**FOLHAGEM DE SAMAMBAIA** - PINTURA: Graça Fontis/CONTO: Manoel Ferreira Neto


Não sou homem de assoalhar as confidências, muito que o faça é satisfazer o desejo de uma autocrítica, bem apimentada, com ares até de sentir prazer em sofrer com a ardência, talvez até desejando assumir a condição de um sádico, mormente as mais íntimas, as que, se tocadas, se abrirão todas, e, com certeza, não é fácil de estar diante delas, as feridas.
Após alguns segundos, vou abrir a boca para uma confidência das mais difíceis de imaginar, não diria por vergonha, não diria, não é algo que suscite ter vergonha dele, a vergonha se revela por ser algo ridículo, daqueles que não há outra condição senão olhar alguma folhagem à vista, caso não seja folhagem, de que me valeria para afastar o olhar para algum lugar, procurar jeito de sair quase às escondidas, num passo de mágica, não haveria quem não risse de mim. Fitaria os olhos em ontem, assim desejo me expressar, se não entendido o suficiente, algumas poucas palavras podem definir e conceituar, bem até, ou seja, estendendo o olhar ao longe, haveria as montanhas a que olhar, o que seria divino. Olhar a montanha e sentir que se encontra lá em cima é mais ridículo do que senti-la de por baixo dos pés, terra adentro; a divinidade está em olhá-la e sentir que estou lá em cima, no topo, no cume dela, de braços abertos a todos os horizontes, ao infinito, à eternitude.
Estou tão acostumado a deparar-me todas as manhãs, aquando me levanto com esta dor que me corrói por inteiro, e nunca emito uma única palavra, não por vergonha, já o disse, mas ainda não disse por ser algo muitíssimo merecedor de julgamentos os mais cruciais, ainda assim não seria bem julgado, não me sentiria em absoluto culpado de grande estapafúrdia, de enorme contra-senso, de atitude tão intragável. Nada disso. Não poderia esquecer-me disto, seria injustificável: a dor é tanta que não sai por inteira na palavra, a dor é imensa, não se é fácil viver com sentimento tão real, a realidade evidente, sendo mais claro, e específico, fora esta a razão que me trouxe à mesa da cozinha, a fim de dedicar algumas reflexões acerca dela, reflexões que me indiquem não uma solução, acredito não será de todo resolvido em mim, disto tenho consciência, e talvez por isto tenha aprendido a conviver com ela, tenha superado e muito, mas nunca resolvida, haverá sempre oportunidade e possibilidade de estar frente a ela, sem lenço, sem documento, como se tem costume de dizer, aquando se quer expressar que não há como fugir, sublimar, escapar... Não assumir isto é não assumir a vida, e toda ela está sendo dedicada a buscar um modo de doer menos em mim.
A julgar por tais palavras, pensa-se que me encontro angustiado, deprimido, e isto é verdade, pois que o calor está intolerável, só não me deitei no chão pela madrugada, de ladrilhos, por a esposa não haver permitido de modo algum, não estava pensando em pegar uma gripe daquelas... A época mais difícil de conviver com ela é a do verão, não suporto, ferve tudo lá dentro, com toda a certeza a fumaça começa a sair por todos os poros, por onde houver uma possibilidade de fazê-lo. Angustio-me, deprimo-me. Embora seja verdade que durante todo o verão fico deprimido, angustiado, mas a verdade aqui não é esta, não seria capaz de mentir, tendo a verdade na mão, o que seria bem uma estupidez de minha parte, tinha tudo para transformar o estado de espírito, e não dei o mínimo valor, a mínima atenção.
Contanto o que se passa comigo, tenho o ensejo de me fazer saber que há reconhecimento de valores, apesar das gafes, ridículos, pitis, sem necessidade alguma, teria tirado muito mais lucro, o que dentro trago não doeria tanto, se não houvesse me envolvido, se não houvesse criado a situação. Não houvesse possibilidade de reconhecer alguns valores indiscutíveis em mim, estaria numa situação bem pior, saberia não ter possibilidade alguma de superar, vencer, o máximo que podia fazer seria assumir a minha condição.
Por que haveria de pensar isto tratar de uma consolação durante esta angústia, esta depressão, esta agonia sem limites e fronteiras? Se tenho a verdade em mãos, por que haveria de mentir, em nome de quê, de quem? Não tenho motivos para isto. Significa isto que não tenho valores, os que assumo são sem sombra de dúvida máscaras, frente a um espelho passaria o resto da eternidade tirando-as, à procura de meu rosto, perdeu-se por inteiro – na adolescência assisti a um filme, o protagonista passou toda a película tirando suas máscaras, não tinham fim, e, no final, morreu afogado, a canoa em que fugia virou-se. Se não me falha a memória, o protagonista era Tony Curtis. A alma humana é capaz de muitos esforços, até o de ter consciência de suas próprias dores, assim o penso, assim o sinto, seria infidelidade se não o fizesse.
