto, o “isto” o que seria em mim, o mim do “ist” o que seria, porque eu ainda não era nada de estranho, não sentia a estranheza em mim, mas iria senti-la inevitavelmente no futuro, não sabia dizer se iria conseguir expressá-la. A angústia e tristeza se me a-nunci-(a)-riam contundentes, se me não fosse possível a expressão desta estranheza, a expressão de minha vida, a expressão de meu ser que fora feito na continuidade de minhas experiências, desejos de conhecimento, vontades de liberdade, utopias do ser e do ecs-itir, ec-sistir no ser, ser nas contundências e pujanças da vida. O nó górdio estaria instalado na garganta, a bola estaria entalada no peito, e o que eu faria disto difícil seria responder, mais difícil ainda a convivência, pois res-posta alguma teria, alfim.
Se é assim que me sinto hoje, se sinto a estranheza habitando-me o íntimo? Até ad-mito que isto seja verdade, até aceito que esteja isto vivendo e vivenciando, mas que é ela, como é ela e como a encaro já tendo tido tantas experiências em mim, isto é o que desejo profundamente re-fletir nestas linhas, quem sabe me preparando mesmo para o que há-de vir até mais nada, até o nada insofismável, até o fim irreversível e inevitável, até os leitores dizerem que não respondi à minha vida, que tanto esperavam para poderem pensar e refletir sobre os próprios caminhos.
Pergunto-me neste instante, o dia acabando de nascer, acordei de madrugada, pondo-me a escrever estas linhas, e tão circunspecto estive neste tempo que não vi a aurora se a-nunciar, está um tempo nublado, ameaça chover mais tarde, faz friozinho agradável, o que penso e sinto dos cinqüenta, como defino esta idade, o que é isto haver vivido tanto, não esperava mesmo chegar aos quarenta anos. Não é necessariamente definição, é o que sinto bem profundo em mim, é o que consigo interpretar e compreender de todos estes anos vividos, vivenciados, experienciados em todos os níveis desde algumas felicidades inesquecíveis até as dores e sofrimentos passados. Quais foram as felicidades? A descoberta da amizade verdadeira, de todos os sentimentos que ela traz em sua algibeira, e depois o amor profundo e real, que tudo modificou, que deram ambos uma volta por cima e o que estava por debaixo se manifestou de modo real e singelo, e aí pude vislumbrar a travessia que deveria realizar na vida e na ec-sistência. Os cinqüenta é um vestuário que me en-cobre, é um sudário que me ampara e protege acidentalmente o meu ser real e assim nada têm que ver com esse ser e os posso despir como o fato que me veste, pondo-me às claras nu, pele e pelos expostos ao mundo, até às coisas íntimas do sexo e dos instintos, sentindo-me um pouco intrigado com uma catalogação que me não diz respeito e todavia diz. O fôlego que armazenei para isto escrever esgotou-se, acabo de tossir seco, isto devido a haver gasto mais do que armazenei, mas necessitava chegar ao término, não concluir, nada se conclui nesta vida, deixa aberto a outras questões e questionamentos, para assim continuar estas reflexões de meus cinqüenta anos.
E a morte? Dissera inúmeras vezes que me tem acompanhado por todos estes longos anos, e a cada passo dado as dores e angústias são imensas, quando me ponho a pensar sobre ela. Não posso entender isto, pois que não quero ficar para semente, não quero sobreviver à humanidade, ser-me-ia enfadonho e entediante a continuidade sem fim da vida, acabaria que todas as coisas seriam as mesmas, isto me lembrando de algo que diz o filósofo alemão Hegel, mais ou menos nestes dizeres, tudo volta ao ponto de partida, a história sempre se repete não com os mesmos fatos e acontecimentos.
A certeza da morte – diz-nos a sabedoria popular ser a morte a nossa única certeza, ou é a sabedoria vivencial e vivenciária dos limites que diz ao homem a certeza da morte, questionamento capcioso que se perpetuará até à consumação de todos os tempos, sabemos desde que abrimos os olhos no mundo que iremos morrer, a cada passo a morte se apresenta mais e mais, disse uma atriz que ainda deseja viver muitas mortes de si, e também eu o digo – é uma certeza que se obtém pelo cálculo aritmético de uma soma de mais vinte ou mais trinta aos cinqüenta que se tem. Porque setenta ou oitenta é uma idade de velhice sem discussão, inconteste em todos os níveis que se possa imaginar, conceber, é uma idade de olhar os horizontes e uni-versos do mundo, sentir que estarão presentes por sempre, a morte é ecs-clusivamente minha. Como devia eu avaliar os vinte ou trinta que acre-(s)-cento aos cinqüenta já vividos? Para saber o que são, o que significam, devo não avaliá-los para a frente, mas para trás, imitando, creio ser ele, o caranguejo. Percorridos estes vinte ou trinta, vou dar ao que aconteceu não há muito tempo, à imemorial idade dele, mas ontem mesmo... De qualquer forma, caso percorra apenas dez, vou dar ao que aconteceu anteontem, o ontem ficará na conta de minhas ilusões e quimeras, ficará na conta de uma obra que não tive tempo de concluir, ficou in-conclusa, mas alguns sentimentos deixei inscritos nas entrelinhas de minha vida. Foi ontem que formei, que escrevi tal livro, que acabou a ditadura militar. Foi anteontem que despertei para a busca de meu eu, que projetei escrever uma sátira das mais picantes e apimentadas, que a Segunda Grande Guerra terminou.
