**PINGENTES LONGOS DE CRISTAL** - PINTURA: Graça Fontis/PROSA POÉTICA: Manoel Ferreira Neto
Epígrafe:
"A perfídia nasce da solidão e a solidão nasce da
volúpia"(Manoel Ferreira Neto)
Ah, se enquanto perdurasse junto ao coração o sentimento de fomes
milenares, sedes seculares, pudesse-me medir sem infelicidade com o eterno... O
que com estas palavras lamento não caia na água, o som de sua queda, e este
remeta-me súbito às sensações serenas, voluptuosas.
Volúpia para os corações livres, libertos, a inocência e a liberdade, o
jardim das delícias na terra, o trans-bordante agradecimento de todo futuro ao
presente. Adocicado veneno somente para o fraco, mas o grande cordial e o vinho
dos vinhos, religiosamente poupado, para as vontades leoninas.
Ah, pudesse olhar-me ao espelho, e vendo como que refletida a minha
imagem, igualando-me ao homem, a imagem do homem tem calvície, fios de cabelo
na cabeça, testa larga, sobrancelhas grisalhas, olhos, ao contrário da gruta em
que imaginariamente estou, olhando os pingentes longos de cristal.
Pudesse saber com lucidez o que estou clamando tão intensamente,
segurando as lágrimas que se reúnem aos poucos no interior, não querendo
derramá-las todas límpidas, umedecendo a pele do rosto da poeira e sol a que
está exposto sempre.
Ao longe, ao longe, olhos meus. Quanto futuro desta pequena lagoa em
cuja água armazenada a cada segundo nela cai pingos d´água dos pingentes longos
de cristal. E por cima de mim... que silêncio risonho! Que silêncio sem nuvens,
sem estrelas. Por cima, pedras.
Ria-se aqui nesta gruta imaginária, ria-se luminosa e saudável
perspicácia minha! Atire das altas serras o seu cintilante riso de galhofa!
Atraia destes pingentes a vivacidade dos pingos!
Trespasse, arranque este coração com esta vivacidade, vida dos pingos
que caem n´água, emitindo o seu som súbito, quem sabe de alegria por ser na
pequena lagoa o seu fim último. Para que este nó górdio no peito a estreitar os
sentimentos que se revelam aos pedaços? Que olho ainda nos pingentes, cansado
de vestígios de sofrimentos antigos que definem as fomes e sedes trago-as
dentro e toda a vida está sendo o desejo de as saciar mesmo que por ínfimo
espaço de tempo. Com os olhos astuciosos de fulgores, reflexo nítido da beleza
da natureza que desde tempos seculares aqui se mostra nítido e límpido, o
sem-fim da visão dentro da retina.
Seria caso de me indagar o motivo de haver considerado o pingo d´água, a
união de todos, a ideia, desconhecendo os muitos que caem ao seu tempo e neste
intervalo a melodia deles ao tocar a água atravessa-me a água e faz o coração
palpitar numa sensação inexprimível em letras, o eco que se estabelece com o
som de todos os pingos, nada havendo qualquer na gruta imaginária em que me
encontro, olhando os pingentes longos de cristal? Não o sei.
Interessa-me estar olhando extasiado, entregando-lhes a vida.
Se é húmus para o amor assistir aos pingos d´água surgirem nos pingentes
num contínuo nítido, vendo-os cair na água, choro a perda dos que deixei de os
assistir antes, e só agora me veio a ideia de refugiar-me imaginariamente numa
gruta, vestígio de lembranças e recordações de quando e onde nunca estive, não
importa dizer o seu nome, quem a visitou, e foram milhares, vindos de todas as
terras e lugarejos. E ainda que a minha torrente de amor se despenhe em terreno
impérvio! Como poderia uma torrente não encontrar, por fim, o caminho do mar?
Não perco a esperança de poder ouvir a canção feita com estes pingos;
não perco a esperança enquanto ainda não vem o entardecer, não podendo estar
aqui por muito tempo mais, enfim é imaginário o que venho tentando sentir no
espírito. Os montes rochosos de formas singulares, os vinhedos e olivais e os
prados são maravilhosos de se andar neles ao final da tarde, princípio da
noite.
Saboreio a alegria da vida, e ainda me falta fazer as mãos em concha,
tirando a água da lagoa, até me saciar a sede milenar e secular em mim trago,
beber mais profundamente dos anos vividos e os muitos que há de viver,
eternamente.
Ouço som de algumas águas de pingentes haverem caído de súbito, quem
sabe o tumultuante fluxo de muitas águas. As águas que tive em mãos feita
conchas, bebi-as, e sedento de as haver sentido no paladar, deixando vestígios
de seus sabores, sinto-o diante de exuberante florescência. Prossigo adiante no
ouvir os pingos na água como os dedos nas teclas executam a sinfonia dos
pingentes longos de cristal, uma queixa melancólica contra a dureza do destino,
um protesto rouco contra as coisas do modo como elas são.
Tempo inestimável ardi em anseios, olhando ao longe. Tempo demais
pertenci à solidão, a solidão pertenceu-me; destarte, desaprendi o silêncio.
Alegro-me quando vejo o reflexo prateado da água de uma fonte, pois a
garganta está seca, os lábios crestados, e sou muito fatigado. Conceda-me a
vida sempre mergulhar os lábios na água para um único gole, dançar serenamente
na água transparente, ressurgindo-me num riso insensato dotado de esplendor
próprio dos deuses mortais.
Oh, desejo de os olhos serem pequenos lagos sombreados de um regato nas
grutas, pequenos traços de luz aqui e acolá.
Resta-me pouco tempo para ficar nesta gruta imaginária que nela resolvi
estar por algum tempo, o suficiente para acolher o seu esplendor e vida,
pingentes longos de cristal, pingos que caem num lagoa.
As sombras da tarde alongam-se e o vento brando da noite, insinuando-se
entre as árvores, move a superfície quieta de um lago. Ouve-se nítido um
sussurro prolongado como um suspiro, o sussurro vem dos juncos que se inclinam
ligeiramente ao vento que passa entre eles, habitantes das margens de lagos e
rios ermos.
Não sinto medo algum enquanto o raio do sol ilumine os caminhos por onde
vou deixando as marcas no solo, os pássaros cantem exultantes. Cuido já não ser
a doce melodia dos pingos d´água na lagoa advindo dos pingentes longos de
cristal.
Sussurros que se levantam das folhas secas à passagem da aragem, passos
de alguém que segue o seu destino de volta à sua residência, caminhando no
silêncio da serra, rumores de sons indistinguíveis revelando a vida palpitando,
a invisível entidade movimenta-se na floresta no meio do silêncio.
Com as mãos em concha, tomo um gole de água do rio, gole que espero dele
renascer, vivendo “para sempre livre de cuidados e dores”. Outro sabor
diferente de outros antes tomados na gruta.
Sento-me à mesa da cozinha, de imediato ao mergulho na gruta de
pingentes longos de cristal, sonhando poder descrevê-la com perspicácia e
nitidez a experiência de quarenta séculos, dois mil anos, portanto, antes de
Cristo, o mesmo tempo que esta gruta tem de idade.
(**RIO DE JANEIRO**, 05 DE ABRIL DE 2017)
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