**CONTRO-VÉRSIAS E PEDRA DE TOQUE** - PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto
Epígrafe:
"“O neurótico faz castelo de areia nas nuvens;
o psicótico mora nele”, eis a diferença" (Manoel Ferreira Neto)
"... quem me dera poder trocar esta chuva de
maná pela fome do deserto." (idem, idem)
Mistérios não me aborreceram, nunca, jamais; a
prova é que agora folgo diante de alguns mistérios enormes, verdadeiros
mistérios (insondáveis). O conflito de duas hipóteses estabelecidas repousa
sobre uma proposição disjuntiva: o homem é (por natureza) bom moralmente ou mal
moralmente. Vem à mente, no entanto, facilmente a qualquer um questionar se
esta disjunção é exata e se não se poderia sustentar que o homem por natureza
não é nenhuma dessas coisas
Com este tom grave, não quero, afianço com
seriedade, causar impacto, ser exagerado, fazer disto tragédia, encabular.
Sempre gostei do inextrincável. Não odeio as questões simples, as soluções
fáceis, não digo que as ame. A razão está só na sedução do obscuro e do
complexo, está ainda em que o obscuro e o complexo abrem as portas à
contro-vérsia.
Imagine, leitor, este mistério e depois me diga se
não estou coberto de razões de ficar bestificado, estupidificado com as mesquinhas
filosofias. Se a contro-vérsia não nasceu conosco, os homens, foi pelo fato
inteiramente fortuito de haver nascido antes; se se não tem apressado em vir a
este mundo, não importando se com ou sem cancelas, sem ou com fronteiras, era
nossa irmã gêmea, se temos de a deixar neste mundo é porque ainda cá ficarão
homens.
Se ergo a lebre da contro-vérsia nesta linguagem,
que necessita ser lida várias vezes com muita atenção para entender, assimilar
as idéias e mensagens, re-colhê-las e a-colhê-las no espírito, é que necessito
com urgência ser compreendido, coisa que nunca aconteceu, não apenas nas
letras, na vida mesma; para gastar mais um pouco de tinta e folha de papel com
os mistérios que nos últimos dias assolaram minha mente, se a abrir só serão
encontrados mistérios, até os miolos são misteriosos, é que só assim posso
mostrar, identificar, de-monstrar os valores que me habitam, o que há nas
minhas pré-fundas que merece atenção e re-conhecimento, meus desejos profundos
no que tange ao destino e rumo dos homens, humanidade. A afluência de tantos
mistérios é porque a poesia é também um mistério, dos mais insondáveis, e todos
os mistérios são mais ou menos, tomando em conta certos fatores e perspectivas
de análise, parentes uns dos outros.
Onde está o delírio? Onde estão as imaginações
férteis, a criatividade? As melancolias, nostalgias? As estradas na lua, os
castelos nas nuvens, o anel de Saturno? Onde vão todos esses sonhos
deslumbrantes, que nos fizeram viver?
Não tenho papas na língua. Não me tomem os leitores
por homem despachado que vem para des-vendar os mistérios mais pujantes da alma
humana, re-velar dores e sofrimentos mais re-cônditos, sem dó nem piedade,
dizer tudo na “lata”, rasgar todos os verbos. Qualquer homem foge léguas e
milhas deles, fazem o possível e impossível para escondê-los. Não sou sádico ou
masoquista. Não tenho papas na língua, é inconteste, consumado até ao fim dos
tempos, é para vir a tê-las que escrevo.
Levantando a questão dos mistérios todos que
habitam o ser homem, na alma e espírito, à altura da grande retórica e galhofa,
diria que o pior deles não é o que deixa a vida em suspenso por todo o sempre,
o que, se des-vendado, causará mais malefícios do que benefícios, mas o que
busca a liberdade nas pré-fundas de todos os problemas, propriedade, sossego,
todos esses pés morais, pedras de toque, se assim me pudesse exprimir com
clareza e distinção, os dentes da compreensão, que nem sempre soem morder
lentamente a carne das angústias, nostalgias, caminhar tranqüilo na estrada social.
Há uma outra coisa na questão dos mistérios: saber
o que os homens devem esperar da vida que levou, ao final dessa, ou o que deve
temer a esse respeito. Deve, como mínimo, com certa medida conhecer em primeiro
lugar seu caráter. Assim, ainda que pense que tenha havido melhoria em sua
intenção, deve compreender em seu exame sua intenção antiga (pervertida), de
onde partiu, e poder dar-se conta daquilo que se despojou e em que medida.
