**CASPÁCIAS QUIMERAS DE ANTANHO** - PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto


Bons dias!


Se é verdade que se possa acreditar que os olhos comem, isto é preciso ob-servar com percuciência para acreditar ou des-acreditar, para louvar e re-verenciar ou refutar ir-revers-ivelmente, dizer que a imaginação fértil tem grandes e insofismáveis poderes de criatividade. Digo sim que a isto presenciei, tendo-me causado susto e espanto pelos êxtases que senti, com efeito indescritíveis. Para mim, não há o que contestar ou apresentar argumentos que isto coloque em dúvida, que torne isto objeto de in-vestigação científica ou filosófica, psicológica, psicanalítica, psiquiátrica em última instância. Algumas vezes presenciei, não foram muitas, vi-os comerem as coisas e as pessoas.
Não havia assistido antes a engolirem as coisas e pessoas, nunca pensei que isto fosse possível, jamais imaginei que me seria dado ver a olhos nus tal fenômeno. Quando a comida é deliciosa, quando o gourmet do restaurante ou a esposa capricharam no tempero, não é só o paladar que se extasia, não é só o estômago que se compraz e louva a Deus por momento tão esplendoroso, a digestão será realizada com primor, os olhos brilham intensamente, vê-se o espírito em estado de júbilo através deles, vê-se a alma regozijante através deles, vê-se a psique em estado de encantamento, creio que até a carne e os ossos sentem perpassar-lhes o fio do prazer absoluto, a espinha dorsal enregele-se. O espetáculo da delícia é inolvidável, esplendido – quem isto teve o prazer de viver ou observar sabe sim do que estou dizendo.
E não me sinto ainda realizado com o que vivencio, os frutos já colhidos, apetitosos, nisto de com as palavras enfiar os homens no buraco de tatu por merecimentos? Há tantas palavras a serem ditas para a realização final, há uma "estorieta", com todos os ingredientes, para mostrar a alguns qual é lugar que devem ocupar na continuidade dos séculos, Satanás não os quererá receber em sua mansarda. Enviar-lhes editado em livro. Saberem que andará sendo lido pelos séculos vindouros, não lhes será possível consertar as coisas, amenizá-las ou anestesiá-las, "estorieta de capa e espada". Quem sabe algum dia?
O espetáculo dos olhos comendo e engolindo os objetos e pessoas de sua con-templação trans-cende e muito o que acabo de des-crever; sendo uma comida deliciosa, vai além da razão, dos instintos, além de todas as dimensões sensíveis. Refiro-me ao que os olhos amam enxergar, têm volúpias em con-templar e vislumbrar.
E o que eles odeiam, têm náusea, asco, o que eles querem jogar na sarjeta, fazer-lhe arrastar pelas ruas e avenidas sem quaisquer condições de re-clamar, pedir a Deus amparo e proteção, estará por sempre rastejando até a consumação dos tempos, em estado de espírito pelas alamedas do céu ou pelos cubículos do inferno? O espetáculo é impressionante. As retinas saem de seus espaços, são elas que trituram o alimento, naquela atitude dos bois, cavalos, jegues, quando comem o feno ou a ração, calma e tranquilamente, olhando o mundo com in-diferença e desdém: “o que nos importa se o mundo está de cabeça para baixo, os homens de pés para o céu? Estamos aqui nos alimentando!” O ódio fica a cargo de triturar mais o alimento, fazer-lhe descer na garganta com suavidade, o que for aproveitável para a saúde da alma e do espírito ajudará a viver por mais tempo, engordará, dará mais disposição para os problemas e afazeres do cotidiano. Às pupilas ficam a tarefa de se ampliarem e ficarem iluminadas, quase que como fotografando com genialidade e estilo o momento.
Jamais assisti a espetáculo tão magnífico. Sinto que devo agradecer à Terra, ao Mundo, por essa oportunidade sem precedentes, oportunidade de dizer que estou presente a todas as circunstâncias e situações, elas realizam as missões e responsabilidades que me foram dadas. Tenho oportunidade de registrar na folha branca de papel para o deleite e prazer dos homens que ainda existem de fato e direito, mas estão em extinção, que apreendem novas experiências, colocam-lhes em prática, sentem outros prazeres e alegrias na vida.
Acredito que os homens ainda existentes, os trastes que permanecerão por longas e intermináveis décadas, séculos, devem estar mais que ansiosos, estão angustiados e desesperados por conhecer como se deu esta experiência de ver os olhos comerem e engolirem o objeto que observaram, imbuídos de todos os sentimentos negativos, numa atitude e postura de jamais na vida será possível sentir-lhes outra vez, nem mesmo noutra reencarnação.
O que mais odeio é a ostentação de verdades, o que se pensa e sente é inconteste, nem Deus nega. Quem o faz são os homens limitados de razão, inteligência, cultura, sensibilidade, não meto aqui a intelectualidade por não ter a mínima condição de usufruí-la. Quem mesmo possui seus valores inestimáveis, nada ostentam, não precisam mostrar, não precisam chamar a atenção de ninguém, continuam a trajetória da busca da verdade, do desejo de realizar a vida, de contribuir com a vida dos homens, da humanidade. Há alguns que se não lhes conhecer julga-se que são homens mais que comuns.
