**DE COMO COMER BANANAS DIMINUE AS MUITAS ESTRADAS QUE LEVAM AO PARAÍSO CELESTIAL** - PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto
Leandro Costelis, o melhor coração do mundo e um
caráter sem qualquer indício de mácula, mesmo nos pré-fundíssimos interstícios
da alma; mas as qualidades do espírito, inevitavelmente, destroem as outras.
Vive principalmente de imagens, tem um faro daqueles para criá-las, há-de se
invejar-lhe quem delas necessita, de frases translatas. As “línguas de trapo” e
outras expressões, surradas como colchões daquele bordel próximo à cadeia
pública, são os seus grandes encantos, chega a estalar a língua com a pronúncia,
os olhos revirarem-se.
Conheci-o desde que chegou do município de João
Pinheiro, com vinte e quatro ou vinte e cinco anos de idade; e podem crer no
que aqui estou dizendo: era então o que foi aos cinqüenta e dois. Aos trinta
lera alguns clássicos da literatura francesa e italiana, pegou de paixão por
Dante e Flaubert, vivera muito; mas toda aquela pujança de espírito, todo esse
raro temperamento literário que lhe admirávamos, murchou, as folhas
amarelaram-se, caíram, desde que num bilhete de loteria encontrado por acaso na
rua, ganhara uma bolada daquelas que lhe dera a oportunidade de comprar uma
farmácia, e com ela ao longo de dez anos fora enriquecendo-se, abrindo lojas de
roupas prontas, um açougue. Não fazia outra coisa senão somar as notas, tinha os
seus empregados. Era a mesma torrente de idéias, a mesma fulguração de imagens.
Dizia-se grande crítico literário, sabia de cabo a rabo os princípios da boa
obra, a beleza, a estética, idéias, etc., etc., tudo dentro de seus interesses
e ideologias chinfrins e idiotas, conservador, colecionador de princípios há
muito caídos do galho, coisas que os macacos da época de Darwin estremeciam. Há
algumas semanas, em escrito que viu a luz num tablóide, de imediato, com os
seus conhecimentos de literatura tachou o autor de “imbecilóide”, deveria ele,
ao invés de escrever tantas mediocridades, estar à porta da igreja recebendo
dos fiéis as moedinhas para o seu prato-feito nalgum botequim da praça do
Mercado Velho, definiu a alma do rapaz com esta espécie de heroísmo próprio
àqueles cuja cabeça é vazia de qualquer indício de côdea de miolos, só sabem
somar as notas de seus estabelecimentos comerciais – chamou-lhe um “saco de
desatino”. Chegara a enviar um ofício ao editor-chefe do tablóide, dizendo-lhe
que se voltasse a publicar qualquer linha do “saco de desatino” compraria a
edição e a incineraria em praça pública. Tudo porque o rapaz em verdade
parafraseara de um verso de música o seguinte: “minha mula está doente, o meu
macaco é profeta”, que Leandro Costelis entendeu como sendo um acinte aos bons
princípios da moral e ética conservadoras.
Pouca gente via Leandro Costelis sair de casa,
senão na hora de ir aos seus estabelecimentos comerciais apanhar o dinheiro das
vendas, noutras em horas impróprias. Era nas horas de lua cheia que o solitário
deixava a residência para ir passear nos arreadores. Esqueceu-me, leitor, dizer
que tinha em casa um animal de grande estimação, tratado a pão-de-ló, era um
macaco que trouxe de uma viagem feita ao sul do país, um chipanzé. Nestes
passeios aos arredores levava o macaco consigo, de mãos dadas, qualzinho casal
de namorados apaixonados, que acudia pelo nome de Nero. O macaco e Leandro
Costelis, Leandro Costelis e o macaco eram dois amigos inseparáveis, dentro e
fora de casa, na lua cheia.
Mil versões corriam a respeito deste misterioso
solitário que só saia para apanhar o dinheiro nos estabelecimentos, que só
sabia da existência do dinheiro, que tinha o hábito das imagens, das frases
translatas, que passeava com Nero na lua cheia. Uma das versões era que só o
macaco entendia os seus princípios morais e éticos, as suas idéias do tempo do
onça. Outra que era um louco, Nero era a Madame Bovary de sua vida. Esta era a
amizade que ele parecia votar ao macaco e o horror com que fugia ao olhar dos
homens, aquilo de “só tem dinheiro, usa frases translatas para justificar sua
cabeça vazia de tudo, só o macaco é capaz de compreender a sua moral e ética do
tempo da pedra lascada”. Desde que me entendo por gente sempre ouvi as pessoas
dizerem que quando a gente se aborrece dos homens toma sempre a afeição dos
animais – gato, cachorro são os comuns, eu jamais ouvira dizer de um macaco ser
o bicho de estimação de alguém, era de Leandro Costelis -, que têm a vantagem
de não discorrer, nem intrigar. Se disser que Emma Bovary estava nos seus
direitos inalienáveis de adúltera, o marido é que era frouxo, o macaco não vai
discordar dele, vai-lhe mostrar os dentes em sinal de aprovação.
