**O MESMO PAU QUE DÁ EM M-ANO/DÁ EM CAET-ANO** - PINTURA: Graça Fontis/CONTO: Manoel Ferreira Neto


Bons dias!


Quem haveria de não re-conhecer que sou homem criado dentro de todas as cláusulas, normas e regras da finesse, educação, não tendo chegado a ser um gentleman, mas nos princípios de nossa brasilidade um cavalheiro de boa estirpe, salvo alguns deslizes já que sou avesso ao absoluto de todas as coisas, prefiro conservar o ser humano que sou. Podia entrar na Câmara Municipal, chapéu de coco à banda, e ir logo dizendo o que pensava dos políticos, da administração pública, como se falasse de algo simples, uma conversa com alguém em qualquer lugar, educadamente, sem palavras eruditas, metáforas, sem ser agressivo, in-conseqüente, e já que a comunidade relegou o termo "inconsequente", adoptando o "des-consequente", que melhor diz sobre certas atitudes dos políticos, deixe-me de imediato afirmar que o meu é "in-consequente"; depois ia-me embora, sério, tranqüilo, sentindo-me leve, para voltar na outra semana, dizendo outras coisas sobre o que passou nesse ínterim de sete dias consecutivos, tempo suficiente para acontecerem coisas do arco da velha no métier político, dizendo de novo com toda a finesse que me é peculiar. Mas, não senhor; chego ao saguão, e o meu primeiro cuidado é dar boa tarde a todos os funcionários, apertar-lhes as mãos, perguntar-lhes como vai a vida, confesso que a língua esteve quase a indagar se havia alguma coisa podre no reino da Dinamarca, não o fiz, talvez ninguém soubesse, enfim a Dinamarca está muito longe daqui. Responderam que tudo estava muito bem, se melhorasse, pioraria. Agora, se os leitores não me disserem a mesma coisa, em resposta, ao meu cumprimento “bons dias, leitores”, nesta manhã, após chuvinha fina durante toda a madrugada, manhã de neblina nas montanhas, é porque é um grande malcriado, um grosseirão de borla e capelo; ficando, todavia, claro que há leitores e leitores, e que eu, explicando-me com tão nobre franqueza, não me refiro aos leitores assíduos de minha obra, que estão agora com esta página na mão, lendo este início, mas ao seu vizinho. Ora bem! Há-de se cuidar bem, quando se dirige ao leitor, sensível que é, pode se insatisfazer comigo, rasgar-me os verbos, jogar minha obra no caixote de lixo, não lendo sequer mais uma linha, passando por mim nas ruas e avenidas, não me cumprimentando. Au revoir, carreira jornalística ou literária! Sou bem cuidadoso com eles, com os amigos, fundamentando no carinho, amor, reconhecimentos e considerações que nutro por eles, o que não faço com os homens em geral, quanto mais quando não aprovo as suas atitudes gratuitas.
Feito esse cumprimento, nesta manhã de neblina transparente, que não é do estilo, mas é franco e honesto, declaro que não apresento para o que venho, de que vou tratar nestas linhas. Depois de um recente discurso feito pela autoridade máxima do município a respeito do desvio de uma quantia volumosa dos cofres públicos, cem mil reais, acho perigoso que uma pessoa como eu diga claramente as suas intenções; o melhor é dizer em silêncio. Nisto pareço-me, mister ressaltar com dignidade, pareço-me com o delegado (sempre é bom parecer-se a gente com delegados, em alguma coisa, só dizem ou agem de acordo quando têm provas reais e verdadeiras, dá certa dignidade, e faz lembrar um sujeito preto, olhos brilhantes, parecidíssimo com Ferluci no imaginário dos cristãos, até dos evangélicos, crentes, que há cerca de cinco anos ia a todos os plenários da Câmara Municipal; os adeptos da administração pública levavam a olhar para um e para outro, e a elogiar os parlamentares, e ele teso, grave, movendo a cabeça à maneira de um Juiz. São gostos de Pitibiriba. O delegado de Pitibiriba tem feito tudo sem estratégias políticas; a única orelha que o ouviu foi a do finado agente Pereira que o aconselhou não mandar uma diligência à igreja de Nossa Senhora da Conceição prender o padre Molart por pedofilia, esperasse mandato de prisão do Juiz. Ouviu, mas insatisfeito. Sabia da morosidade da justiça, ainda mais do juiz Alonso, que tinha muitos e vários rabos presos. A pedofilia continuaria à solta naquela cidadezinha de 45 mil habitantes. Só Deus podia saber quando o juiz Alonso iria expedir o mandato de prisão ao padre pedófilo. Dizem, não sei afirmar com conhecimentos sólidos, que as leis entre a Igreja e o Estado são rigorosíssimas, foram separar os dois o resultado só poderia ser este.