Há os que são neuróticos de poder e consciência, são os deuses, o que dizem é a verdade, devem ser ouvidos, devem-se-lhes seguir os passos e traços. A neurose só re-vela que nada são, não têm a mínima noção da realidade que lhes circunda.
O que fizera eu? Entrei na alma de um desses homens pernósticos, arrancando-lhe das entranhas o que nela havia de profundo que fundamentasse as suas atitudes, suas manias de grandeza, suas ostentações de poder, suas neuroses todas, como se pode ler com transparência, sobretudo suas perseguições às autoridades, aos proprietários de lojas, aos colunistas, trouxe tudo para a superfície, uma in-vestigação de caráter eminentemente psicológico, desejava que todos conhecessem o que lhe habitava o íntimo, publicando. Publiquei nestas páginas. Tirei Xerox das duas páginas do artigo, coloquei em envelope, subscritei. Antes de enviar-lhe, mandei entregar a alguém que iria apreciar bastante ler, sentir-se-ia bem, estava com ele atravessado na garganta, diria até que estava engolindo os seus sapos secos, sem condições de uma resposta categórica. Coloquei uma fitinha cinza no envelope. Mandei entregar-lhe em mão. Quem estava com ele atravessado na garganta, mandou tirar várias Xerox e distribuiu. A bomba explodiu num abrir e fechar de olhos. Os comentários foram feitos a rigor e critério por todo o dia, disseram-me que ninguém trabalhou direito.
Dia após a entrega, tive alguns afazeres no centro da cidade. Não poderia imaginar que fosse encontrá-lo. Aconteceu. Olhou-me. Respondi ao olhar. Já vi ódio no olhar de todas as qualidades, vi o ódio absoluto, mas o olhar dele trans-cendeu o ódio absoluto. Pensei comigo que teria ele um enfarto fulminante, caindo duro e fedendo no meio da rua. Seu olhar não apenas me comeu, engoliu-me inteiro. Desejei ser ele para saber de seus estados de alma e espírito no ato de devorar-me com os olhos, se o estômago louvou a Deus pelo momento, se calafrio perpassou-lhe a coluna dorsal, se a carne e os ossos tremeram de prazer. Imaginei que sim. Andando e observando o seu olhar até ombrear-se comigo. O que poderia fazer? Se me agredisse fisicamente no meio da rua, entregaria o ouro ao bandido, daria a todos o direito de saber que não suportava a verdade; se me dirigisse alguma palavra ofensiva, agressiva, retrucaria eu com outras ainda mais contundentes e pujantes, o que fora escrito era apenas uma ponta do iceberg. Estava de pés e mãos atados. Resposta não teve, sabia que jamais a teria. Segui a minha trajetória, rindo de modo comedido, a vontade mesma era de cair na gargalhada altissonante.
Quem estava com ele atravessado na garganta, mandou-me agradecer. Não chegara a dizer que eram as palavras com que desejava responder-lhe às perseguições. Não teve ele condições de registrar na página branca de papel o que pensava dele; o que dissera eu não apenas felicitou a pessoa, era a voz de muitos que estavam se coçando para enfiar-lhe garganta abaixo o sapo seco, colocando-lhe no seu devido lugar. A quem agradecera em nome da pessoa, disse-lhe eu categoricamente: “Quando eu decido destilar os meus ácidos críticos, resposta não haverá nem que o diabo faça milagres. Sempre que ele me vir de hoje em diante as minhas palavras surgirão na sua mente, jamais serão esquecidas”.
Não é tão simples responder as coisas, mesmo sabendo o que se deseja dizer, na hora de registrar na página as dificuldades de toda laia e estirpe se revelam. Não é qualquer escrito que atingirá o objetivo, corre-se mesmo o risco de ser ridicularizado. Se me perguntarem, o que ninguém ainda não o fez neste instante em que escrevo este texto - pode ser que isso venha a acontecer passados mais alguns tempos -, dia depois de receber o agradecimento da pessoa, como é que eu consegui encontrar as palavras certas para atingir de chofre quem ama de paixão perseguir as pessoas com as suas neuroses de poder e consciência, diria com empáfia o segredo está no caráter psicológico, ter mergulhado em sua psique, revelando o que nela está dentro. Se isto for feito com a verdade nas mãos feitas concha, não há como responder, pois que não se criou nada, não inventou pormenores, não re-criou detalhes, o que foi dito seguiu com propriedade as atitudes e ações, os comportamentos.
Quem sabe de quem estou falando, tem consciência de que este homem jamais vai mudar suas atitudes, continuará perseguindo as pessoas, dizendo disparates os mais di-versos, mas com efeito as pessoas agora sabem o porquê de ele agir dessa forma, e tudo o que fizer as interpretações e análises serão ainda mais contundentes e pujantes. Alguém tem de começar algo para que outros tenham condições de continuar. O que falta mesmo às pessoas é a coragem. Se alguém teve, elas começam a ter.
Aprendi algo com esta experiência: aprendi que os olhos não só comem o objeto, eles também engolem.


(**RIO DE JANEIRO**, 03 DE ABRIL DE 2017)


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