Candidatou-se a prefeito numa eleição. Gastou de
seu próprio bolso uma fortuna inestimável com a campanha. Fora um festival de
frases translatas os seus comícios, que encantou o povão, o solitário era de
uma inteligência sem precedentes, este sim iria tirar o município da miséria
cultural. Não sabendo o povo que iria contribuir ainda mais com ela. Hippies
são símbolo de cultura, de arte, com os seus trabalhos artesanais. Proibiu os
hippies de venderem seus artesanatos. Só muito dificilmente havia alguma
apresentação de peças teatrais no município. Proibiu as manifestações. Acabou
com um grupo de teatro que era patrocinado pelos empresários. Todas e quaisquer
manifestações culturais foram proibidas por ele. As artes são “frutas do diabo”
– mais uma de suas expressões – para os bons princípios da moral e da ética.
De quando em vez fazia os seus discursos na câmara.
Discursos que encantavam todos por sua erudição, por sua clareza de idéias, de
princípios, de linguagem e estilo. Quem os escrevia. Não havia duvidar não ser
ele quem o fazia. Não tinha condições para isso. Ninguém na prefeitura tinha
condições. Diziam as línguas de trapo ser o macaco, e eram obviamente
ridicularizados, por mais inteligente que seja o macaco, não lhe fora doado o
talento da escrita. Mas quem, então? Ninguém sabia dizer. Outros diziam que
naqueles passeios na lua cheia estava o esclarecimento de seus discursos.
Houve quem visse um dia de manhã abrir-se a porta –
isto no início de sua administração pública -, sair o macaco e voltar pouco
depois com um envelope pardo, contendo algumas folhas de papel. O tropeiro que
presenciara esta cena quis descobrir onde ia o macaco buscar aquele embrulho
que levava sem dúvida o discurso que faria na câmara dos vereadores. Tempo
depois, ao crepúsculo, por volta das cinco e meia da tarde, abriu-se a porta, o
macaco saíra. Dirigiu-se ao matagal do rio Santa Maria. Dirigiu-se ao tronco de
uma árvore. Havia sobre esse tronco um grande galho, que o macaco atirou ao
chão. Depois, introduzindo as mãos no interior do velho tronco, tirou o
envelope pardo igualzinho ao da vez passada, e voltou para casa. O tropeiro
persignou-se, de tão apreendido ficou com a cena que acabava de presenciar que
não a contou a ninguém. Se dissesse o que vira, como iria se explicar que o
macaco jogou o galho da árvore no chão, enfiou a mão no tronco, tirou o
envelope? Como este envelope fora parar lá? Quem o escrevera? Teria Leandro
Costelis feito um pacto com o diabo, e em troca o diabo escrevia-lhe os
discursos, deixando-lhes na árvore? No mínimo, seria o tropeiro tachado de
louco.
Quem acreditaria na história de este envelope haver
infernizado em tudo a vida de Leandro Costelis, falas e mais falas vieram à luz
do dia, lendas e mitos foram criados, a imaginação popular é riquíssima, e
ainda com uma das verdades sui generis que ostenta: "O povo inventa, mas
não mente". Leandro Costelis, já sem poder dizer qualquer coisa em sua
defesa, não se falava outra coisa naquele município, não frequentava mais a
igreja, presença assídua na missa das sete horas da noite na Catedral
Metropolitana, debulhando o terço de joelho durante a missa, pedindo a Deus a
dádiva do paraíso celestial, ele que tinha compulsão por somar cédulas de
dinheiro, não ia a eventos sociais de sua responsabilidade, só ficava dentro da
prefeitura em seu gabinete, dividindo com o macaco a sua alimentação predileta,
comendo bananas num estado de nervo sem limites e fronteiras, brigando com os
funcionários por nada. De vez em quando, lia o que continha nas folhas escritas
que retirou do envelope. Era um tratado dos mais sutis: de como comer banana
diminui as muitas estradas que levam ao paraíso celestial; se acompanhado de um
macaco não haveria galhos de árvores frondosas não pudessem ambos visualizar as
libidinagens das almas penadas na lua cheia. Uma das cláusulas diziam ser
necessário, se casado, por o macaco para dormir no meio dele e da esposa. Quê
romântico! A mulher aceitou porque contestar Leandro Costelis era arriscado, o
homem andava quebrando copos nas briguetas do casal, poderia quebrar a casa
inteira, se não aceitasse o macaco no leito conjugal.
Seguindo à risca aquele tratado - verdade é que
jamais souberam quem o escrevera - por alguns meses, meses que o levariam à
bancarrota na administração pública, não se cuidasse, tudo desmoronava a olhos
nus, saíra da prefeitura de mãos dadas com o macaco, com a pastinha abarrotada
de bananas, comendo banana. Ninguém mais soube notícias de Leandro Costelis.
Deixou o tratado sobre a sua mesa no gabinete, que foi lido por todos os
funcionários, passava de mão em mão. Opinião unânime: "Isto é coisa do
diabo."
Lembrado por sempre, nos comentários populares,
como "Prefeito comedor de bananas".
(**RIO DE JANEIRO**,03 DE ABRIL DE 2017)
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