**CASTELO DE EROS** - PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto


Bons dias!


Não diz o ditado que a caravana passa e os cães latem? – desde tempos imemoriais, antes mesmo do pequeno arraial, a caravana sempre passou no Largo dos Urubus, título recebido por ser o ponto de encontro dos fofoqueiros da cidade, vivem da carniça dos outros. O que o ditado não diz é se a caravana algum dia parou e tirou satisfação com os cães, rasgou-lhes o verbo na cara. Não diz. Os homens é que deduzimos a sua atitude: ela passa, não dá atenção aos latidos, segue o seu itinerário. Não deduzo isto – deduzir é sempre muito arriscado, a lógica conclui com eficiência, mas serve aos interesses, a verdade fica escondida a sete chaves. É simples: a caravana não responde a latidos de cães, não tem qualquer sentido – aos homens já não teria; ela é uma coisa, não tem subjetividade nem subjetividade, ainda depende de cavalo para puxá-la, do homem para orientar o cavalo no itinerário que leva ao destino. Se ainda fosse um rotweiller, com certeza, o condutor daria rédeas para o cavalo correr, desembestado pelas ruas a fora, livrando a caravana de ser atacada, mas a vira-latas o que a caravana faz é sentir-se orgulhosa, feliz da vida por estar trabalhando, conduzindo as pessoas ao seu destino.
Até as caravanas que não dão a mínima ao latido dos vira-latas ensinam a viver, aliás o ditado deixa bem explicita esta mensagem aos homens, isto é, fazerem o que a caravana faz, não darem a mínima para o que as pessoas dizem, o que os fofoqueiros tornam público, se derem morrerão varridíssimos de pedra e torrões de barro seco.
Por que eu daria respostas a quem dissesse despautérios e disparates contra mim, colocando a minha alma para fora, mostrando os meus podres todos, aguçando o apetite dos urubus do largo, fazendo-me andar de cabeça baixa com vergonha de minhas singulares e particulares, intimas mesmo, catingas, se sou homem quem tem consciência de todas as mazelas, canalhices de minha estirpe e laia, de meus valores e virtudes, apesar disto; se tive a sensibilidade de criar um lema para mim: falem mal de mim, divulguem os meus podres para todos os cantos e recantos do mundo, mas não se esqueçam de que os homens somos imperfeitos.
O que dizem ou dirão não me deixará suspenso pelos suspensórios, estarei ouvindo o óbvio, o mais claro e evidente, e já que não andam nos meus sapatos são apenas, acabam sendo, opinião e ponto de vista, o que dizem é muito pouco, sei muito mais que eles, mas continuo vivendo, lutando, esforçando-me para fazer de minhas mazelas um trampolim para as verdades mais profundas que me conduzem ao ser, ao quem sou. Fosse responder a tudo que dizem, falam de mim, morreria na Casa de Orates.
A caravana diz aos cães: “Lati à vontade! Continuo seguindo meu itinerário pelas estradas que é conduzir os homens ao destino que pré-estabeleceram para si mesmos”. Digo eu aos homens, aos fofoqueiros do Largo dos Urubus – sinto muito a ausência do amigo que, muito feliz fora na sua definição e conceituação, deste largo, mas ele conhecia salteado e de cor a história; ri por dois dias, quando num de nossos encontros assim me dissera, e até hoje que passo pelo largo e olho ao redor sempre penso comigo que o amigo era sim um gênio: “Falai o que quiserdes. O mais importante para mim é a minha consciência, as vossas opiniões e pontos de vista são irrelevantes. Nada estais acrescentando aos meus conhecimentos”. A característica sine qua non dos fofoqueiros é a redução, a limitação não só das informações que dentro trazem em si, mas da sensibilidade, são puros instintos.
Há cães inconseqüentes, não sabem o que latir, não sabem porque latem. É latir, a única função deles, é o que nasceram para fazer no mundo, enquanto a morte não vier para lhes agarrar o calcanhar de Aquiles. Latir é uma coisa, morder é outra bem diferente, os quinhentos mil réis para cada situação desta mostram as diferenças de cédulas. Cão que ladra não morde, os que mordem sabem com propriedade porque o fazem. Seria que alguém já houvesse pensado se os cães que latem a caravana em suas passagens, ao invés disso corressem atrás dela e mordesse as suas rodas? Não mordem porque não têm o instinto de que se sentem incomodados com o que ela faz ou deixa de fazer.