O mistério, que a mitologia tradicional nos pinta
ensombrecido, escuro e obscuro, ensimesmado e sorumbático, brilha como a pedra
de diamante à luz dos raios de sol, brilha tanto que ofusca a visão – acredito
ser esta a razão de tantas dificuldades, acompanhadas de todos os medos de nele
mergulhar de cabeça.
Vejo no mistério – não me perguntem a razão, não
saberia explicar mesmo que houvesse nascido com a bossa da genialidade – um
argumento mais para comprovar as boçalidades, de o des-vendar, só tem sentido e
significado se in-sondável, só fascina se ininteligível, só extasia se
perpétuo. Prefiro-o como é. Nasci com a bossa da genialidade, mas com medo de
me tornar gênio bossal, daqueles que têm resposta para todas as coisas e
mistérios, se se lhes olhar dentro da cabeça, vê-se-lhe vazia, oca de toda. E a
pergunta: “como pôde pensar e des-vendar tantos mistérios, se não tinha massa
cefálica?” Vejo no mistério um argumento a mais em favor de minha tese: se os
mistérios se fazem continuamente, basta estar vivo, a continuidade é também o
mistério.
O leitor nasceu com a bossa da inteligência pura:
morto, acabam os mistérios, para os mortos os mistérios são coisas da vida. Não
me refiro aos irmãos do leitor, sobrinhos, compadres, nem a seus amigos, mas
tão-somente ao próprio leitor, isto porque não os conheço, só conheço mesmo o
leitor, eis a razão para escrever para ele – única e exclusivamente para não se
afligir com os mistérios, é só entregar-se inteiro aos risos e ouros da poesia,
tudo mais se escafede sem deixar vestígios. Todos os demais fiquem isentos da
mácula se a há.
Dizendo isto a pessoas de minhas relações íntimas e
pessoais, sobre isto de agarrarem-se aos risos e ouros da poesia, deixarem os
mistérios se resolverem entre si mesmos, mesmo a troco de unhas e dentes,
apertam-me o braço ou me puxam com força pela gola. Longe de lhes atribuir o
gesto a simples censura, reprovação, condenação, estou muitíssimo errado, tudo
foi feito para ser assumido, agarrar aos risos e ouros da poesia não vai
resolver nossos problemas e mistérios, vai agravar ainda mais a psique, a
loucura é inevitável. Longe de atribuir o gesto a simples loucura transitória,
acredito ser um modo de orarem e exporem os medos e resistências de se
entregarem ao riso, serem galhofeiros com a vida, e também de os versos e
estrofes dissolverem a única dignidade deles: a busca de conhecimento dos
mistérios da alma e espírito.
Uma vez que se foge aos mistérios, entregando-se
aos risos e ouros da poesia, onde achará método para distinguir um louco de um
homem de juízo? Penso mesmo numa charada, se assim posso definir: “Qual a
diferença entre o neurótico e o psicótico?”, cuja res-posta é: “o neurótico faz
castelo de areia nas nuvens; o psicótico mora nele”. É muito perigoso viver de
poesia. De ora avante, quando alguém vier dizer-me de problemas, conflitos,
dores, sofrimentos, medo da morte e da vida, dos mistérios que nos habitam,
ainda que não arranque os botões, não ficarei incerto se é pessoa que se
governa, ou se está num daqueles intervalos lúcidos, que permitem ligar as
pontas da demência às da razão. Não mais direi que se entregue aos risos e
ouros da poesia, direi para se agarrar às barbas do profeta Abraão. É sabido
que a demência dá ao enfermo a visão de um estado estranho e contrário á
realidade. Também é sabido que a razão dá ao homem de inteligência, percepção,
a visão de um juízo límpido e inerente aos idílios do nascimento e da morte.
Retornemos ao mistério que é o tema destas letras
traçadas a rigor e critério com a pena da galhofa e tinta da sinceridade com
que vivemos até que a morte nos separe, no além tudo transparente e nítido, no
mundo todos os mistérios sem dó e piedade. Deve-se re-conhecer mesmo a cor-agem
de viver no mundo, não só a coragem mas também a perseverança.
