**POR PENSAR MORREU UM BURRO** - PINTURA: Graça Fontis/CONTO: Manoel Ferreira Neto


Segunda-feira de manhã, pouco mais de dez e meia, dia ensolarado, o asfalto já tremia àquela hora, imaginei ao meio dia, ferveria, deparei-me com um espetáculo digno de nota, que determinei de antemão às revezes de começar por ele esta sátira. Agora, porém, neste instante de tomar da pena, receio encontrar nos meus leitores menor gosto que eu para esta coisa interessantíssima, que lhe parecerá vulgar, outras vezes já escrevi outras sátiras mais picantes com o protagonista desta raça sui generis na história da vida e dos homens, e porventura torpe; os gostos não são nem de longe iguais ou semelhantes.
Entre o banco e o leque da Praça Benedito Valadares, impedindo os transeuntes de passarem, ou retornavam e davam volta, ou passavam atrás do leque, estava um burro deitado. Burro deitado em plena segunda-feira de sol escaldante, início de semana útil, na Praça Benedito Valares – não é isto um espetáculo sem precedentes? Confesso jamais ter presenciado. O lugar não era próprio para remanso de burros, fosse no Mercado Municipal, frente ao armazém dos Borges, seria compreensível, donde conclui, ou deduzi, não sei bem que termo utilizar, não estaria deitado, mas caído. Instantes depois (eu ia com Veríssimo Tameirão, um colega de escritório de contabilidade), vimos o burro erguer a cabeça e meio corpo. O infeliz cabeceava, mas tão languidamente, que pareceria estar próximo do fim. Como ele fora parar ali na praça ninguém pôde saber. Dizem que escolheu morrer em praça pública para não ser esquecido por ninguém. Por ser algo tão inusitado, não seria o caso do prefeito mandar erguer um busto de bronze do burro para a apreciação pública, para lembrança eterna dele, de sua morte lá, e também para os verdadeiros escritores terem sempre crônicas para escrever sobre ele?
- Fosse no Mercado Municipal, Veríssimo, os açougueiros já estariam à porta de seus estabelecimentos comerciais afiando a faca, cada um iria pegar um quarto para dependurar, destrinçar, servir aos fregueses inocentes. Carne de cavalo, de cachorro, de gato já é coisa bem vulgar, volta e meia um açougueiro esperto usa dessa alternativa, arroba de boi está custando o olho da cara. Carne de burro seria novidade; um novo prato no menu das famílias, um novo gosto de carne – Veríssimo Tameirão dera uma gargalhada daquelas, olhando-me de soslaio.
- Você não deixa mesmo passar uma sequer, não, Modesto Seco.
Diante do animal havia algum capim espalhado e uma lata com água. Algum comerciante ao redor da praça sentiu-se apiedado com a situação do burro, ou mesmo algum transeunte fez-lhe esta caridade. Não foi abandonado, deixou-lhe ali a última refeição à vista. Não foi pequena ação, foi ação humana, foi ação de quem conhece a sua cara metade. Se o autor dela é homem que já tenha lido alguma de minhas crônicas sobre o burro, jegue, asno, receba de minha poltrona no escritório um aperto de mão. O burro não comeu o capim, nem bebeu da água; conclui que estivesse para outros capins e outras águas que não aqueles à sua frente, deixado por alguém humano e apiedado com a situação de um dos animais mais interessantes do reino, em campos mais largos e eternos.
Alguns curiosos tinham parado ao pé dele. Um deles menino de dez anos, sapato furado no peito do pé, sujo, calça rasgada no joelho, encardida, camisinha encardida, descabelado, olhos negros e profundos, empunhava uma varinha, e se não sentia vontade de dar com ela na anca do burro para espertá-lo, então eu não sei conhecer crianças nesta idade, porque ele não estava do lado do pescoço, mas exatamente do lado da anca. Diga-se a verdade; não o fez – ao menos enquanto eu e Veríssimo Tameirão ali estivemos, que foram por poucos minutos. Se há justiça no mundo, valerão por um século, esta foi a minha descoberta que me pareceu fazer, e aqui deixo recomendada aos especialistas, professores, críticos.
Pareceu-me – e não caiam na gargalhada os meus leitores, a coisa é bem séria, merecedora de reflexões profundas – que o burro fazia exame de consciência. Indiferente aos curiosos, como ao capim e a água, tinha no olhar a expressão dos meditativos, circunspectos; indiferentes ao afazeres daquela manhã de segunda-feira, a tudo que poderia estar acontecendo em toda a cidade, os curiosos tinham a expressão de entretenimento, diversão, um burro deitado na Praça Benedito Valadares é novidade das mais sui generis, espairece todas as preocupações, tristezas, angústias, medos, problemas familiares, existenciais, falta de dinheiro. Era um trabalho interior e profundo do burro, era algo exterior e superficial dos curiosos. Este remoque popular: por pensar morreu um burro mostra que o fenômeno foi mal entendido pelos professores na sala de aula quando