Vira-lata, leitor, numa de minhas passagens pelo Largo dos Urubus, gritou-me a plenos pulmões a respeito de hipocrisia de amigo intimo, já que eu estava a rasgar-lhe as sedas, considerar-lhe, mostrar-lhe a profunda e verdadeira amizade que por ele nutria. A cachorrada presente não moveu única palha do lugar, não latiu, limitou-se apenas a observar o que estava acontecendo, abanando os rabos para mostrarem que latiam as caravanas e não os homens. Compreendi-lhe as razões: por este vira-lata eu nutria nojo, asco, náusea, e sempre que tinha razões reais, atitudes e comportamentos que as fundamentavam, citava por todos os becos as suas condutas, de modo cínico e satírico. Digno de dó, pena, comiseração: sentia-se carente, minhas considerações eram-lhe importantes. Por que de mim não se aproximou, dizendo: “Pelo menos, diga que ainda acredita no leite de meu doce?” Positivamente a rua Direita, que dá entrada e saída de ambos os lados para o Largo dos Urubus.
O que dissera o vira-lata, quando passei por lá? Que havia ele perguntado ao amigo porque dava tantos créditos a mim, considerava-me um grande homem, reconhecia-me a importância no mundo, se nada valia eu no mundo, um ser desprezível, ostentava valores que não possuía para justificar as minhas mazelas, para não assumir o nada que era e representava. O amigo não respondera, sorrira, olhara para o horizonte distante, como era de seus princípios, respeitar os limites e incapacidades de qualquer, compreender e entender os problemas e neuroses de cada um. Quer dizer: nem sabia eu quando alguém é amigo mesmo, quando alguém nutre sentimentos verdadeiros. Era mesmo um desvairado eu, meu mundo era um desatino sem cancelas e porteiras.
Ouvi os seus latidos sem interromper a minha caminhada, sem me virar para trás, – se o fizesse, seria para reconhecer que vira-lata esta latindo, havia uma matilha no Largo dos Urubus, mas a altissonância do latido me era familiar, sabia qual era deles – cai na gargalhada pelas ruas. Não houve quem não me observasse, não só os urubus, as pessoas de condutas e posturas idôneas também o fizeram. Cão latia, os urubus comiam a carniça alheia, as pessoas observavam. Um grande espetáculo numa manhã que acabava de nascer, os raios de sol ameno incidiam em tudo. Conhecia a história salteada e de cor, de pavio a fio, de rabo a cabo, conhecia o amigo dos ossos à carne, do sangue às veias.
Verdadeiramente, perguntara o vira-lata o porquê dos créditos. Nada de anormal, era a pergunta que fazia até às pedras e poeira das ruas. Não podia entender o que estava acontecendo, estava des-confiado de ser limitado, reduzido, a sua inteligência era mínima, quase nenhuma, isto jamais poderia ad-mitir, as respostas à sua abismática indagação, ao profundo questionamento, tanto das pessoas, de qualquer índole, quanto das pedras e poeiras não só da rua Direita, mas de todas as da cidade, e de outras coisas a que estava indagando, questionando, iriam ajudar-lhe a desvendar os mistérios de sua não-compreensão dos créditos que a mim eram legados não só pelo amigo, mas de outras pessoas também.
O amigo respondera: “No leito de flores dele não há lugar para a hipocrisia”, desejando expressar que me reconhecia por ser eu sincero e verdadeiro, não ostentava conhecimentos que não tinha, não andava de saltinho alto, tinha consciência de quem era eu; se o vira-lata quisesse ter os mesmos créditos, teria de sê-lo, teria de largar mão das hipocrisias e canalhices que lhe eram de índole, e isto não lhe possível, mesmo que os cães puxassem caravanas, e os cavalos ficassem no pasto comendo o delicioso capim, no coxo da estrebaria comendo a ração de primeira qualidade. Saiu o vira-lata, após a resposta, pisando duro. Respondeu-lhe que seu questionamento no que tange aos créditos mostrava que ele estava querendo ser eu, e não podia, era limitado demais para isto, nascera reduzido de inteligência, amplo de instintos, e não era isso que desejava saber.
Num encontro nosso, do amigo e eu, na garagem de sua residência, num início de noite de tempestade, bebendo pinga, um dos assuntos foi a varridice de pedra do vira-lata, a pergunta a respeito dos créditos legados a mim. Não mais virava o lixo da porta dos burgueses, esperando encontrar só restos de comida sofisticada, comia detritos no lixo público da favela dos cupins. Isto porque os burgueses estavam dizendo de seus orgulhos de paladar sofisticado, apenas vira-lata que era.