Deus fez programa, é verdade (“E Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança, para que presida”, etc. Gênesis, 1, 26); mas é preciso ler esse programa com muita cautela, acuidade. Rigorosamente, era um modo de persuadir ao homem a alta linhagem de seu nariz. Sem aquele texto, de importância capital na história da humanidade, jamais o homem atribuiria ao Criador, nem a sua gaforinha, nem a sua fraude. É certo, não há duvidar do contrário, só mentes desvirtuadas, depravadas, o faria, que a fraude, e, a rigor, a gaforinha são obras do velho Ferluci, segundo as melhores interpretações e análises, renomes consagrados na história da teologia em todo o mundo; mas não é menos certo que essa opinião é só dos homens bons; os maus crêem-se filhos do céu – tudo devido ao versículo da Escritura Sagrada.
Portanto, bico calado no que tange ao desvio dos cem mil reais dos cofres públicos de nossa comunidade. Não quero, em hipótese alguma, sofrer a conseqüência que a autoridade máxima do município prometeu: se a imprensa ousasse escrever única palavra a esse respeito nos tablóides a conseqüência seria o recolhimento da edição, uma multa altíssima, e conforme o teor da matéria o tablóide seria proibido de circular pelo resto da eternidade. Disto, de meu jornalzinho, é que sustento a família, tomo a minha cerveja, pago as minhas dívidas. Não o farei, embora eu conteste em silêncio, isto seja desrespeito ao direito de expressão, à liberdade de imprensa. Soube de fontes fidedignas que este desvio inda não fora esclarecido, está sendo investigado. Se nada digo, por enquanto, é que não foi esclarecido, e o meu jornalzinho tem um princípio inalienável, só diz as coisas com todas as letras, se a verdade é inconteste, odeio sensacionalismo, e a imprensa de nossa modernidade transcendeu os limites do sensacionalismo; esclarecido que seja, abrirei os verbos todos. Cá virei, leitores, uma vez por semana, com o meu chapéu de coco na mão, e os bons dias na boca, cumprimentando-lhes a todos. Se lhes disser desde já, que não tenho papas na língua, o que sabem de antemão às revezes, não me tomem por homem e diretor despachados, que vem dizer coisas amargas aos outros, mazelas das autoridades municipais, em todos os níveis ou setores, picuinhas das personalidades, cafajestices dos indivíduos e cidadãos comuns, enfim uma comunidade é composta de todos eles. Não, senhores; não tenho papa na língua, orgulho-me disto, e é para vir a tê-las que fundei este Gazeta Pitibiribense. Se as tivesse, engolia-as a todas e assunto encerrado. Mas aqui está o que é: sou um pobre diretor de jornal, não sou jornalista, não recebi nenhum canudo de universidade em jornalismo, que, cansado de ver que a imprensa nunca registra em suas páginas a história, imperam os sensacionalismos de toda ordem, interesses e ideologias os mais variados, conforme as linhas editoriais, os rabos presos, descri do ofício, mas se for radical fechando a redação como é que vou sustentar a família, educar os filhos, pagar as contas, beber a minha cerveja. A única explicação cabível das matérias dos jornais estarem longe, bem longe, da verdade histórica, é serem todos os editores da mesma laia e estirpe, sem discrepância, muda-se apenas a linguagem e estilo deles; desde que discrepam, fica-se sem saber nada, quem vai ser capaz de distinguir os alhos dos bugalhos, o trigo do joio, porque tão certo pode ser a opinião de Serafim Justino, ou melhor, da Folha de Notícias, a opinião de Frederico Dumont, ou melhor, Pitibiriba em Foco.