Quando a vida cá fora estiver tão agitada e
aborrecida, risos e ouros da poesia acabam por aborrecer, o espírito e alma já
não conseguem re-tornar aos mistérios, perderam-se na história que não se possa
viver tranqüilo e saltitante, haverá um asilo para a minha alma – e para o meu
corpo, naturalmente.
O céu é bom, mas imagino que não mais haver
mistérios lá em cima não me legará sublimar com a poesia, com os seus ouros e
risos. As pessoas que vão deste mundo anistiadas ou perdoadas por Deus, podem
ter saudades da terra, dos mistérios que só fizeram sofrer, angustiar,
deprimir, só fizeram travar os desejos de liberdade e divinidade, de consolidar
o homem novo. Por pior que seja o mistério da vida, por desesperador e
angustiante que sejam os mistérios da morte e da ressurreição dos pecados e
mazelas, a terra há de dar saudades, melancolias, nostalgias, quando ficar tão
longe que mal pareça um miserável pontinho preto no fundo do abismo. O pontinho
preto que foste o meu infinito, universo, horizonte (exclamarão os
bem-aventurados), quem me dera poder trocar esta chuva de maná pela fome do deserto.
O deserto não era inteiramente mau; morria-se nele, é verdade, mas vivia-se
também; e uma ou outra vez, como nos povoados, os homens quebravam a cabeça uns
aos outros, espremiam os miolos mutuamente – sem saber porque como nos
povoados.
A minha ojeriza maior que a dos mistérios
insondáveis é a vulgaridade com que alguns intelectuais tratam a recorrência,
isto é, haver tratado de algo numa obra, retornar ao mesmo, até com as palavras
mesmas, em outras. O que chamam de empobrecimento das idéias, pensamentos,
chamo de espiritualidade, pois que, ao longo das experiências vivenciárias e
vivenciais fui aprofundando ainda mais, fui-me amadurecendo, compreendo mais e
melhor o que é isto a vida.
Já escrevi não sei quantas páginas, centenas, posso
afiançar com naturalidade, o leitor não conhece o meu acervo cultural,
filosófico, teológico e literário, o número de páginas que já tenho escritas, o
que conhece é apenas uma pontinha do iceberg, o já publicado. Escrevi sobre um
sonho que tive há dez anos. Mas agora esta recorrência aprofunda muitíssimo o
que é isto o abismo nisto dos mistérios insondáveis da vida.
Sonhei que estava com meus dois filhos à beira de
um abismo; o mais novo, tranqüilo e sereno, quieto, ficou sentado no meu colo,
o mais velho, inquieto, chamei-lhe a atenção diversas vezes, não aproximasse do
abismo, se caísse nele, continuaria caindo por toda eternidade. De repente,
larguei os dois á beira do abismo, fui embora. Encontrei um portão aberto, em
verdade uma porta, estava com um das mãos cheia de semente, era jogar-lhes no
chão de imediato nasciam uma espécie de pé de alface. Despertando-me o desejo
de sentir-lhe o gosto, surgiu alguém, a que, no sonho mesmo, chamei-lhe “homem
do espaço”, dizendo que não comesse aquelas folhas, eram amargas, intragáveis.
Disse-lhe que não, rasgando uma folha, levando-a à boca, mastigando,
dizendo-lhe: “Não disse! Nada de amarga, simplesmente deliciosa”, o que me
respondeu: “de início, no tempo, ao longo dos anos, sentirá a amargura delas”.
Disse antes que haverá um asilo para mim, quando a
vida cá fora estiver agitada e aborrecida com somente risos e ouros da poesia,
a ausência plena e absoluta dos mistérios. O asilo que haverá para mim é o
hospício. Não escrevendo obras mentais e complicadas, tratados de estética e
beleza, de jurisprudência ou constituições políticas, nem filosofias, nem
matemáticas, poderei achar nas reflexões e meditações acerca dos mistérios um
paliativo, uma anestesia, a louca, e um pouco de descanso á agitação interior.
Bendito seja o que primeiro cuidou de encher-lhes o
tempo com serviços e labutas, e recompôs-lhe em parte os fios arrebentados da
razão. Lembrei o termo que iria completar o sentimento de minhas idéias:
morfina. Uma morfina às dores e sofrimentos do mistério da vida e da morte,
morre-se mais tranqüilo e saltitante, e a eternidade será bem mais longe do que
diz as mesquinhas filosofias do além.
(**RIO DE JANEIRO**, 05 DE ABRIL DE 2017)
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