É a hora do balanço a tudo aquilo a que me dei, a que me entreguei de corpo, alma, espírito e ossos, a que deixei de realizar ou fazer, em que joguei a vida, as cartas que lancei no jogo dos sonhos e dos fracassos, das ilusões e das frustrações. É a hora de verificar com surpresa, analisar com espanto, interpretar com susto, que tudo na vida se corrompe, degenera, decompõe-se, que as idéias, como os homens, são seres vivos com o destino de todo o ser vivo, com infância, juventude, velhice e morte. Saber que aquilo que defendi se perpetuaria, dar-me-ia a ilusão de que me perpetuaria, a imortalidade é em todos os níveis e perspectivas imoral e ridícula. A perpetuidade me era necessária como o pão de cada dia, pedindo a Deus que me não deixe faltar em qualquer momento, debulhando o terço ou numa simples oração noturna, haver sido apenas uma ec-sistência no mundo, o que isso diz, qual o valor disto? Nada. Mas a certeza da falência do que defendi – que é só a fatalidade de tudo o que foi vivo – estende as sombras do futuro ao horizonte do passado.
Entre a noite do que foi e a noite do que há-de ser, entre a quimera do que passou e a quimera do que há-de extasiar, entre a fantasia do que imaginamos e a fantasia do que haveremos de desejar, está a luz tão intensa como inútil da própria vida. A essa luz nos interrogamos sobre a sombra que nos envolve, queremos saber de seu sentido, de sua utilidade, o porquê de sua ec-sistência, o que tem a nos dizer, qual a sua mensagem em nossa vida – a essa luz é mais sombra essa sombra. É ilusório supormos, contudo, que nossa morte pesa sobretudo porque não pesa o que fizemos, que a redução da importância da nossa obra amplia a importância do nosso fim, multiplica o orgulho de nossa morte: toda a vitória é uma vitória à Pirro, tudo aquilo que se realiza, tem o defeito de se não poder já realizar, todo o limite alcançado, o de nos roubar o futuro, o de nos interromper a caminhada rumo ao campo de flores silvestres.
Assim é que é fácil desvalorizarmos o que fizemos, o que projetamos fazer, ou agravarmos a falência no que falhamos, fracassamos, frustramos, escamoteando a fundamental razão do nosso desânimo – a revelação de que nos falhou a própria vida. Mas, inconteste é sob quaisquer prismas ou ângulos que se interpreta ou analise, a morte pesa quando ela se estende ao que fomos, ao que não fomos apesar de todos os desejos de sê-lo – sobretudo se se lhe opõe o que em esperança vão ser os outros. Porque a esperança dos outros chama a si a própria vida para que mais radicalmente nos sintamos negados, negligenciados, subestimados.
A esse respeito, não é criação, não é de imaginação fértil, não a inventei para enfatizar estas palavras, contaram-me, ouvi com toda a atenção que me fora possível; mesmo que sob os sentimentos de espanto, susto, de angústia e medo, queria mesmo assimilar, não que tivesse algum projeto com a história, mas para entender e compreender a realidade da vida, do mundo.
Contaram-me a história de um condenado à morte que tudo agüentou, todo o desespero que sentia no mais íntimo de si por saber que iria morrer – exceto o canto matinal de um galo no instante da execução. Não me explicaram a razão de o galo cantar justamente no momento da realização da condenação. Seria que o galo estivesse fazendo um tributo à vida, dando graças a Deus, por ser um galo e não ser condenado por seus erros e arbitrariedades? Seria que estivesse alegre e feliz por sobreviver ao condenado? Morre-se mais facilmente num clima de epidemia, de revolução, de ditadura – quando a própria vida nos parece submeter-se à morte, quando nenhum galo a a-nuncia na madrugada, que é a hora da esperança absoluta.
Então a fatalidade pesa bem sobre todo o mundo e não parece ter-nos escolhido a nós. Não há a ilusão da “eterna saudade” dos que ficam, porque à evidência eles sabem que não ficam, como o sabem os que partem. Não há a fantasia da “ausência imortal” dos que ficam, o tempo faz tudo ser esquecido, o tempo deixa tudo no passado, há vida a ser vivida. Assim entendo e compreendo que num clima de tragédia o homem se sinta mais perto do homem, mais próximo da humanidade, e a solidariedade, compassividade os una para a entre - ajuda e os exemplos de heroísmo, de dedicação, sejam apenas exemplos banais e vulgares.
Não é que o coração do homem esteja mais limpo, mais puro, mais inocente, mais ingênuo: o que está mais limpo são os olhos, o que está mais puro são os sentimentos, o que está mais inocente são os pensamentos, o que está mais ingênuo são as idéias. Uma sorte comum se ilumina para que nela alfim nos reconheçamos. Fechados no mesmo cerco, des-cobrimo-nos em face do que nos trans-cende, do que nos vai além. Chorando sobre os outros, choramos sobre nós e o exemplo que dermos é afinal a nós que o damos, o heroísmo dissolve-se numa certa fatalidade do dever.
A realidade da vida não passa pela razão para ser verdade: passa apenas por ser razão. E é porque o esquecemos que o movimento às vezes se in-verte. A razão então pretende ser verdade. A razão só pode pretender ser verdade, se a verdade já estava à procura de ser razão. Ó homens exemplares à hora grave do aviso, no começo do entardecer, na poeira que se acumula sobre vós e o que pensastes, na erva que cresce pelo caminho que abandonastes, por que o não acreditais? O alarme da morte é absurdo, não tem significado algum, mas “é infinita a distância que vai da razão lúcida à paz da consciência”.


Aérton Gonçalves Lacerda


(**RIO DE JANEIRO**, 02 DE ABRIL DE 2017)


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