Um exemplo. O Partido dos Trabalhadores, segundo li na Folha de Notícias, estava inteiro encasacado e pronto para uma reunião, cujo tema era o que fazer com a verba recebida para o conserto da rede de esgoto de Pitibiriba, se devolvia ao deputado que a conseguiu, já que a gestão daquela administração estava no final, não daria tempo para a efetivar a rigor e critério, ou se a usaria para obra menos relevante, por exemplo consertar as calcadas todas da cidade, estão na hora da morte, com o relógio na mão, a hora pingava, tinha de estar na reunião à hora marcada. Faltavam a todos só o chapéu de coco, que seria o chapéu Marinho, ou o chapéu Bill (ambos da chapelaria Levindo); era só pô-lo na cabeça, e sair. Nisto passa o caminhão de lixo da Prefeitura, e os políticos descobrem que ou o relógio deles estava adiantado, o horário do caminhão passar era cinco e quinze, estava adiantado, ou o da Prefeitura estava atrasado. Quem os poria de acordo? Chegariam atrasados para o plenário ou chegariam adiantados. O importante era ir. Se adiantados, contariam piadas de salão no âmbito da política, enquanto a sessão não fosse aberta; se atrasados, pediriam desculpas ao presidente. Mas o tablóide ficou na produção dos políticos para o evento, nada disse sobre o que decidiram na reunião.
Foi por essas e outras que descri do ofício de diretor de tablóide: como é que eu iria cobrir a reunião para resolver se devolveriam a verba ao deputado, se a aproveitavam para outras obras, desde o instante de se produzirem a rigor, terno, gravata, camisa branca bem engomada, lavadíssima, sapatos pretos bem engraxados, barbas bem escanhoadas, até a hora da reunião e da decisão. Matérias em jornais devem seguir a risca tudo que antecede e tudo que acontece no momento, a integridade jornalística é imprescindível. Na alternativa de ir à fava ou ser escritor, preferi o segundo alvitre; é mais fácil e vexa menos, não tenho compromisso com a veracidade dos fatos, só com a verossimilhança, assim mesmo a minha verossimilhança pode ser bem diferente da verossimilhança oficial. Verossimilhança é o que eu chamar de verossimilhança. E os leitores se divertem mais, podem alçar vôos homéricos por todas as dimensões da vida, do horizonte e do uni-verso. Aqui me terão escrevendo o meu Bons dias, com certeza até que as ideologias e interesses da modernidade sejam extintos vez por todas, imperem os desejos de uma história digna e real, o que quer dizer que não voltarei mais a ser jornalista nestas páginas. A linha editorial é outra, bem outra, será literária.
Sei que os leitores devem estar ad-mirados, de certo modo tristes, porque, enfim, nestes poucos anos de circulação, Gazeta Pitibiribense tem seguido à risca os seus princípios, isto é, ser fidedigno com as informações, o importante é formar consciência da comunidade, e não apenas opinião. Jamais alguém disse de sensacionalismo em minhas páginas. Ano passado Gazeta Pitibiribense foi convidado a receber medalha de Honra ao Mérito, mas recusei por isto nada ter a ver com a minha vida, o que sempre me interessou foi a sinceridade e seriedade jornalística, enfim a comunidade merece saber de tudo com dignidade. E, agora, digo aos leitores que estou fora da imprensa, Gazeta Pitibiribense fecha as suas portas, agora é Crônicas Pitibiribenses.
Não se preocupem, leitores, com a linguagem e estilo que, nas crônicas, são diferentes. Felizmente, sou bem dotado de letras, sei lidar com elas para todas as necessidades que advierem. Sei que irão apreciar bem, pois que no jornal fui obrigado a deixar de lado a ironia, sarcasmo, cinismo, que me são peculiares na vida quotidiana, reunindo todos num saco de aniagem com facilidade atinjo o âmbito da sátira com engenhosidade, e isto irá fazer rir os leitores a bandeira solta, e todos se sentirão muito bem, terão matérias suficientes para aprenderem a satirizar a nossa modernidade em todos os âmbitos, e a vida lhes será mais alegre, feliz, contente. Talvez o que aqui fica, como editorial desta primeira edição, saia bem curtinho depois de impresso. Como não tenho hábitos de cronista, não posso calcular entre a letra de mão, manuscrito, e a letra de forma, e toda a edição estará voltada à publicação de crônicas de alguns amigos. Se aqui estivesse o meu amigo Fulano (não declino o seu nome, para que cada um tome para si esta lembrança delicada, a consideração e o respeito que nutro por ele, um verdadeiro cronista, como se diz no meio vulgar, “cronista de mão cheia”), diria logo que ele só pode calcular com letras de ações vencidas – trocadilho que fede como Ferluci. Já falei duas vezes nele em tão poucas linhas.


Bons dias, leitores!


Aérton Gonçalves Lacerda


(**RIO DE JANEIRO**, 30 DE MARÇO DE 2017)


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