Doloroso é assumir as coisas da alma, torna-se mais fácil de elas armarem todas as carreiras possíveis, sem olhar para trás, mas isto não me leva a lugar algum, necessito de meus resultados, de minhas respostas, obtenho-as se sou sincero e sério com o que dentro trago em mim. Um olhar de lince é perfeitamente capaz de adivinhar o que tanto dói em mim, os amigos, conhecidos não necessitariam de tanto esforço para saber de que se trata, é visível, bastante visível... Sou avesso em absoluto a expor as minhas coisas íntimas nos salões e mercados literários, há coisas que se vivem, não se dizem, mas podem bem ser insinuadas, o importante é que saiba de que se trata, tenha consciência desta dor, sinto-me mais tranqüilo.
Estou prestes a imprimir-me nas folhagens públicas. Solto um enorme suspiro, que, se tivesse asas, ainda agora estaria voando. Tal foi a sensação que me perpassou a alma, aquando terminei de registrar as palavras: “Estou prestes a imprimir-me nas folhagens públicas”. Não entendo os gestos, o suspiro, a palidez, todo o efeito misterioso de algo dito a plenos pulmões.
Não durmo antes das onze horas. Faço uma coisa, faço outra, ando para aqui e ali, sem lugar. Sonhei esta noite que ia a atravessar uma ponte velha e longa, entre duas montanhas, e a meio caminho vi surgir debaixo uma sombra e ficar os pés diante de mim. Não faz muito. Uma hora e meia, tempo este que estou sentado à mesa da cozinha, escrevendo esta dor que sinto a todo instante, a sombra era imponente, rígida, uns ares de quem estava a dizer que tinha de estar diante dela, não me sobrava mais nenhuma alternativa. E com um gesto muito rápido, só mesmo em sonho para tamanha rapidez, arranquei do peito o coração, meti-lho na boca. Desejei cuspi-lo, e foi ainda pior; os dentes cravaram-se no coração. Quis dizer algo, mas como dizer com um coração dentro da boca.
Acordei um pouco agitado, passando a mão direita na boca. Talvez estivesse pensando que o coração ainda estaria dentro. Levantei-me. Apanhei de um maço de cigarros sobre a pequena estante do quarto, vindo até à cozinha com uma agenda em mãos, segurava-a com as duas numa atitude de ternura e carinho, amor por ser ela a inestimável amiga de todas as horas e instantes da vida.
Mesmo que não dissesse que dor é esta que habita em mim, seria um modo de refletir, meditar sobre o sentido e o significado deste sonho de estar atravessando uma ponte velha e longa entre duas montanhas, e a meio caminho vir surgir debaixo uma sombra.
Não teria grandes dificuldades para interpretar este coração dentro da boca. O coração é símbolo, metáfora, arquétipo do amor. A ponte velha e longa significa o tempo e as dores que venho tendo por anos a fio, tentando justificar e explicar de todos os modos e estilos possíveis, mas nunca estando sim frente a frente, assumindo, e a resposta outra não poderia ter sido senão dentro da boca, de onde saem as palavras, de onde a língua as expressa.
Tinha superado sim estas dores, isto não significando que vez por todas estaria solucionada, não creio que possa ser vencida de uma vez por todas, estará presente em toda a vida, mas o tratamento que lhe dou é o que sustenta a vida, a atenção que lhe dedico é o que valoriza a vida, e é tanto que a valorizo que me deprimo todas as vezes que tenho a oportunidade de estar frente a ela, e isto é contínuo, tenho sim de enfatizar isto e bem, para nunca me esquecer, sem ser recurso de linguagem, modo de registrar a vida em seus acontecimentos.
Os olhares percebo-os, grosseiros, frios, daqueles que me rodeiam. Isto me leva ao ponto de não ver já as minhas próprias contradições; atos e desígnios, tudo me parece concordar com a realidade e a lógica, ou mesmo com o simples e humilde bom senso, convencendo-me, firmemente, de que quaisquer medidas por mim tomadas, a partir deste sonho que tivera esta madrugada, por mais estúpidos, injustos e inconseqüentes, enfim, estou assumindo com todas as letras a minha paranóia, tornar-se-ão sensatos, justos, coerentes apenas por que tenho consciência, sou o único responsável por tudo, mesmo que isto não queira admitir em hipótese alguma, por ser quem realmente vive isto, por ser a partir de agora o seu autor.
Tendo que decidir qualquer questão importante, de me responsabilizar por qualquer atitude, meditar e refletir sobre as situações mais dolorosas, basta-me concentrar-me um momento para inspirar-me. A solução mais segura apresenta-se por si mesma, como ditada por alguma voz interior.
Pergunto-me de que maneira haveria de satisfazer mais completamente a consciência. Como passaria a agir para que isto seja aos poucos amenizado, chegue um instante em que reconheço não mais sofrer. E a voz interior sopra-me que não é preciso pensar como que agirei, como satisfarei, as coisas acontecem livremente, o importante é que tenha consciência. Virão a serem ditas as palavras, espontâneas e livres, vulcão em plena erupção, tudo serão cinzas, e quem as ouvir passará a resto da vida com a dúvida de se realmente existe no mundo, a sensação é de haver-se tornado cinzas. Deixe as coisas acontecerem.
A folhagem da samambaia – a esposa colocara o vaso atrás da porta da cozinha. Por isto, não está abrindo direito – está linda, de qualquer forma.


Aérton Gonçalves Lacerda


(**RIO DE JANEIRO**, 02 DE ABRIL DE 2017)


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