vêem o aluno disperso – não pode ser noutro lugar que este remoque nasceu, lugar de pensamento é nas escolas, não importando sejam vulgares ou profundos, assim acredito, e não há quem consiga persuadir de que estou equivocado; o pensamento não é a causa da morte, a morte é que o torna imprescindível. Quanto à matéria do pensamento, não há duvidar que é o exame de consciência. Prometo aos meus leitores que assim que terminar esta sátira farei exame percuciente de minha consciência de que os humanos e os burros são caras-metades. Agora o que me intriga, inclusive fiz um breve comentário com Veríssimo Tameirão, retornando ao escritório de contabilidade, é saber qual foi o exame da consciência daquele burro, é o que presumo haver lido no escasso tempo que ali gastei olhando o burro deitado entre o banco e o leque da Praça Benedito Valadares. Não decifrei palavras escritas, sinais no focinho do burro de palavras, mas idéias íntimas de criatura que não podia exprimi-las verbalmente.
- Não seria o caso, dissera alguém no meio dos curiosos, ligar para o prefeito e pedir que mande o caminhão da prefeitura para retirar o burro daqui. Isto é responsabilidade dele.
- A prefeitura só abre meio-dia – respondeu alguém.
- Deixe-o aí fazendo o seu exame de consciência – disse eu, sério, para não suscitar risos e gargalhadas, atrapalhando o burro nos seus exames de consciência.
É verdade que eu sempre que vou a um velório fico o tempo inteiro pensando como fora o exame de consciência do falecido minutos antes da sua morte. Se assumiu a sua natureza instintiva, pecados capitais, veniais, blasfêmias, canalhices, ambições, invejas, ciúmes, despeitos, orgulhos ridículos... Com efeito, não pensa no que de bom e humano praticou no mundo, na vida. O importante mesmo é pensar nas negatividades, se se arrepender delas, com efeito pesará no momento do Juízo Final. O medo da morte causa frenesis homéricos no homem. E o burro, que é a cara-metade do homem, que exame de consciência faria. Creio seja o contrário dos homens: pensará que não cometeu nenhum pecado, não praticou nenhuma injustiça, não blasfemou, não sentiu inveja, ciúme, despeito dos de sua laia e estirpe. Pensará que puxou sua carroça com dignidade e honra, entregou os fretes no momento exato da exigência do cliente, jamais teve ódio do carroceiro por lhe dar com o chicote nas ancas, nunca o censurou por lhe servir capim de péssima qualidade, nunca matou transeunte num instante de ódio por apanhar, disparando pelas ruas da cidade, quase jogando o carroceiro no chão. Não que ele se preocupe com o paraíso celestial, as boas ações são que o garantem, com o inferno, ainda mais castigado nas chamas por não haver escolhido as más ações no mundo, louvando e glorificando Ferluci, mas por não ter tido qualquer sombra por mínima que fosse de inteligência na vida; assim refletindo, tem a consciência de que existiu no mundo como as suas caras-metades os homens. Nunca me disseram, se o houvessem feito, certamente iria cair na gargalhada, o burro tem o mesmo fim, inferno quando só pratica o mal, paraíso celestial, quando só pratica o bem. Mas, com certeza, para algum lugar irá o burro quando morre. Vagando no espaço dos quadrúpedes é que não é. Ainda estaria no meio de alguns homens que conheço, não é o caso de lhes citar os nomes, não quero denegrir as suas imagens, por uma questão de piedade e humanidade, estaria contribuindo para não haver perdão para as suas burrices. Talvez o lugar dele seja no pico da montanha, olhando os de sua raça, sentindo pena deles, tanto trabalho, sacrifício por toda a vida, e muitas vezes não reconhecidos pelo carroceiro, pelos clientes que necessitaram de seus serviços; rindo dos seres humanos devido às suas condutas ridículas, indecorosas, indecentes, por suas ambições vulgares, nada irá salvar-lhes da morte, se nasceram, vão morrer, não há escapatória.
Veríssimo Tameirão à porta do escritório, iríamos subir uns vinte degraus de escada para estar dentro do escritório, fez um comentário bem interessante, digno de exame de consciência:
- Sabe, Modesto Seco, há quando penso que os burros não deveriam morrer, serem vítimas da morte, enfim o que seriam dos homens sem eles para lhes conscientizar dos instintos. Os homens deveriam morrer porque a razão não lhes proporcionará qualquer senso plausível.
A uma hora da tarde, saindo do escritório para ir almoçar, encontrei o burro morto na Praça Benedito Valadares. O número de curiosos aumentou, burburinhos por todos os lados. Quando retornei do almoço, às três da tarde, o calor havia aumentado ilimitadamente, o caminhão da prefeitura apareceu para tirar o burro daquele lugar. Retirado, tudo voltou ao normal.


(**RIO DE JANEIRO**, 31 DE MARÇO DE 2017)


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