Alguém das relações intimas, íntimas desde os ossos à carne, conhecendo os detalhes e pormenores do nojo que o amigo sentia do vira-lata, muitas vezes resultando em vômitos reais, e sabendo a grande amizade que nos unia, enervou-se mesmo, dizendo a todos quem quisesse falar de seu amigo, de mim, tinha primeiro que lavar a boca com água sanitária. Não lhe dirigiu única palavra. Esperou mais um pouco para ter em mão a razão de agir com determinação. Numa mesa de barzinho, no Largo dos Urubus, rodeado de seus asseclas, comentara sobre a grande amizade que unia o meu amigo e ele, estavam sempre conversando, encontravam-se muito e havia sempre o prazer de dedos de prosa dos mais profundos. In-verdade. Corria dele como a cruz do diabo, era-lhe osso de pescoço, músculo, acém, fraldinha de costela.
O que aconteceu com mais este despautério dito pelo vira-lata a respeito de seu amigo de relações íntimas? Era interessante mesmo: quando o vira-lata começa a latir, latia, latia, latia. Os latidos eram semelhantes a coceira ou a adultério: era só começar que não parava mais. À porta de um banco, a pessoa das relações íntimas do amigo estava conversando com a irmã. A conversa versava exatamente sobre os latidos do vira-lata, sujeitinho mais cretino. Estava mesmo necessitando de umas lições básicas de como parar de latir. A irmã aconselhava-o a deixar passar batido, quem dá atenção a vira-lata pulguento, acaba infestado de pulgas, deixasse latir à vontade, não havia quem não soubesse das verdades, da índole espúria do vira-lata. Com o tempo, iria calar-se, viver no meio da matilha dele, caladinho, apenas olhando os cães latirem a caravana.
O vira-lata surgira.
- Vem cá... – disse o amigo de meu amigo. O vira-lata ficou branco.
- Eu...
- Você mesmo...
- Estou com um pouco de pressa. Conversamos depois!
- Quero ver se você tem cor-agem de chamar meu amigo de hipócrita, quero ver se você chama nosso amigo de desvairado e ensandecido.
A irmã inter-feriu. Pediu-lhe em nome de Deus e de todos os querubins e santos existentes que não rodasse a baiana à porta do banco. Não valeu a pena. Enquanto a irmã fazia os seus pedidos, o vira-lata desembestou-se pelas ruas sem olhar para trás, num fôlego só, só parou quando entrou em casa, trancou o portão a cadeado.
Aquele sobre quem o vira-lata queria saber as razões de lhe serem legados créditos mais tarde daquele mesmo dia havia saído à rua para tratar de assuntos de seu interesse, encontrando-se com o amigo íntimo de seu amigo, inteirando-se do acontecido, por muito pouco o vira-lata não teria tomado uma lição básica.
Cínico, sarcástico, irônico como sobre quem o vira-lata queria saber sempre fora, dissera que os urubus do largo iriam fartar-se de tanta carniça, carniça fresquinha, já estavam enfarados de tanta carniça velha. Sobre ele as carniças já estavam velhas, só o vira-lata não atinava com isso, continuava a latir-lhe, a latir sobre ele pela cidade. A verdade da resposta estava em suas mãos, por mais que tentasse adulterá-la de nada adiantaria. O interesse do vira-lata era fazer-lhe de idiota, imbecil, ensandecido, desvairado, jogar-lhe contra o amigo, isto jamais aconteceria. Também não aprovara os latidos, mas era da índole do vira-lata estas condutas espúrias. O amigo ficasse tranqüilo, a resposta seria dada com muita cebolinha, cebola e pimenta, o vira-lata jamais esqueceria desta carne que lhe oferecia em prato de porcelana, nunca comera bifes tão saborosos. Esperasse o tempo, de por baixo do sol há tempo para tudo. Não se ensina lições básicas de bons comportamentos a um vira-latas, isto não surte o menor efeito. A lição passa logo. A carne que estava preparando para ele iria ficar na história até a consumação de todos os tempos possíveis e imagináveis.
Era um prazer sempre muito grande encontrar o amigo, mas precisava de se despedir, tinha de pegar a última caravana daquele dia, os cães iriam latir-lhe com euforia, mas ele estaria muito confortável, lendo um novo livro que havia comprado: Diário de um louco, de Gogol. Precisavam marcar um encontro nalgum barzinho para uma cerveja, colocarem as idéias em dia.


(**RIO DE JANEIRO**, 03 DE ABRIL DE 2017)


Comentários